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MUNDO

Dez Teses Políticas para 2023

Contribuição para o debate sobre o cenário político nacional e internacional, elaborado pelo coletivo de camaradas Semear o Futuro. São dez teses em que se procura sintetizar os principais traços de um mundo em convulsão e de um país em que os ritmos da luta aceleram, terminando com propostas para a luta que aqui são deixadas ao debate e à crítica fraternal.

Semear o Futuro, de Portugal
Pete Linforth por Pixabay

Índice

Primeira parte: um mundo cheio de perigos 

Tese I. As três crises da ordem neoliberal 

Tese II. Ucrânia: uma agressão imperialista 

Tese III. O neofascismo não pode ser normalizado 

Tese IV. Começa a recessão global 

Parte Dois: Portugal à beira da crise orgânica? 

Tese V. A crise do Governo já se iniciou 

Tese VI. Marcelo, bombeiro e incendiário 

Tese VII. O neofascismo canibaliza a direita

Teses VIII. A esquerda e o risco de um recuo sem retorno

Tese IX. A nova vaga de lutas é combustível para uma viragem à esquerda 

Tese X. Três propostas para uma polarização à esquerda 

Primeira parte: um mundo cheio de perigos 

Tese I. As três crises da ordem neoliberal 

A crise capitalista de 2008 foi um ponto de viragem. Hoje, é evidente, como não o foi então, a  profundidade da rutura que representou (ainda que tenha sido um ponto agudo de um processo iniciado  antes e que se continua a aprofundar). Há três grandes traços do capitalismo no século XXI, relacionados  entre si, que, desde então, se tornaram centrais e influem na luta de classes em todas as escalas. 

O primeiro é a crise da ordem internacional de estados: a hierarquia entre estados herdada da segunda  guerra mundial e aprofundada com a queda do muro de Berlim está em crise profunda e não é expectável  que se restabeleça. Uma combinação de limites e erros do imperialismo hegemónico (não único!), o norte americano, no terreno interno e externo, económico, financeiro e militar, abriram as brechas por onde  podem ascender competidores regionais (Rússia, Turquia, Irão, Índia) e um grande competidor global, a  China. Por estas brechas, poderão também explodir afluxos revolucionários, porém o que hoje predomina  é o crescente choque entre EUA, UE, Japão, Austrália e afins, por um lado e um novo eixo emergente,  capitaneado pela China. As várias nações (e classes e setores de classe, dentro delas) são pressionadas a  tomar posição neste confronto. Voltamos a um cenário mundial de clivagens geopolíticas em escalas  diversas. Não há imperialismos menos maus. A luta dos internacionalistas não é em defesa de mundo  multipolar, em que várias potências dividam irmãmente o globo à custa dos povos ― divisão essa apenas  alcançável pela guerra. É contra o abismo suicidário para o qual este choque nos empurra que lutamos. A  nossa intervenção neste confronto pauta-se pela independência face a blocos e governos; pela defesa  da soberania das nações oprimidas(e não dos espaços «seguros» de potências regionais); pela prioridade  do confronto com o imperialismo do «nosso lado» ― ou seja, a NATO, os EUA e a UE ―; e pela  transformação da luta entre nações em mobilização internacional dos povos contra os senhores do  mundo. 

Outro legado da crise de 2008 tem vindo a ser apelidada de esgotamento do modelo neoliberal. Tal não  significa o abandono ou superação do neoliberalismo, ainda que em diversos momentos e latitudes se  ensaiem variantes da cartilha. A razão profunda deste esgotamento é a penetração das relações de  mercado em todas as esferas em que, até ao último quartel do século XX, o capital só tinha entrado  indiretamente (pensemos na mercantilização das prisões, dos espaços públicos, da saúde, da educação,  dos direitos de emissão de carbono, das próprias lutas sociais e até da inteligência e das emoções, via IA  e redes sociais ― todas as relações internas à sociedade e dela com a natureza). O resultado é a rutura  generalizada dos ciclos de reprodução social, biológica e ecossistémica, inaugurando um capitalismo da  catástrofe e perigando a civilização. Toda a vida social e planetária tornou-se um campo de batalha contra  o capital. É essa a marca das grandes lutas globais: pelo clima, contra os feminicídios, contra a violência  racista, pelas vidas LGBTQIA+, pela saúde, pela educação, contra a carestia, pelo direito a emigrar, pelos  bens comuns, pela sobrevivência das maiorias ― lutas diversas em todos os aspetos da sua existência, mas tendencialmente proletarizadas. Neste contexto, os novos fascismos apresentam o projeto ecocida  consciente, a redução de toda a política a necropolítica em nome do avanço do capital; o extremo-centro  propõe a improvável gestão do que está. O modelo emergente chinês não exclui, por si, nenhum destes  polos, antes pode combiná-los. A aposta ecossocialista é tornar consciente a unidade dessa multidão  global em que se intersectam todas as lutas, unificando um proletariado diverso que luta pela vida e pelo  trabalho. 

