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MUNDO

Na medida em que a repressão se intensifica, os prisioneiros palestinos se preparam para o protesto do Ramadã

Os prisioneiros esperam que o público palestino participe de ações coletivas contra as medidas punitivas de Israel, que endureceram sob o governo de extrema-direita.

Por Sharona Weiss, tradução de Waldo Mermelstein
Reprodução

Texto originalmente publicado em As crackdown intensifies, Palestinian prisoners gear up for Ramadan protest (972mag.com)

 

Em 5 de março, os prisioneiros palestinos anunciaram planos para intensificar seu protesto contra o rigoroso tratamento que têm sofrido desde que Itamar Ben Gvir foi nomeado como ministro da Segurança Nacional de Israel. Ben Gvir, cujo cargo inclui a supervisão das prisões dentro das fronteiras de 1948 prometeu medidas duras sobre as condições dos prisioneiros palestinos, pondo fim ao que ele denomina de “condições de acampamentos de verão de terroristas assassinos”. Os prisioneiros lançaram uma série de ações em desafio a essas ameaças, que culminarão em uma greve de fome coletiva a partir do primeiro dia do mês de jejum do Ramadã.

De acordo com fontes palestinas que conversaram com o +972, bem como relatos na mídia palestina, os esforços coordenados dos prisioneiros poderiam impulsionar os palestinos em toda a Cisjordânia e de Gaza a se unir à resistência a outras formas de opressão israelense.

Desde sua nomeação em janeiro, Ben Gvir promoveu várias medidas sem precedentes contra prisioneiros palestinos – tanto aqueles que possuem cidadania israelense, considerados como “presos políticos”, quanto os provenientes dos territórios ocupados, incluindo Jerusalém Oriental. Essas medidas incluem limitar o uso dos chuveiros  a quatro minutos por pessoa;  restringir o fornecimento de água corrente a uma hora por dia em cada ala da prisão, o que em algumas prisões equivale a menos de um minuto de uso de água por pessoa; fechar as padarias para prisioneiros[1], diminuir o tempo para o exercício matinal; limitar as visitas familiares; realizar violentas batidas em alas da prisão; e aumentar o número de presos em que estão em confinamento solitário.

Além disso, Israel começou a ter como alvo os bens de ex-prisioneiros e os que estão agora presos que receberam um salário da Autoridade Palestina, ao passo que aqueles que possuem cidadania ou residência israelense estão agora ameaçados de ter seu status revogado com a mesma justificativa.

Cerca de 40%  dos homens palestinos foram encarcerados em algum momento de suas vidas desde 1967, e cerca de 70% das famílias palestinas têm um ou mais membros da família que passaram algum período em uma prisão e quase todos os palestinos foram atingidos pelo sistema prisional israelense. De fato, ao esmagar a resistência e manter o controle sobre os palestinos, o sistema prisional tem sido parte integral do regime de apartheid de Israel.

Esse sistema pode facilmente evitar ser fiscalizado, permitindo ainda mais o tratamento injusto. Por exemplo, as autoridades israelenses frequentemente empregam a detenção administrativa, uma prática que equivale a aprisionar palestinos (e, em casos extremamente raros, também judeus) por longos períodos sem acusações, sem provas e sem julgamento[2]. Atualmente, 915 palestinos são mantidos em detenção administrativa. E ao contrário das condições de “acampamento de verão” que Ben Gvir afirma que recebem, na realidade, os prisioneiros palestinos são mantidos em condições que ficam muito aquém dos padrões ocidentais, tendo menos de 3 metros quadrados de espaço por pessoa em suas celas, em comparação com entre 6 e 12 metros quadrados na maioria dos países ocidentais.

Apesar de sua ausência geral da mídia israelense, a questão dos prisioneiros está no centro das atenções da sociedade palestina e é comumente considerada como um gatilho potencial para uma resistência mais ampla. No momento em que centenas de milhares de judeus israelenses vão às ruas para protestar em nome da democracia, a um enorme segmento de cidadãos nega-se até mesmo um tratamento humanitário básico, com escassos recursos. E na medida em que o tratamento injusto de Israel aos palestinos piora sob o governo de extrema-direita, os prisioneiros estão se preparando para reagir.

