“Uma revolução “just in time”, sem riscos ou surpresas, seria um evento sem evento, uma espécie de revolução sem revolução. Realizar uma revolução possível é, em essência, intempestivo e, em certa medida, sempre prematuro. Uma imprudência criativa. Se a humanidade se pergunta apenas os problemas que pode resolver, tudo não deveria acontecer a seu tempo? Se uma formação social nunca desaparece antes de se desenvolverem todas as forças produtivas que ela é capaz de conter, por que forçar o destino, e a que custo? Era prematuro ou patológico proclamar. a partir de 1793, a primazia do direito à existência sobre o direito de propriedade? Exigir a igualdade social da mesma forma que a igualdade política? Marx diz claramente o contrário: o surgimento de uma nova lei expressa a atualidade do conflito. As revoluções são o sinal do que a humanidade pode resolver historicamente (…) Um talvez cuja última palavra não é dita. Tomar o lado dos oprimidos quando as condições objetivas para sua libertação não estão maduras trairia uma visão teleológica? Os combates “anacrônicos” de Spartacus, de Münzer, de Winstantley, de Babeuf, tomaria então uma data desesperada na vida de um fim anunciado. A interpretação oposta parece mais de acordo com o pensamento de Marx: nenhum sentido pré-estabelecido da história, nenhuma predestinação justifica a resignação à opressão. Intempestivas (…) as revoluções não se enquadram nos padrões pré-estabelecidos (…) Elas nascem no chão, do sofrimento e da humilhação. Temos sempre razão em revoltar-nos (Daniel Bensaïd, Marx L’intempestif).
No dia de hoje, 14 de março, em 1883, faleceu Karl Marx. Dizem, às vezes, maliciosamente, que os revolucionários têm pressa. Mas o radicalismo que inspira a necessidade de uma revolução não se inspira somente na ansiedade de que a vida deve mudar súbito, o mais rápido possível. Ele repousa, essencialmente, na aposta de que a transformação da sociedade é uma urgência diante do perigo de catástrofes irremediáveis.
Revolucionários são militantes perseverantes e resilientes porque sabem que o pior destino de uma sociedade é ficar prisioneira das forças de inércia reacionárias. Quando não se muda, se retrocede. O que não avança, recua. Marx acreditou que uma época revolucionária tinha se aberto em meados do século XIX. Esse prognóstico não se confirmou, então.
O mundo que surgiu da revolução industrial conheceu imensas mudanças, mas prevaleceu a via das reformas e concertações. As possibilidades de transformação impulsionadas pelo próprio movimento de acumulação de capital não tinham se esgotado. Mas, se os terremotos revolucionários, como a onda continental de 1848, ou a Comuna de Paris de 1871 foram derrotados, eles abriram um caminho para as revoluções do século XX.
A publicação do Manifesto Comunista anunciava que teria se aberto uma época de revolução social. Um prognóstico, já controverso, no seu tempo. Certamente ainda hoje, até entre marxista. O conceito de época no Manifesto é usado, indistintamente, em diferentes níveis de abstração, e em referência a processos de dimensões e medidas muito diferentes.
Marx estaria anunciando a abertura de uma época revolucionária, ou alertando a iminência de uma situação revolucionária? Ou ambos, o que talvez seja o menos controverso? De qualquer forma, o uso das categorias de temporalidades neste documento é feito de maneira indeterminada, o que muito provavelmente revela que a elaboração destas ideias ainda estava em um estágio embrionário.
Os autores do Manifesto, contudo, eram conscientes da necessidade de buscar uma “sintonia fina” na análise dos ritmos da transformação histórica que se desenvolvia diante dos seus olhos. Por exemplo, a partir da derrota das revoluções de 1848, no balanço final de As lutas de classe em França, quando se conclui que a etapa revolucionária teria se fechado, se sugere, claramente, uma medida de situação, e na célebre passagem do Prefácio, quando o tema é retomado de forma mais abstrata, todas as referências foram construídas em uma esfera de época, portanto de longa duração.
Mas, para além de uma caracterização política, o Manifesto apresentava um corpo de ideias, uma visão do mundo, ou mesmo um desenho de uma nova teoria da história que definiam os critérios de avaliação do que seria uma época revolucionária: “As forças produtivas disponíveis já não mais favorecem as condições da propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas demais para essas condições que as entravam; e, quando superam esses entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para conter as suas próprias riquezas”.