Como consequência destes dois traços, assistimos a uma tendência à crise orgânica dos regimes políticos  vigentes. Ou seja, em cada país (a ritmos desiguais, com características várias) tanto as classes subalternas  como as dominantes tendem a descolar dos modos de governação em vigor, uma vez que eles se  demonstram incapazes de solucionar, e muitas vezes de gerir, as contradições profundas do modo de  produção. «Os de cima já não conseguem governar e os de baixo não aceitam ser mais governados como  antes». Contudo, dada a profunda derrota que o próprio neoliberalismo e a restauração do capitalismo  nos estados ditos socialistas, as classes trabalhadoras não tendem a conseguir (até agora) transformar  essas crises em oportunidades revolucionárias ― e quando estas surgem, as fragilidades herdadas  tornam-se ainda mais evidentes. Já foi assinalado que é nestes tempos que «os monstros despertam». Os  nomes dados a esta crise variam: de representatividade, das democracias liberais, dos partidos, etc. Ou  polarização política. Vimos em países como os EUA, a Grã-Bretanha, França, Itália ou Brasil os estertores  desta decadência. O surgimento de novos partidos, o peso acrescido da religião na política, a irrupção da  violência e do ódio como formas de disputa costumeiras, o questionamento da ciência ou do jornalismo  ou a irrupção de movimentos populares híbridos e «inorgânicos» (p. ex. os coletes amarelos) são sintomas  desta crise orgânica. Nos países ligados ao eixo imperialista hegemónico em decadência, este processo é  mais acelerado; mas não é impossível que ela venha a explodir de forma mais descontrolada em países  em ascensão ― veja-se a crise da China na gestão da pandemia ― ainda que o momento ascendente que  vivem possa ser um importante retardador. Nas democracias ocidentais o caso é mais agudo e dá lugar a  uma disputa nas alturas entre projetos de dominação que se confrontam e alternam sucessivamente. É  este o terreno fértil para a ascensão das extremas-direitas. Face ao período anterior, alteram-se as  coordenadas da ação política; e a inércia é o maior perigo para as esquerdas. As forças socialistas devem  retomar uma visão estratégica ofensiva, ainda que partindo de posições táticas defensivas, herdadas do  passado. O ritmo da mudança de correlações de forças e de transformação das impossibilidades em  necessidades acelerou. Transformar a crise orgânica da dominação burguesa em possibilidades de  transformação antissistémica ― deve ser para isso que nos preparamos. O horizonte de governos dos  trabalhadores e dos povos que apliquem programas de reformas sociais e ecológicas em prol das  maiorias trabalhadoras, através de «incursões despóticas» no despotismo do mercado, deve ser  assumido. Na luta contra as ofensivas neoliberais, é possível acumular forças, estabelecendo alianças e  fazendo o ideário ecossocialista penetrar na consciência popular e, assim, passar da defensiva ao contra ataque sem perspetivar um momento de equilíbrio intermédio. Com a crise orgânica do capital, a visão  gradualista dá lugar uma perspetiva de rutura por saltos. O combustível social para tal só pode advir de  poderosas lutas sociais ― elas estão cada vez mais presentes e nada indica que, para lá de refluxos  temporários, devam desvanecer. O retorno da estratégia é também o da política socialista. Elaborá-la na  prática é o nosso desafio coletivo.