Novos riscos

Uma preocupação central dos prisioneiros que estão organizando uma escalada nas táticas de protesto é o aumento das medidas punitivas enfrentadas pelas mulheres palestinas atualmente mantidas sob custódia israelense. De acordo com Milena Ansari, da ONG de direitos dos prisioneiros Addameer, “As condições das mulheres [prisioneiras] se deterioraram significativamente. Elas estão sofrendo um tratamento cada vez mais degradante e violento nas últimas semanas”.

Em 29 de janeiro, as forças especiais israelenses invadiram violentamente as celas das mulheres na prisão de Damoun, confiscando equipamentos eletrônicos. Toda a ala foi fechada por vários dias e foram proibidas visitas familiares e o uso de telefones públicos por um mês. Após o ataque, quatro mulheres foram colocadas em confinamento solitário por sete dias, enquanto a representante das prisioneiras – uma presa eleita pelas suas companheiras para representar seus interesses – foi transferida para a prisão de Neve Tirza. Ela permaneceu lá até 7 de fevereiro em condições humilhantes, com uma câmera de vídeo vigiando-a 24 horas por dia, 7 dias por semana, o que é psicologicamente estressante para qualquer pessoa, e é considerado particularmente degradante para as mulheres.

Outro elemento importante na repressão das autoridades israelenses é sua obsessão com os salários concedidos pela Autoridade Palestina (AP) aos prisioneiros e suas famílias. Enquanto os palestinos veem o salário como uma forma de assistência social destinada a apoiar as famílias cujo principal provedor foi preso, Israel o considera como o incentivo da Autoridade Palestina a atividades criminosas.

Sob o novo governo, os prisioneiros palestinos com cidadania ou residência israelense estão agora em risco de ter seus bens apreendidos ou de perder sua cidadania simplesmente por ter recebido um salário da AP – incluindo ex-prisioneiros que receberam dinheiro da AP antes que as novas medidas tivessem sido impostas.

De acordo com o Comitê de Famílias de Prisioneiros de Jerusalém, Israel já apreendeu os fundos de mais de 160 palestinos neste ano apenas em Jerusalém, metade dos quais são familiares de prisioneiros e não estão presos. Israel também ordenou a apreensão de 500.000 shekels (148.000 dólares) e um veículo de dois prisioneiros recentemente libertados que possuem cidadania israelense, Maher e Karim Younis, por supostamente receberem apoio financeiro da AP.

Estes parecem ser os primeiros de muitos ataques: a ONG Addameer obteve uma lista, criada por órgãos de segurança israelenses e vista pelo +972, com 243 nomes de ex-prisioneiros e presos palestinos atuais cujos bens as autoridades estão planejando apreender.

“Há manifestações pela democracia nas ruas neste momento e, no entanto, aqui vemos pessoas serem expostas à lei sem [direito a] recurso, e tais medidas estão sendo até promulgadas sobre os cidadãos”, declarou ao +972 Abeer Baker, um advogado palestino de direitos humanos, referindo-se em particular à nova lei que permite a revogação do status [de residente em Israel] e a expulsão. “Isso não tem sem precedentes e, no entanto, ninguém fala nada porque são palestinos.”

Expulsar prisioneiros palestinos não é uma prática nova. Akevot, um grupo israelense de pesquisa de arquivos, divulgou recentemente documentos sobre uma operação semelhante a do governo, que ocorreu entre 1970 e 72: grupos de prisioneiros palestinos foram presos, receberam água, um chapéu e um dinar jordaniano antes de serem enviados para a fronteira com a Jordânia. Mais de 800 prisioneiros palestinos foram expulsos dessa maneira durante esse período de três anos. A prática foi encerrada pouco depois de começar, possivelmente influenciada por pressão significativa e mensagens do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e de outros grupos internacionais.

Enquanto Israel afirma estar implementando essas novas medidas por causa do dinheiro que os prisioneiros e suas famílias recebem da AP, o ex-membro árabe do Knesset (Parlamento israelense) Basel Ghattas, que esteve preso por cerca de dois anos entre 2017 e 2019, declarou ao +972 que essa justificativa é profundamente enganosa. “A grande questão que está sendo utilizada é a do dinheiro… como se o dinheiro que está sendo pago pela AP estivesse sendo usado para apoiar o ‘terror”, explicou Ghattas. “Isso não é apenas falso, mas hipócrita, porque Israel recebe a parte mais significativa do dinheiro dado aos prisioneiros pela AP.”

