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Viva Chico Science, um revolucionário profundamente pernanbucano

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

A última segunda-feira, dia 13 de março, marcou o aniversário de 57 anos do nascimento de Francisco de Assis França, que entrou para a história como Chico Science. Nascido em Olinda -PE, o menino de Riacho Doce faleceu jovem, com 31 anos, quando foi vítima de acidente de carro, pouco antes de seu aniversário, em um 2 de fevereiro, Dia de Janaína, Rainha do Mar.

Chico ficou mundialmente conhecido ao lado da lendária banda Chico Science & Nação Zumbi, criada em 1991, na capital pernambucana. Chico foi o último brasileiro a criar um ritmo musical. O manguebeat, além da música, influenciou o cinema, a estética, a moda, a literatura, e toda uma cultura popular durante os anos 90.

A partir dos ritmos regionais de Pernambuco e do nordeste brasileiro, como o maracatu, o coco de roda, o samba reggae, incorporando elementos da black music, do soul, do rap, com a presença marcante da guitarra elétrica e de uma estética moderna, o artista influenciou gerações.

Fã de James Brown, de Grandmaster Flash e de Michael Jackson, Chico entrou em 1984 para um dos principais grupos de dança de rua do Recife, a Legião Hip Hop. Três anos depois, em 1987 formou seu primeiro grupo musical, o Orla Orbe, um conjunto de black music que acabou antes de completar um ano.

Foi em 1991, ao entrar em contato com o bloco afro-pernambucano Lamento Negro, de Peixinhos, subúrbio de Olinda, que reunia ritmos da cultura popular como o maracatu rural e o coco de roda, realizando trabalho popular nas periferias de Recife, que sua história mudaria de vez. Inspirados no grupo norte-americano “Afrika Bambaataa & the Zulu Nation”, surge Chico Science & Nação Zumbi. Ao olhar para um dos grupos pioneiros do rap e da música eletrônica, e o abrasileirar, fazendo referência ainda a Zumbi dos Palmares, maior herói da luta negra no nosso País, já devam uma demonstração do que poderia vir.

Ao misturar os ritmos populares de Pernambuco com o rap, funk, rock e música eletrônica, logo chamaria atenção da mídia. Gilberto Gil chegou a dizer que era o mais importante acontecimento na música brasileira dos últimos vinte anos. Em eleição feita ano passado pelo jornal O Globo, o primeiro álbum do grupo, Da Lama ao Caos, foi eleito o melhor álbum brasileiro dos últimos 30 anos.

Chico influenciou conterrâneos como Mundo Livre S/A, Banda Eddie, Cordel do Fogo Encantado, Mombojó, Otto. Além de influências diversas ao longo das décadas e de diferentes ritmos musicais, como Cássia Eller, Sepultura, Arnaldo Antunes, Charlie Brown Jr, e FBC.

O Movimento Manguebeat e a denúncia ao neoliberalismo

Recife nos anos 90 foi declarada pela Organização das Nações Unidas uma das 4 piores cidades do mundo. O cenário internacional era do discurso sobre o fim da história. A queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética, a derrota do movimento Terceiro Mundista, apareciam como uma vitória do capitalismo. O neoliberalismo entrava em nosso país com as promessas sobre globalização, modernização e progresso. Era dito que o Brasil precisava se adequar para entrar de vez no cenário mundial.

Nosso país, recém saído da ditadura militar, enfrentava as consequências da falha de uma modernização conservadora imposta pelos militares. As discussões sobre como seria nossa democracia, sobre os novos movimentos sociais que surgiram na década anterior, durante os anos 80, tudo isto cai por terra, quando o neoliberalismo entrava em nosso país. Sindicatos foram enfraquecidos, centenas de associações de moradores fecharam pelas principais cidades brasileiras, o discurso individualista do homem neoliberal somado às doutrinas de choque do neoliberalismo, faziam efeitos devastadores.

O neoliberalismo em sua visão de mundo coloca o eu como ponto central de todas as articulações. Não existe uma razão coletiva. O ser humano está só. Assim não existe um passado coletivo, e sem uma história em comum, sem um passado, não se tinha como projetar o futuro. No seu anúncio de fim da história, ele afirma que não existe alternativa. O eu neoliberal vive em uma prisão do eterno agora.

É nesse contexto social que surge um movimento cultural e político, na capital pernambucana, e que passa a representar bem o espírito dessa época angustiante. Há pouco mais de 30 anos atrás, em 1992, um grupo de jovens artistas, criticaram o marasmo cultural vivido pela cidade e as condições de pobreza a que os recifenses estavam submetidos, criando assim o Movimento Manguebeat.

Ao entrar em contato com as obras de Josué de Castro, e seu romance Homens e Caranguejos, Chico e outros nomes do movimento como Fred Zero Quatro e Lúcio Maia, resolveram usar o mangue como uma metáfora para a cidade, a lama como uma metáfora para a pobreza, o caranguejo como uma metáfora para o pobre abandonado, e Recife se tornava a Manguetown.