Tese II. Ucrânia: uma agressão imperialista 

num contexto de disputas globais 

No centro do cenário de crises entrelaçadas está a guerra na Ucrânia. Esta tem origem na tentativa da  Rússia de avançar num projeto imperialista regional, revertendo a perda de status internacional que a  restauração do capitalismo na ex-URSS e a crise subsequente acarretaram. É uma guerra de agressão  capitalista e imperialista que procura impor pela força, ao povo ucraniano e às restantes potências  imperialistas, uma nova divisão (de uma parte) do mundo. Falhada a tentativa de Putin, ainda no início do  século XX, de conseguir avançar no seu projeto imperialista em acordo com a tríade (EUA-UE-Japão), a  Rússia optou pela via militar para ser tida em conta na reorganização da divisão imperial do mundo. A  expansão para leste da NATO demonstrou a impossibilidade dessa integração imperialista da Rússia se  dar pela via económica e diplomática (apesar das boas relações com a Alemanha e a integração das duas  economias). Uma vez que a integridade, soberania e segurança da Rússia (possuidora do maior arsenal  nuclear do planeta) nunca esteve ameaçada, a presente guerra só pode ser vista como defensiva da parte  da Rússia face ao avanço da NATO se considerarmos a defesa imperialista do espaço de influência que a  Rússia reclama para si ― defesa essa que não cabe aos internacionalistas endossar. 

A base da política anti-imperialista para esta guerra é a defesa da autodeterminação do povo ucraniano,  logo a exigência da retirada total das tropas russas ― não excluindo a defesa de um cessar-fogo como  passo para este objetivo. Concomitantemente, o ponto de vista internacionalista e anti-imperialista  assume uma política contra a escalada interimperialista e contra a transformação da justa guerra  defensiva do povo ucraniano numa ofensiva imperialista que vise alargar o domínio do eixo ocidental.  Pelo que nos opomos à militarização em curso, ao aumento dos orçamentos militares, às sanções contra  a Rússia (não por princípio, mas por fazerem parte de uma disputa de mercados) e reforçamos a nossa  luta contra NATO. Não nos imporão a escolha entre a defesa da justa luta da nação ucraniana e oposição  ao imperialismo dito ocidental. Nem nos enganamos com pacifismo capitulador que resvala para soluções  à la Kissinger em que as potências de ambos os lados retalhem uma nação soberana em nome da paz dos cemitérios, antessala de novas guerras. É verdade que o contexto de disputas internacionais faz com  que, conjunturalmente, os internacionalistas se vejam do mesmo lado da barricada que o imperialismo  hegemónico. Não é uma novidade histórica, o mesmo aconteceu aquando do maior conflito militar da  história, a Segunda Guerra Mundial. Esta coincidência dá-se porque, conjunturalmente, por interesse  próprio e não por qualquer natureza benévola, o imperialismo ocidental vê-se na contingência de apoiar  uma nação oprimida ― a Ucrânia ― contra uma agressão imperialista ― da Rússia. É esse acaso, e não a  natureza pretensamente democrática ou contra-hegemónica de qualquer um dos blocos imperialistas,  que justifica eventuais unidades táticas da parte dos internacionalistas. Elas são temporárias, podem  alterar-se e não apagam o objetivo estratégico: a luta contra todos os imperialismos, a começar pelo  «nosso»

Tese III. O neofascismo não pode ser normalizado 

Como é apanágio dizer-se, o recrudescimento global dos fascismos é a expressão mais violenta da crise  do capitalismo. Eles são, simultaneamente a aposta consciente de setores classe dominante (velhos  fascistas adormecidos junto com ultraliberais extremados e o resultado da desagregação social e política 

gerada pelo sistema. Expressam de forma exacerbada os alicerces da dominação de classe ― que não é  meramente económica, mas também racial, de género, sexual, imperial e ecológica ― pelo que brotam  com algum grau de espontaneidade dos esgotos da sociedade. Porém combinam-se com projetos  políticos ultraconservadores e/ou neoliberais e com velhos fascismos sobreviventes para dar corpo um  tipo de movimento político distinto das restantes representações do capital. O fascismo é uma doença  social e política tão distinta das outras formas de dominação burguesa como o cancro da gripe. Não são  apenas uma direita mais à direita; ainda que mantenham ligações às restantes direitas e delas dependam  para chegar ao poder, os novos fascismos são algo diferente. Muito mais perigoso. A nomenclatura é  secundária: extrema-direita, nacionalismo autoritário, neofascismo ou pós-fascismo. A coisa em si é que  interessa. 

O perigoso novo elemento é o surgimento de partidos e movimentos de massas de direita que visam  subverter a ordem democrático-liberal ― combinando a disputa eleitoral e a mobilização reacionária  de massas ― para, a partir do poder, aplicar uma necropolítica extremada que restabeleça um novo  equilíbrio capitalista. E que, ao mesmo tempo, armem ― literalmente ― as sociedades ao serviço dos  confrontos com estados rivais na disputa por mercados. Como os velhos fascismos, só o podem fazer  impondo derrotas históricas aos movimentos populares e às esquerdas (e até aos democratas em geral),  impondo a atomização (ou eliminação) das resistências. Por isso, são o elemento mais perigoso da atual  situação e a sua derrota é uma prioridade estratégica. Não se transformarão numa doença crónica, com  a qual se pode sobreviver ainda que com penas; serão extirpadas ou consumirão todo o organismo social. 