Todos os meses, a Autoridade Palestina paga 400 shekels (U$ 110) por prisioneiro a uma empresa privada israelense contratada pelo Serviço Prisional de Israel para operar uma “cantina” nas prisões. Os presos palestinos, então, compram cigarros e alimentos para complementar suas refeições, muitas vezes insuficientes, bem como outros itens usando seu modesto salário pago pela AP – normalmente metade dos cerca de 2.000 shekels (U$ 550) que recebem, beneficiando ainda mais a empresa israelense. Portanto, o subsídio da Autoridade Palestina não está financiando o terror: está financiando principalmente uma empresa privada israelense.

Uma escalada mais ampla

Em resposta a esses acontecimentos, os prisioneiros palestinos lançaram uma série de ações coletivas. Eles enviaram uma carta dirigida ao povo palestino explicando sua resistência coordenada e pedindo aos palestinos que estejam prontos para sair às ruas.

Por várias semanas, os prisioneiros têm usado exclusivamente o uniforme marrom da prisão, que normalmente é usado apenas durante o transporte, como um pequeno símbolo de desafio. Em algumas prisões, eles também se recusaram a comparecer para a contagem. Em 5 de março, anunciaram que fechariam todas as alas  da prisão por três horas, continuariam organizando ações nos pátios da prisão e recusariam [se submeter] às inspeções diárias de segurança.

Vista de um exercício para guardas prisionais nas Autoridades Prisionais de Israel, Prisão de Gilboa, 5 de dezembro de 2022. (Avshalom Sassoni/Flash90)

Essas ações pretendem culminar em uma greve de fome em massa no início do Ramadã, que começa em 22 de março. O uso de greves de fome para protestar contra os maus-tratos de Israel aos prisioneiros, em particular em momentos cruciais da resistência palestina, tem uma longa história e já provocou um amplo protesto em toda a sociedade palestina. Na véspera da Segunda Intifada, em 2000, 1.000 prisioneiros palestinos lançaram uma greve de fome de um mês em protesto contra as condições das prisões, que foi seguida por manifestações de massas em solidariedade com os prisioneiros.

Alguns preveem que o efeito da greve de fome deste ano poderá ser sentido mais além dos muros das prisões. Em sua carta a Ben Gvir, os prisioneiros advertiram que suas medidas desumanas “incendiarão a região” e levarão a uma “guerra de libertação”. Após o massacre de Jenin e o pogrom em Huwara[3], os imãs transmitiram uma mensagem de prisioneiros palestinos pedindo que as pessoas se insurgissem em sua solidariedade.

Ghattas reiterou a possibilidade de [que ocorra] uma escalada mais ampla e alertou para a resposta israelense a uma revolta coletiva. “A situação dos presos políticos é uma questão muito, muito sensível, não algo [que possa ser] escondido e colocado numa gaveta”, explicou. “Isso pode realmente se transformar em uma intifada, e o Shin Bet (Serviço de Segurança israelense) sabe disso e não quer que aconteça.”

Sharona Weiss é uma ativista e fotógrafa que vive em Haifa. Ela faz parte do coletivo de fotografia Activestills e tem atuado nas lutas na Cisjordânia, incluindo Jerusalém, nos últimos sete anos. Ela também trabalhou na defesa de várias organizações de direitos humanos e grupos de base, com o objetivo de amplificar as vozes dos colonizados e destacar suas histórias.

 

[1] Nota da edição brasileira: Segundo a matéria citada, Ben Gvir declarou de forma sádica que “os prisioneiros não podem ter tal privilégio. Como podem ter pão fresco todos os dias? Que absurdo”.
[2] Nota da edição brasileira: essa disposição brutal, como muitas outras, tem origem nas tenebrosas regulamentações utilizadas durante o mandato colonial britânico na Palestina (1922-1948) e foram em grande parte incorporadas à legislação israelense (Administrative Detention | Addameer).
[3]  Em 27 de fevereiro, milícias de colonos da Cisjordânia invadiram e destruíram a pequena aldeia palestina de Huwara, sob a proteção de soldados israelense, no que foi denominado o “pogrom de Wuhara, como indica a judia israelense nascida no Irã, Orly Noy  (The pogrom is the point (972mag.com)
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