Em 1992, o manifesto “Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred Zero Quatro, é distribuído para a imprensa com todo o conceito daquela nova cena. O manifesto questionava a narrativa de progresso que era sugerida nos anos 90. Com um espírito questionador, o manifesto refletia a fome, a ideologia, a falta de cultura, e a miséria.

O álbum Da Lama ao Caos, traz este sentimento e em músicas como “Computadores fazem arte”, “Rios, Pontes e Overdrives” e “A Cidaade”, realizam uma denúncia desse progresso que chega apenas para alguns. Onde o novo introduzido pelo neoliberalismo coexiste com o velho. O moderno convive com o arcaico. Os computadores e arranha-céus convivem com os mocambos e alagados onde o homem disputa comida com urubus, caranguejos para fugir da fome.

O movimento manguebeat buscava fazer uma mistura entre o tradicional e o moderno como solução. Intelectuais como Ariano Suassuna e Josué de Castro, se uniam a culturas populares como Jackson do Pandeiro e Mestre Salustiano, que se misturavam com as guitarras do rock e as batidas do rap. Formando uma síntese de algo novo. O manguebeat desenvolveu uma forma própria para exprimir visualmente essa nova mistura musical. O chapéu de palha se une aos tênis coloridos, os colares aparecem junto a óculos escuros, e assim se tem toda uma nova estética.

Essa parte de Caranguejos com Cérebro, o manifesto inaugural do MangueBeat mostra bem como a globalização era recebida por esses artistas

“Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcolm McLaren, Os Simpson e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.”

O Manguebeat incorporava o global a partir de uma perspectiva local. Não era uma total e completa aceitação daquilo que vem fora. Pelo contrário, era uma adaptação do que era bom no cenário internacional, por meio de uma perspectiva brasileira, nordestina, pernambucana. Se constrói assim uma identidade nacional própria, que não é dacalque e nem cópia de algo, mas que também não permanece presa ao passado. É tradicional e atual ao mesmo tempo. É internacional, ao mesmo tempo que é profundamente nacional e profundamente pernambucano.

O nosso país, como um país subdesenvolvido e de capitalismo dependente e desigual, tem sua soberania nacional combatida, acessando apenas algo como uma sub soberania. Isso se expressa fundamentalmente na cultura, onde temos nossa cultura nacional e regional negada, sendo imposto uma cultura importada dos países imperialistas, principalmente dos Estados Unidos. O movimento manguebeat afirmava uma cultura popular, uma identidade nacional, que marcado por uma pernambucanidade fosse genuinamente brasileira. Chico ajudou a construir no Recife dos anos 90, uma afirmação nacional popular no campo simbólico, atuando sobre a memória e sobre a cultura.

Ao momento que reivindica o que se passou, mas não fica preso nele, e sim faz uma visita ao passado para construir o novo no presente e se afirmar que se pode ter um futuro diferente, o movimento manguebeat enfrenta a lógica do neoliberalismo de um presente eterno e angustiante. O movimento mangue afirma que a gente tem história, que temos ancestralidade, que temos passado, mas precisamos ser atuais, que o que se foi serve para construir algo novo.

A abertura de Da Lama ao Caos, Monólogo ao Pé do Ouvido, é uma narração de Chico Science, e apresenta isso com nitidez:

“Modernizar o passado é uma evolução musical. Cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas! Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos. O medo dá origem ao mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar. O orgulho, a arrogância, a glória, enche a imaginação de domínio. São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade. Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os panteras negras. Lampião, sua imagem e semelhança. Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.”

Nessa faixa ao mesmo tempo que se faz um resgate ao passado se afirma este passado. Chico realiza uma luta de classes pela memória. É uma disputa do passado por parte dos oprimidos e explorados. São os sujeitos que têm a sua história negada nos livros de histórias e historiografia oficial contando e cantando seus heróis.

Sem um passado, sem uma memória coletiva da história, não se tem a construção de um futuro. Chico e o movimento manguebeat afirmam e reivindicam um passado popular a partir daqueles que resistiram e lutaram, e assim, se pode construir um futuro anunciado na organização coletiva e na luta, afinal: “o homem coletivo sente a necessidade de lutar”. Nisso, na reivindicação do coletivo, Chico mais uma vez, enfrenta toda a ideologia neoliberal de sua época.

Diante de um cenário político, de um jornalismo e pensadores que anunciavam o fim da história e pregavam o individual. Chico cantou sobre Revolução e revolucionários, sobre a cidade e seus habitantes, sobre os problemas do povo, sobre a fome, o desemprego e a desigualdade. Chico cantou sobre nós.

Nas sagradas ruas de Olinda, seu nome ainda é, e para sempre será lembrado. No Recife, seu rosto e grafites em sua homenagem, tomam conta do espaço urbano.

Seu ensinamento, enraizado em uma profunda dialética popular, que se organizando se pode desorganizar, e desorganizando se pode organizar, ainda é atual e permanecerá sendo, enquanto existirem os homens caranguejos, enquanto os mangueboys continuarem pelas avenidas das cidades, enquanto existirem buxos vazios.

Obrigado por tudo mestre Chico. Em seu nome beberemos cervejas antes e depois do almoço!!