O uso que fazem da violência política não requer a formação de milícias ao estilo clássico (ainda que tal  suceda em alguns casos) ― a época da fluidez nos movimentos sociais é real também para a reação. Mas  a violência política é parte essencial de todos movimentos neofascistas ― sejam os «lobos solitários», os  sindicatos da polícia, as conspirações nas forças armadas, os assassinatos de ativistas ou os pogroms racistas. Em Portugal não é diferente. 

É um movimento de massas, ainda que não de maiorias ― tal como o fascismo clássico nunca foi  maioritário, eleitoralmente e não só, dependendo, por isso, da colaboração e capitulação de muitos  supostos adversários. O extremar de uma base minoritária (mas não marginal) como forma de atrair  amplas massas despolitizadas e descontentes, neutralizando e cooptando adversários para isolar  inimigos: eis o seu modus operandi para chegar ao poder. Uma estratégia simétrica é necessária para  derrotar tais inimigos. Há a tendência (com sucesso eleitoral momentâneo) de o extremo-centro se  animar nesta disputa, assumindo-se como polo oposto do fascismo: Macron em França e Marcelo e Santos  Silva, por cá, procuram pedalar este tandem. Para o fazer, aceitam o fascismo como parte do jogo político  normal e, pela incapacidade do extremo-centro em aplicar uma política transformadora, alimentam o  pântano em que tão bem medra a extrema-direita. Ainda que seja necessária a inteligência tática para  estabelecer acordos momentâneos com estas forças, só a esquerda e a mobilização popular podem  cortar o mal pela raiz. As vitórias eleitorais contra o fascismo são determinantes, mas não permitem  derrotar o mal, cujas raízes penetram mais profundamente. 

Também à esquerda é necessário ativar uma base social radical, enfrentando de frente os eixos de que se  alimenta o fascismo: a espoliação económica, a discriminação racial, a misoginia e LGBTQIA+fobia e o  negacionismo ecocida. O combate às desigualdades económicas é essencial, mas insuficiente; a polarização de uma base de massas carece de uma ofensiva programática e ideológica antirracista,  feminista, LGBTQIA+ e climática. Em marcha, um movimento interseccional de centenas de milhares  arrastará milhões e neutralizará o lado de lá do espectro político. Isolado, o fascismo pode ser enfrentado  diretamente e remetido para a marginalidade ou inexistência.  

Tese IV. Começa a recessão global 

A crise global de 2008 não foi apenas uma das recorrentes crises cíclicas do capital. Ela inaugurou um  momento longo de agonia (não necessariamente terminal, mas prolongado) de todo o sistema. Após uma  década de dinheiro barato e crescimento anémico ― um pífio ciclo curto de crescimento ― fatores  extraeconómicos voltaram a abrir a ferida. A forma que a nova fase de turbulência económica assumiu  foi, inicialmente, a da inflação. Sem capacidade de atacar o problema na origem, os médicos do sistema  preparam como cura a morte do paciente: 2023 deverá ser o início de uma nova recessão. Parece ser  essa a política dos grandes atores financeiros globais. E nada indica que assim consigam mais do que  mitigar o mal inflacionário. O preço mais alto será pago por quem vive do seu trabalho. Mas também pelos  pequenos empresários, as classes médias e as economias dependentes. Todos os fatores de crise política  e social tenderão a acirrar-se neste cenário; o que, por sua vez, irá influenciar a economia, tornando quase  impossível prever desfechos no médio-prazo. É, contudo, possível prever que as lutas económicas (por  salários, apoios sociais, contra os despedimentos) voltarão a ganhar peso e que, pelo menos até o  desemprego subir de forma grave, a classe trabalhadora organizada terá nelas um papel de destaque. É o que está a acontecer no Reino Unido, na Bélgica, no Estado Espanhol e em França e, em menor medida,  também em Portugal. Estas devem coabitar com outras formas de lutas que ganharam peso nos anos  recentes, em particular os vários movimentos contra as discriminações e pelo clima; assim como poderão  ressurgir explosões do tipo indignados. Estas lutas irão conviver, e até misturar-se, com outro tipo de  irrupções sociais híbridas ou até diretamente reacionárias, como foram os coletes amarelos ou os  movimentos antivacinas. O cenário será desafiante: uma política ousada, que não tenha medo de ser  apelidada de populista, um programa anticapitalista de resgate das maiorias sociais e do planeta e muita  audácia e flexibilidade tática serão necessários para que esta previsível torrente desague à esquerda. 