Esta formulação remete à crise do capitalismo na escala da longa duração com suas causalidades objetivas, materialmente determinadas, historicamente possíveis. Não se abraça uma profecia fatalista. Se elabora uma hipótese e uma aposta inspirada na dinâmica do próprio capitalismo. Ela foi construída em polêmica com o pensamento socialista pré-marxista, e na necessidade de ir além da esfera dos imperativos ético-morais de ruptura com a injustiça social.[i]
Já em A Ideologia Alemã, alguns anos antes, surgia embrionária, mas de forma aguda a importância do conceito de época revolucionária, como sendo aquela em que a possibilidade da transição estaria aberta. Ainda que recorrendo à paradoxal dialética da fórmula hegeliana que admite que “tudo que é real é racional” e “tudo que é racional é real”. Sendo a crise do capitalismo real e a necessidade da transição pós-capitalista ou socialista racional, a segunda estaria contida como potencialidade na primeira.
Vejamos algumas das observações de Marx e Engels: “No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estado onde surgem forças produtivas e meios de circulação que só podem ser nefastos no âmbito das relações existentes e já não são forças produtivas mas sim forças destrutivas (o maquinismo e o dinheiro), assim como, fato ligado ao precedente, nasce no decorrer desse processo do desenvolvimento uma classe que suporta todo o peso da sociedade sem desfrutar das suas vantagens, que é expulsa do seu seio e se encontra em uma oposição mais radical do que todas as outras classes, uma classe que inclui a maioria dos membros da sociedade e da qual surge a consciência da necessidade de uma revolução”.[ii]
Nesse parágrafo, a contradição entre a maturidade das forças produtivas e a caducidade das relações existentes (econômico-sociais)[iii] é interpretada como sendo um estágio em que as primeiras (que têm primazia na definição da dinâmica interna do modo de produção), ao não encontrarem condições favoráveis, invertem seu signo histórico progressivo e, tendencialmente, degeneram em forças destrutivas. Ou seja, abre-se a possibilidade do perigo de uma regressão histórica.
Mais adiante, Marx e Engels referem-se ainda mais claramente aos dois “elementos materiais” de uma “subversão total” e definem: (i) o nível atingido pelas forças produtivas aprisionadas nas relações sociais e (ii) a existência de um sujeito social, como sendo as condições necessárias para abertura de uma época revolucionária: “São igualmente essas condições de vida que cada geração encontra já elaboradas que determinam se o abalo revolucionário que se reproduz periodicamente na história será suficientemente forte para derrubar as bases de tudo quanto existe; os elementos materiais de uma subversão total são, por um lado, as forças produtivas existentes e, por outro, a constituição de uma massa revolucionária que faça a revolução (…) se essas condições não existem, é perfeitamente indiferente, para o desenvolvimento prático, que a ideia desta revolução já tenha sido expressa mil vezes… como prova a história do comunismo.[iv]
Ou seja, em determinado momento do desenvolvimento das forças produtivas as relações sociais predominantes, de elemento de impulso do progresso social, se transformam em um obstáculo: a estrutura social não mais favorece a ampliação do progresso, e se transforma em um elemento reacionário de bloqueio, que ameaça a sociedade de estagnação, ou degeneração. Assim, enquanto a acumulação capitalista nos burgos medievais foi limitada, as relações feudais que estabeleciam obrigações sobre as cidades não impediam os avanços econômicos e sociais da burguesia.
O apaixonante tema das regressões históricas (sempre caro à tradição socialista, que considera a fórmula, socialismo ou barbárie, mais do que um slogan, um prognóstico), é, frequentemente, negligenciado. No entanto, o pulsar dos ritmos históricos foi, nas longas durações, irregular, pleno de descontinuidades. Ou melhor, mais do que isso, muito acidentado por verdadeiras fraturas de tempo, ou perigosos abismos em que o processo evolutivo parece mergulhar, bloqueando prometedoras possibilidades que estavam latentes, mas foram, dramaticamente, abortadas.
Este dilema permanece atual. Os perigos que ameaçam a vida civilizada no início desta terceira década do século XXI são incontornáveis. A crise econômica de 2007-08 foi a mais grave desde 1929, a guerra da Ucrânia é um laboratório da ameaça de confrontos mundiais pela supremacia no sistema de Estados, a pandemia internacional da covid-19 deixou a sequelas de milhões de mortos e o aquecimento global reduz o tempo histórico da transição energética para o agora e já. A crise do capitalismo é estrutural.
Karl Marx percebeu que a avaliação apresentada em 1848 tinha sido precipitada. O relógio da história se movia mais devagar do que ele tinha previsto. Mas essa lentidão não invalidava a perspectiva de que o capitalismo, em algum momento, mergulharia as sociedades em um turbilhão de crises crônicas. Oxalá estejamos à altura da esperança que Marx deixou como herança.
Não, Marx não era nem apressado, nem teimoso. Marx era um obstinado.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
Notas
[ii] . MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Porto, Presença, 1974. p.47
[iii] Em A Ideologia Alemã, Marx ainda não se trabalha com o conceito de relações sociais de produção. Essa observação, e outras igualmente úteis, foram recolhidas em A formação do pensamento econômico de Karl Marx, de Ernest Mandel.
[iv] . MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Porto, Presença, 1974. p.50
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