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BRASIL

Novo arcabouço fiscal: responsabilidade tem que ser com o povo

Henrique Canary, de São Paulo (SP)
Marcelo Camargo/Agência Brasil

O presidente Lula afirmou nesta terça-feira (21) que o anúncio do novo arcabouço fiscal que vai substituir o teto de gastos deve ficar para depois da viagem à China, marcada para este sábado (25). Ou seja, só saberemos o conteúdo concreto da proposta na semana que vem, após o retorno da comitiva. Segundo Lula, não faz sentido anunciar o arcabouço fiscal e sair em viagem: “Seria estranho. Eu anuncio e vou embora. Não. O Haddad tem que anunciar e ficar aqui para debater, para responder, para dar entrevista, conversar com o sistema financeiro, conversar com a Câmara dos Deputados, conversar com o Senado, conversar com outros ministros, conversar com os empresários. O que não dá é a gente avisar e ir embora. Vai eu, vai o Haddad, vai um monte de gente embora pra China”. Lula afirmou também que a proposta está madura. Ainda assim, a viagem será importante para acertar detalhes: “Vou ficar 24 horas do lado do Haddad conversando”.

De um modo geral, esta é uma semana decisiva para a nova proposta do governo. Desde segunda-feira, Haddad tem feito uma série de reuniões com agentes políticos para apresentar as linhas gerais da proposta e ouvir demandas e sugestões.

Sem entrar em detalhes, a ministra do Planejamento Simone Tebet afirmou que “a proposta vai agradar muito o Congresso”. Segunda-feira o texto inicial foi apresentado ao presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira e ao presidente do Senado Rodrigo Pacheco, que deram declarações positivas sobre o que ouviram. O objetivo de Haddad é angariar desde já o apoio de Pacheco e Lira ao Projeto de Lei Complementar e evitar o constrangimento da proposta ser conhecida por ambos diretamente através da imprensa.

Segundo a PEC da Transição, aprovada ainda no final da legislatura passada, o governo tinha até agosto para apresentar o novo arcabouço fiscal, mas a publicização da proposta já foi adiantada duas vezes por Haddad.

Isso não necessariamente é um bom sinal. É evidente para todos que o governo está sob forte pressão para fechar de vez a questão e apresentar o texto o mais rápido possível. A justificativa formal da antecipação é poder incluir elementos do novo arcabouço na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que precisa ser enviada ao Congresso até meados de abril. Mas na verdade, o buraco é mais embaixo. Mais do que pressão, talvez seja mais correto falar de uma verdadeira chantagem por parte dos agora chamados “agentes econômicos” (mercado nervosinho), que exige do governo que aplique rapidamente um estelionato eleitoral e deixe de cumprir as promessas de campanha em nome da “responsabilidade fiscal”.

O caso mais evidente de chantagem vem do próprio Banco Central. Segundo vários analistas, a manutenção da taxa de juros a estratosféricos 13,75% é parte dessa chantagem. Em outras palavras, o BC está dizendo ao governo: “Enquanto não houver um novo arcabouço fiscal, não haverá redução da taxa de juros”.

O caso todo demonstra o quanto a autonomia do Banco Central é uma falácia. A única autonomia que o BC tem é em relação ao governo democraticamente eleito pela maioria da população. Já com relação ao mercado financeiro, que ninguém elegeu, a dependência e a subordinação são totais e absolutas.

O governo tem obtido sucesso em manter o sigilo em torno da proposta. Tudo o que se sabe sobre o novo arcabouço fiscal é especulação. De qualquer forma, é evidente que se tratará de algum tipo de contenção de despesas. Essa contenção pode ter distintos mecanismos de regulação, como o crescimento da dívida pública, o aumento da arrecadação ou uma combinação desses e outros fatores. Espera-se também que, qualquer que seja o mecanismo, saúde e educação tenham regras mais flexíveis.

A discussão sobre o novo arcabouço fiscal é delicada. Por um lado, há uma determinada correlação de forças na sociedade e no Congresso que obriga o governo a adotar algum tipo de regra de controle fiscal. Uma ruptura nesse sentido não seria fácil nesse momento. Por outro lado, é preciso cumprir as promessas de campanha e isso signifca gastar. Se o governo não gastar, não terá apoio popular e isso compromete seriamente a sua governabilidade. Tudo que a oposição bolsonarista quer é um governo de mãos atadas, que não invista em saúde e educação, que não faça obras, que não realize programas sociais. Um governo desse tipo seria refém do Congresso, pois não teria ninguém para defendê-lo em um momento de agudização das contradições e de ofensiva conservadora.

Assim, a jogada é arriscada. O governo tem, até agora, apostado em servir a dois senhores. Acredita que conseguirá aprovar uma proposta que ao mesmo tempo acalme o mercado e garanta os investimentos essenciais em áreas chaves da administração. Tudo isso sempre esperando que o crescimento econômico minimize as contradições. O problema, entre outros, é que esse crescimento não só não é certo, como é cada vez mais improvável, dada a situação da economia mundial. Sem uma forte política anticíclica, a queda no crescimento econômico mundial deve atingir em cheio o Brasil, com graves efeitos sobre a economia nacional e, consequentemente, sobre a popularidade do governo.

Como viemos insistindo desde a vitória de Lula, é preciso romper o ciclo vicioso de ceder sempre às chantagens do mercado. Isso não se faz, claro, de um dia para o outro. É preciso construir uma outra governabilidade, baseada na reconquista de direitos e na mobilização social para defender o governo dos ataques da extrema-direita.

Mas dizer que não se faz de um dia para o outro não significa dizer que não se deva começar. E o primeiro passo é dar ao povo aquilo que foi prometido: colocar o pobre no orçamento. Essa é a verdadeira responsabilidade com a qual o governo deve se comprometer. Ela é também a sua única e verdadeira defesa contra o que está por vir.