Parte Dois: Portugal à beira da crise orgânica? 

Tese V. A crise do Governo já se iniciou 

Portugal não está isolado deste contexto global. Não obstante a relativa estabilidade que o país viveu até  recentemente, a crise pode explodir no próximo período, interrompendo o mandato de Costa, com  resultados inesperados nos (des)equilíbrios políticos nacionais. As sucessivas crises políticas e  remodelações no primeiro ano do Governo de maioria absoluta são sinais dessa possibilidade. Elas  demonstraram uma dinâmica incontrolável que se combina com o recrudescimento das lutas sociais, o  aprofundar da crise económica e a consolidação da extrema-direita. Isto, num cenário de guerra e choques geopolíticos. Estes fatores podem combinar-se acelerando os ritmos políticos, interagindo com  fatores como a divisão interna do PS. Daqui pode resultar uma crise política inesperada a qualquer  momento. Também é possível que o Governo, o PS e Marcelo consigam gerir os ritmos políticos, evitando  cenários de descontrolo. Mas a derrapagem já começou. 

No atual cenário de inflação, a aposta do Governo é a de aproveitar para acertar as contas públicas,  desequilibradas durante pandemia. Acumular via impostos diretos, aproveitando a inflação devolver o  mínimo e manter o investimento em baixa, aceitando a recessão como fatalidade ― esta é a receita, com  os olhos postos no défice. Trata-se de um ajuste através dos salários utilizando a inflação. 

A obsessão pelo défice é estrutural na direita e no PS, pois responde ao projeto de uma integração  subalterna no espaço europeu, captando capitais externos que alavanquem o crescimento na ausência de  investimento privado autóctone e de investimento público (que só poderia ser feito taxando os mais ricos  e intervindo no mercado, nomeadamente financeiro). É unanime, essa estratégia, entre a classe  dominante nacional e por isso não há outro plano nos seus vários partidos ― PS incluído. Em nenhum  deles há qualquer ala crítica que proponha um plano distinto, nem sequer o regresso a um keynesianismo,  agora de tipo verde (diferem entre si nos ritmos e intensidades e, no caso do Chega, na utilidade do regime  democrático para aplicar tal política). Por isso, são sempre adiados os grandes projetos, nomeadamente  infraestruturais, e o PRR não poderá ambicionar mais do que injetar sangue novo sem fazer mudanças  de fundo. Quando alguns dirigentes europeus e norte-americanos ensaiaram uma saída distinta, logo no  pós-pandemia, Costa ainda namorou a ideia. Mas a guerra pôs fim à audácia e Costa, como sempre,  adaptou-se. O PRR, no que for aplicado, -não fará grandes reformas (menos ainda progressistas). O  capitalismo tende a bloquear o capitalismo. 

O que o Governo ensaia, isso sim, são contrarreformas. A forma que tem de o fazer difere, de facto, da  da direita. Enquanto esta gosta dos cortes a frio, sem anestesia, o PS esconde, macaqueia e compensa  (ainda que de forma pífia). Os maiores exemplos desse jeito costista foram a antecipação de meia pensão,  atrelada ao corte permanente das pensões futuras, e o acordo de rendimentos (que seria insuficiente,  não fosse fictício) que escondia uma borla fiscal às empresas. O mesmo se com a proposta de abertura de  centros de saúde públicos… com gestão privada; das propinas em função dos rendimentos; do  reconhecimento da relação laboral (mas também de intermediários) no trabalho por plataformas.  Noutros casos, são ensaiados ataques diretos: no modelo de contratação de professores e na  possibilidade de aceder a explorações de gás-fóssil, precisamente duas das mais recentes frentes da luta  social. Ou seja, as sandes que Costa serve ao povo pode vir num belo brioche com sementes de sésamo.  Mas não deixam de ser sandes de merda. Nada disto significa que o Governo não ganhe tempo com tais  malabarismos e não adie o desgaste de parte da sua base social. Não há que desprezar, sobretudo, o  aumento do salário mínimo (mesmo sabendo que, por trás, está a «minimização» de quase todos os  salários) ou medidas como a da renegociação dos empréstimos bancários. Em parte, junto com os apoios  pontuais dados em outubro e novembro, estas políticas também explicam que o crescimento das lutas  sociais seja ainda bastante gradual. Podem até conter o ritmo a que se degrada a governação, mas é  improvável que impeçam essa queda. 

