Ernest Mandel, cem anos

Michael Löwy*

      Mandel nasceu em Frankfurt no dia 5 de abril de 1923, há cem anos. Faleceu em Bruxelas, no 20 de julho de 1995. “Ernest Mandel: o sonho protelado de um rebelde”[2]  é a primeira biografia sistemática (…) daquele que foi – como notado por Tariq Ali em seu prefácio – um dos mais criativos e independentes pensadores revolucionários de seu tempo.

      O autor é um historiador alemão – a primeira edição do livro saiu em alemão no ano de 2007, na Antuérpia [cidade da Bélgica] – que baseou sua pesquisa não somente em uma vasta bibliografia, mas também em uma larga quantidade de entrevistas pessoais com antigos amigos e camaradas, e, sobretudo, no material fornecido pelo arquivo pessoal de Mandel. Trata-se de um trabalho de ótima qualidade, que combina o rigor do historiador, uma óbvia simpatia pela personalidade, e uma lúcida distância crítica que previne contra qualquer desvio apologético.

     Os capítulos do livro são organizados em parte cronologicamente e de outra parte tematicamente. Nascido em Frankfurt (Alemanha) no ano de 1923 e com o pano de fundo cultural de uma família de judeus poloneses (não praticantes) da Alemanha vivendo em Antuérpia (Bélgica), o jovem “Ezra” (posteriormente “Ernest”) descobriu o socialismo aos seus 13 anos de idade ao ler “Os miseráveis”, de Victor Hugo! 

        Posteriormente, ele observou: “Minhas ideias políticas foram ali constituídas, definitivamente, pelo resto da minha vida”. Seu pai – de esquerda -, Henri Mandel, cresceu próximo a círculos de trotskistas alemães refugiados na Bélgica após os julgamentos de Moscou. Em 1938, Ezra – então com 15 anos, adentrou o PSR (Partido Socialista Revolucionário), a seção belga da IV Internacional. Destemido da guerra e da ocupação nazista na Bélgica, ele se somou à resistência e foi preso pela primeira vez em janeiro de 1943, se aproveitando [posteriormente] de um lapso de atenção por parte de seu carcereiro para escapar.

       Um contribuidor regular do jornal clandestino de língua alemã “Liberdade de expressão” (“Free speech”), direcionado a soldados alemães, eis aqui o que ele escreveu em setembro de 1943: “Os assassinatos criminosos dos nazistas estão no processo de exterminar centenas de milhares de inocentes e abandonados homens, mulheres e crianças, considerando estes poloneses, russos e judeus como “sub-humanos”… A humanidade civilizada não pode tolerar isso! Cada um de vocês, soldados alemães, é cúmplice se não protestar contra estes crimes e preferir permanecer em silêncio. Nenhum de vocês pode se esconder atrás de argumentos como “obediências às ordens” ou “o dever do soldado”… Seu dever é barrar a brutalidade nazista: cães raivosos devem ser acorrentados!”. Preso novamente em março de 1944, deportado para a Alemanha, transportado de um campo para outro, ele escapou novamente, em julho de 1944, mas foi recapturado um pouco depois e foi somente libertado em março de 1945 pelo exército norte-americano. O incorrigível otimismo de Mandel – algumas vezes acompanhado por uma certa cegueira – foi refletido, de acordo com um testemunho posterior, em sua atitude quando de sua deportação: “Eu estava feliz em ser deportado para a Alemanha, porque eu estaria no centro da revolução alemã!”. Essa fé obstinada na revolução alemã – herdada do marxismo clássico – não seria jamais abandonada, perdurando até 1990.

      Em 1944-46, Ernest Mandel foi convencido da iminência da revolução europeia: o capitalismo teria alcançado sua fase final de agonia de morte, como Trotsky havia colocado tão bem em 1938. Seria somente pouco a pouco que ele iria aceitar contrariado a realidade do refluxo da onda revolucionária.