2023 será um ano de recessão, sem que se preveja uma superação da inflação. Se o desemprego continuar  a aumentar (já está a acontecer, ainda que pouco e a partir de um patamar baixo) a situação social, já muito grave, deteriorar-se-á muito. As contas públicas tenderão ao desequilíbrio, aprofundando a crise  na saúde e na educação, cujo investimento tenderá a diminuir. É difícil não prever um aumento da  contestação social; mas tal deve ser visto à luz do atual contexto internacional e na presença de um  movimento neofascista de extrema-direita. A natureza da revolta, por direitos e salários, tende a  privilegiar saídas pela esquerda. Mas a atual disposição de forças político-partidária facilita a sua captura  pela direita e extrema-direita. Neste processo, pode chegar a Portugal o tipo de crise que chamámos  «orgânica», uma crise de representação geral que pode ser particularmente perigosa. 

A esquerda pode e deve antecipar a um cenário de crise política profunda, aproveitando o tempo que as  circunstâncias oferecem, para se colocar numa situação tão ofensiva quanto possível para liderar a  polarização política e social aquando de tal cenário, ganhando força para uma solução favorável aos  trabalhadores e ao povo numa próxima crise. 

Tese VI. Marcelo, bombeiro e incendiário 

O Presidente da República responde ao programa de salvar o regime da crise orgânica, do vácuo político  que se pode seguir ao estouro da bolha costista. Mas, simultaneamente, é o mais alto porta-voz do  conservadorismo, assente em vários estados internos ao Estado, nomeadamente o do chamado «terceiro  setor» (ou «setor social», na verdade, um conglomerado opaco de interesses privados, onde se  entrelaçam a Igreja Católica, a Santa Casa da Misericórdia e a saúde privada). Como tal, não abdica de  tentar colocar a direita no poder ― o que já o levou a render-se ao sebastianismo passista.  Paralelamente, a sua autoafirmação permanente é um traço narcísico de que não se consegue livrar.  Provavelmente, na cabeça do Presidente, estes três traços alinham-se: serve de para-raios do regime ao  canalizar o descontentamento com o Governo e abre caminho ao PSD (inevitavelmente aliado à IL e  Chega), possibilitando um governo em que os bastiões conservadores e os núcleos político-económicos  mais à direita tenham assento direto. E pensa fazê-lo pela sua autoafirmação. 

O perigo desta dança é que esta entrada direta do Presidente no jogo político-partidário só pode fazer-se  desgastando o Governo e eclipsando mais o PSD do que a IL e o Chega. E se Marcelo já se conformou com  a ideia de uma aliança das direitas para o assalto Governo, espera que nela a força do centro-direita seja  reforçada face ao extremo. Pode, contudo, ajudar a que suceda o oposto ao enterrar-se ele mesmo no  pântano da crise de governação. Em vez de impedir o vácuo político, pode vir a ser devorado por ele  como outros presidentes em segundo mandato. Assim, Marcelo pode vir a colocar-se numa situação em  que fica refém das suas próprias ameaças ao Governo: num momento de maior crise, ou demite o  Governo (mesmo sem garantias de alternativa, sobretudo de uma em que PSD não dependa em grande  medida da IL e do Chega.) ou perde o seu capital político, libertando perigosamente as frustrações de  parte da direita. Para o evitar, pode ver-se obrigado a dissolver o Parlamento e a convocar eleições,  acelerando o caminho para o vácuo político. De bombeiro do sistema, pode passar rapidamente a seu  incendiário, ainda que involuntariamente. 

Naturalmente, a esquerda não quer nem pode ajudar o Presidente na desmontagem deste berbicacho. A  exigência e a crítica face ao Presidente do sistema, do conservadorismo e das elites é parte do arsenal para a afirmação de uma alternativa ecossocialista. Não lhe cabendo proteger Costa das bicadas  presidenciais, cabe-lhe assinalar que Marcelo brinca com o fogo. 

Tese VII. O neofascismo canibaliza a direita 

A direita é, simultaneamente, o campo político mais dinâmico e mais frustrado da situação nacional. O  choque social que protagonizou quando governou, na última crise, determinam a sua fragmentação e  autocanibalização. As tendências internacionais apontam no mesmo sentido. Não obstante, essa dinâmica  é desigual. Ainda que não se tenha conseguido impor nacionalmente e tenha sofrido um rude golpe com  a conquista da maioria absoluta por Costa, também há avanços à direita. A vitória de Moedas, alicerçada  num modelo do tipo Isabel Ayuso (PP espanhol), um trumpismo light e tecnocrata, é um exemplo de tais  avanços. Mas existe igualmente uma ofensiva ideológica, cuja simples permanência é, em si, uma vitória  para a direita ― é um combate cultural que visa manter-se presente, mais do que obter vitórias, criando  um ambiente favorável à direita e mantendo a esquerda na defensiva. A guerrilha sobre as aulas de  cidadania, a guerra contra o «identitarismo» e o «politicamente correto», o questionamento do 25 de  Abril e a disputa sobre o 25 de novembro, a panaceia da flat tax e afins são aríetes desse combate e têm  marcado pontos ― não precisam de convencer, apenas de manter-se na agenda. Nas margens dos  discursos oficiais, mas com centralidade crescente, esta ofensiva desdobra-se no afluxo dos  negacionismos vários, no ódio racista que aumenta e no discurso antiesquerda e antissocialista. 

A direita é, assim, o campo político que, hoje, mais avança na disputa pela hegemonia, na luta pelos  «corações e mentes». Até ver, essa ofensiva ainda não se consolidou com força eleitoral para disputar o  governo. Aliás, a mobilização eleitoral da base de quase toda a esquerda para, votando no PS, impedir o  pretenso perigo de um governo das direitas no início de 2022 demonstra que há reservas para resistir a  esse perigo. Contudo, essa experiência também pode resultar na síndrome do Pedro e do lobo,  desvalorizando esse perigo quando ele for real. É importante lembrar que a direita não necessita de  solidificar bases estáveis para chegar o governo. Num momento de crise, perante uma eventual  dissolução do parlamento e eleições antecipadas, pautado pelo esvaziamento do centro-esquerda e  pela divisão na esquerda, as direitas podem vencer, por omissão dos adversários. Lembremos como o  momento rápido de demissão de Sócrates e entrada da Troika, em 2011, deu, em poucos meses, uma  maioria às direitas cuja base social era instável; ou a vitória recente das direitas em Itália, conseguida pela  abstenção do centro-esquerda e desaparecimento da esquerda. 

Dentro desta dinâmica, o neofascismo deve ser tratado como um caso específico. É uma componente  deste campo, com vasos comunicantes com as direitas ditas civilizadas. Mas não deve ser confundido:  não é apenas um sintoma grave, é uma doença específica e mortal. O neofascismo é liderado pelo Chega,  mas não se resume a ele. Inclui franjas da comunicação social, da classe empresarial, tem penetração  organizada no aparelho judicial e policial, que se expressa na captura dos sindicatos da polícia, e incluí  uma rede de grupos e figuras de vários matizes, com crescente audácia, visibilidade e amparo público. É  o segmento político mais dinâmico e perigoso da situação nacional. O que o une e define são os seus  objetivos: a subversão do regime democrático, herdado da Constituição de 76 (o Chega, no seu programa inaugural, assumia o projeto de um regime presidencialista, com um parlamento simbólico e o fim dos  sindicatos, para levar a cabo a privatização da saúde e da educação). As várias fações da direita extremada  confluem também nos meios: a subversão das regras democráticas (através da violência, da ameaça, do  ódio e da mentira como política normal), disputando, ainda assim, por dentro, as instituições, minando-as. As divergências dentro desse campo, sobre o peso a dar a cada uma dessas vertentes, não apagam o  acordo estratégico em torno delas.

Simultaneamente, a extrema-direita não pode impor-se sem despoletar uma resistência de massas que  tende a ir às ruas. Aconteceu assim em todos os países, até agora, quase sempre com o feminismo e o  antirracismo na vanguarda. A questão é que política pode fazer com que essa oposição barre o caminho  ao fascismo. Radicalizar um movimento ativista, de milhares de pessoas, que se oponha pelo vértice ao  fascismo é necessário; a partir daí, é necessário estabelecer as alianças que permitam chegar ao conjunto  dos que, mesmo sob prismas moderados e centristas, querem defender as liberdades democráticas. Ao  mesmo tempo, não se pode aceitar a normalização da extrema direita: ela só pode crescer com a  colaboração das restantes direitas e a omissão das instituições democráticas. Isso não acontece sem  fricções e choques. Incidir sobre essas contradições é necessário, inclusive exigindo da direita, de  Marcelo e da Justiça sejam coerentes com a defesa da ordem democrática que dizem defender. A  extrema-direita pode ser travada, mas só se não for subestimada. 