       Seguindo a orientação do “entrismo sui generis” adotado pela IV Internacional, ele adentrou o Partido Socialista Belga em 1951, mantendo secreta sua identidade de líder trotskista (seus artigos brilhantes na imprensa da Internacional eram escritos sob o pseudônimo de “E. Germain”). Em 1956, ele fundou o jornal semanal “A esquerda” (“La Gauche”), com a ajuda do sindicalista André Renard e do antigo líder socialista Camille Huysmans; dentre os colaboradores estava Pierre Naville, Maurice Nadeau, Ralph Miliband, Lelio Basso e Ignazio Silone. 

        O periódico teve uma influência real na esquerda socialista e sindical da Bélgica ao inspirar um debate sobre “reformas estruturais” anti-capitalistas. A greve geral belga do inverno de 1960-61 – considerada por Cornelius Castoriadis como “o mais significante evento do movimento dos trabalhadores após a guerra” – foi analisado por Mandel como a precursora de uma futura radicalização das lutas na Europa. A proibição do “A esquerda” pelo Partido Socialista em 1964 o obrigou a deixar tal partido e a criar a União da Esquerda Socialista, que teve um pequeno sucesso.

      Paralelamente à sua atividade na Bélgica, “E. Germain” mergulhou no trabalho teórico – seu primeiro livro significante, “Teoria econômica marxista” (1962), foi uma tentativa, rara em seu tempo, de [conectar] teoria econômica com história. Ele era ativo nas disputas internas da IV Internacional, sustentando – com uma certa distância crítica – as teses de Michel Pablo: defrontado com uma “guerra próxima”, o entrismo em partidos de trabalhadores de massa, comunistas ou socialistas dependendo de cada país, era necessário. 

      A tentativa de impor a entrada no Partido Comunista na seção francesa, de modo autoritário, resultou em uma divisão na França e posteriormente na Internacional. Discreto em seus comentários, Stutje não escondia seu espanto: “Por que tamanho centralismo excessivo? Por que a coerção?”. Em sua opinião, “Germain” preferiu sacrificar sua própria opinião para manter a unidade com Pablo. Somente em 1963, após um encontro de amigos entre Mandel e James P. Cannon, o veterano líder do norte-americano SWP [Socialist Workers Party – Partido Socialista dos Trabalhadores], foi restaurada a unidade da Internacional (ao menos em parte). Durante o congresso de reunificação (em 1963) “Germain” apresentou uma tese sobre os três setores da revolução mundial – uma revolução proletária nos países de capitalismo avançado, a revolução colonial e a revolução política nos países do Leste – o que rompeu com o terceiro mundismo de Pablo, baseado na Algéria desde 1962.

     Isso não significa que Mandel não estava interessado no Terceiro Mundo e em particular na América Latina. Em 1964, ele foi convidado para Cuba, onde se encontrou com Che Guevara e escreveu uma resposta às teses de Charles Bettelheim, em defesa do planejamento central contra “mecanismos de mercado” e a predominância da lei do valor. Um segundo encontro planejado com Guevara, por requisição deste quando de sua visita à Algéria em 1965, não aconteceu. Quando Mandel visitou Cuba novamente em 1967, Che já havia partido para a Bolívia. No momento do anúncio de sua morte, Mandel homenageou “um grande amigo, um camarada exemplar, um militante heroico”.

       Em maio de 1968 Mandel estava em Paris e participou, na noite de 10 de maio, da construção de barricadas na rua Gay Lussac, no coração do Quartier Latin, com sua companheira Gisela Scholtz (uma jovem no alemão SDS, com quem ele se casou em 1966) e seus companheiros franceses da JCR (Juventude Comunista Revolucionária) (Alain Krivine, Daniel Bensaïd, Henri Weber, Pierre Rousset, Janette Habel), assim como de um visitante latino americano: Roberto Santucho, principal líder do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores), a seção argentina da IV Internacional.

       Um pouco adiante, em 1969, o 9º Congresso da IV Internacional decidiu por uma resolução majoritária, sustentada por Mandel, adotar uma estratégia de luta armada na América Latina. Stutje se pergunta se, mais uma vez, Mandel não teria sacrificado sua opinião pessoal pelo bem da unidade, dessa vez com a juventude da Liga Comunista Francesa e os Latino Americanos, favoráveis ao novo rumo. Tendo estado presente em tal evento, eu não compartilho desta análise (é verdade que, de 1974 em diante, Mandel tomou distância das ilusões de tal estratégia. Eu me lembro de uma discussão informal com ele durante o 10º Congresso Mundial onde eu defendi a orientação “política-militar” de nossos camaradas na “Facção Vermelha do PRT” – expulsa por Santucho por trotskismo – enquanto Ernest considerou-os condenados à derrota. É claro, ele estava certo.

      Ao longo desses anos, Mandel produziu alguns de seus mais importantes livros: “A formação do pensamento econômico de Karl Marx” (1967) e “Capitalismo tardio” (1972). Este último é talvez o seu livro mais influente, a despeito da ausência – a respeito do que se lamentaram vários de seus amigos – de uma visão sintética, depois dos brilhantes capítulos sobre diferentes aspectos do capitalismo contemporâneo. 

      Outros importantes escritos deste período incluem o debate sobre Trotsky com Nicolas Krassó nas páginas da New Left Review – o que contribuiu fortemente para atrair seus editores para o marxismo revolucionário – e “Longas ondas de desenvolvimento capitalista – a marxist interpretation” (1980) baseado em prestigiosas conferências realizadas na Universidade de Cambridge.

       A influência de Mandel sobre a juventude rebelde estava em seu ponto mais alto e ele foi proibido de entrar em 5 países, incluindo França, EUA e Alemanha. O Ministro do Interior da Alemanha Hans-Dietrch Genscher disse sobre tal proibição: “O professor Mandel não somente sustenta a doutrina de uma revolução permanente em suas aulas, mas trabalha ativamente por ela”. Karola e Ernst Bloch – o conhecido filósofo marxista alemão – amigos próximos de Ernest e Gisela, escreveu a ele em tal momento: “Você deve realmente ser um gigante se eles têm tanto medo assim de você! Você é o inimigo número um das classes dominantes”. 

       Deve ser dito que a proibição não o impediu de entrar clandestinamente na França em várias ocasiões, como em 1971, quando ele fez um discurso memorável diante de 20 mil pessoas em um encontro da IV Internacional no cemitério Père Lachaise durante o centenário da Comuna de Paris.

       A morte de seu amigo Rudi Dutschke em 1979, e sobretudo – sob circunstâncias trágicas – de sua companheira Gisela em 1982, foram fortes desastres pessoais. Stutje não esconde sua crítica da inabilidade de Mandel de se comunicar com Gisela e de ajudá-la a enfrentar suas crises emocionais. Um ano depois ele se casou com Anne Sprimont, trinta anos mais jovem que ele, cuja firmeza e independência de espírito seria um ótimo apoio para ele. 

      Em tal momento, a maioria dos líderes da nova geração da IV Internacional estavam convencidos de que o ciclo aberto pelo maio de 68 estava acabado, notavelmente após as derrotas da esquerda em Portugal e Espanha, mas Mandel teve dificuldades de aceitar aquela nova realidade: durante o 11º Congresso Mundial (1979) ele teria prometido que o Congresso seguinte seria realizado em uma Barcelona libertada.

       Mandel sempre quis ser um historiador – foi Michel Pablo que o convenceu a se interessar por economia política – mas foi somente em 1986 que ele finalmente publicou seu primeiro trabalho histórico: “O significado da segunda guerra mundial”. Enquanto sem dúvidas um inovador e inteligente trabalho, eu não acredito que ele leva em consideração a especificidade da Solução Final. Foi somente após receber críticas neste ponto que ele publicou em 1990 um importante ensaio – que ele incluiu na edição alemã do livro – sobre o “Premissas materiais, sociais e ideológicas do genocídio nazista”.

       As reformas de Gorbachev na URSS iriam reviver boas esperanças em Mandel e a expectativa de uma iminente “revolução política”; a possibilidade de restauração do capitalismo não foi levada em consideração. Seu entusiasmo continuaria forte durante as grandes demonstrações de novembro de 1989 na Berlim oriental que levariam à queda da muro, que ele testemunhou. Ele acreditava que era a renovação da revolução alemã, derrotada pelo assassinato de Rosa Luxemburgo, e de qualquer modo o “maior movimento na Europa desde maio de 1968, senão desde a revolução espanhola”. Ele teria se desiludido após 1990, com a reunificação alemã e o reestabelecimento do capitalismo no Leste. 

       A despeito de seu desencantamento, Mandel iria novamente publicar alguns livros significativos: “Poder e dinheiro – uma teoria marxista da burocracia” (Verso, Londres 1991), uma análise das origens sociais da burocracia, e “Trotsky como alternativa” (Verso, 1995). Ambos os livros reconheciam a legitimidade da crítica de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques, e o desvio “substitucionista” de Trotsky em 1920-1. Durante seus anos finais, Mandel substituiu o clássico dilema “socialismo ou barbárie” pelo apocalíptico “socialismo ou morte”; capitalismo estaria levando em direção à destruição da humanidade através da guerra nuclear ou a destruição ecológica. Diferente de Stutje, eu não penso que isso era devido a um “messianismo fanático”, mas sim uma lúcida apreciação dos perigos.

       Stutje observa, corretamente, que Mandel tinha uma tendência de separar corpo e alma, e levou um estilo de vida bem insalubre: muita comida, nenhum exercício. Depois de um ataque cardíaco em 1993, ele teve de reduzir suas atividades. No entanto, concordou – contra o conselho de seus amigos – em participar em um debate em Nova York, em novembro de 1994, com uma seita “trotskista”, a Liga Espartaquista, que era especializada em atacar a IV Internacional, e publicou uma longa resposta a suas polêmicas. 

      Stutje cita uma carta que eu enviei a Ernest em tal momento: “Essa obscura seita americana permanecerá somente na memória do movimento operário por conta da sua polêmica”. Sua última aparição política foi no 14º Congresso da IV Internacional em junho de 1995. Um pouco depois, em julho, ele morreu de um novo ataque cardíaco. Sua cerimônia fúnebre, ocorrida em setembro no Père-Lachaise, atraiu um grande número de pessoas de todo o mundo.

       Em sua conclusão, Stutje faz sua homenagem às excepcionais qualidades intelectuais e literárias de Ernest Mandel, e sua confiança sem limites na criatividade e solidariedade humanas. Ele cita meus próprios comentários sobre o seu “otimismo antropológico”, sua confiança na habilidade dos seres humanos de resistir à injustiça. Mas a biografia não leva em conta, me parece, meu seguinte comentário: o otimismo da vontade não foi sempre compensado, em Mandel, pelo pessimismo da razão” (Veja Michael Löwy, “O humanismo revolucionário de Ernest Mandel” em “O legado de Ernest Mandel”, editado por Gilbert Achcar, Verso, 1999).

De qualquer forma, podemos concluir com o autor desse fino trabalho que Mandel permanecerá um exemplo para as futuras gerações, através de sua obstinada rejeição do fatalismo e da resignação.

 

[1] Artigo publicado na revista International Viewpoint. Tradução de Pedro Barbosa publicada, originalmente, em português em: Uma biografia sistemática de Ernest Mandel (comunapsol.org). Consulta em 23/03/2023. Em inglês foi publicado em 10/10/2009. http://internationalviewpoint.org/spip.php?article1729
[2] Ernest Mandel: A Rebel’s Dream Deferred, de Jan Willem Stutje, Londres, 2009, Verso (traduzido por Christopher Beck e Peter Drucker)