Teses VIII. A esquerda e o risco de um recuo sem retorno 

As últimas eleições legislativas revelaram que a esquerda atravessa um dos momentos mais difíceis das  últimas décadas. Houve fatores conjunturais e táticos que explicam a queda eleitoral, mas as dificuldades  são mais de fundo e prendem-se, por um lado, com a viragem ideológica e cultural à direita e com a  fragilidade estratégica do nosso lado que não foi superada durante a experiência da Geringonça ― na  verdade, aprofundou-se nesse período. Este novo momento afeta de formas diferentes os vários partidos  da esquerda. Ainda é incerto que resultado terá, até porque tal depende das respostas políticas dadas  pelos vários partidos e pelo conjunto da esquerda. O risco de um recuo histórico da esquerda, ficando  reduzida a uma parcela ainda menor do que a atual no parlamento e uma influência política marginal,  existe. O risco de um cenário à la italiana, em que o recuo é tal que se atinge um ponto de não-retorno, é  real. Mas ainda não é esse o cenário em que vivemos e ele pode ser evitado. Agora, o mais provável é  que, mesmo sem um recuo de conjunto, a esquerda se reconfigure: é provável uma maior fragmentação  e que o relativo equilíbrio entre Bloco e PCP seja rompido. É improvável o retorno a um cenário  semelhante ao da última década. A esquerda pode recuperar forças, mas assumirá novas configurações.  E deverá adotar novas táticas e posturas. 

Nas legislativas de 2022, a mobilização massiva do eleitorado de esquerda para garantir um governo do  PS contra a direita (concedendo, sem prever, a maioria absoluta a Costa), mostra que há reservas políticas  que são contra a direita não estão consolidadas no PS. Estas podem ser de novo canalizadas à esquerda.  O Bloco é, sem dúvida, a força mais bem posicionada para o fazer, ainda que isso não seja dado. Por  outro lado, o recuo do PCP parece obedecer a problemas mais estruturais da história e desse partido:  contudo não é só o Partido Comunista que perde, pois, a sua crise atual alimenta mais a direita e a  despolitização do que uma renovação à esquerda. Ou seja, existe um recuo das forças de esquerda que se pode revelar conjuntural ou de longo-prazo. Essa definição está em disputa. É necessário ter presente  que o risco existe e que um inevitável desencanto com o PS daqueles que nele votaram perante o  (suposto) perigo da direita não virá desaguar necessariamente à esquerda. 

As novas gerações de ativistas geradas pelos movimentos sociais não convergiram ainda organicamente  com a esquerda anticapitalista, e uma parte até abandonou as nossas fileiras, trocando a militância  partidária pelo ativismo movimentista. O sucesso da esquerda, nomeadamente do Bloco, tem sido o de,  a cada vaga de lutas, atrair uma nova geração ativista, renovando-se. Se não o fizermos neste momento,  o preço a pagar pode ser demasiado alto. Romper com a inércia e o hábito, assumindo que numa nova  fase política implica alterações no perfil e na forma de atuar da esquerda é essencial. 

Tese IX. A nova vaga de lutas é combustível para uma viragem à esquerda 

As mobilizações sociais nunca refluíram de forma perene, nem mesmo no período da Geringonça. Desde  o final do século XX, sucessivas vagas de mobilização social ganharam relevância central na vida  nacional, decantando novas gerações ativistas, movimentos sociais, gerando avanços na disputa  ideológica à esquerda. As grandes lutas antiausteridade, compostas por grandes mobilizações ditas  inorgânicas, greves setoriais e gerais, foram o auge desse percurso, mas não o fim. Com a canalização  eleitoral desse movimento ― que resultou na derrota eleitoral das direitas e na formação da Geringonça  ― novos movimentos ganharam protagonismo. O período entre 2017 e a pandemia foi marcado por  mobilizações de dimensão inaudita na luta feminista, antirracista e climática, acompanhadas de novas  vagas de ativistas e de proposta política. A par delas, greves importantes, como as da Autoeuropa,  motoristas, professores, enfermeiros e estivadores, marcaram o cenário. Este contínuo de lutas ― que na  verdade vem do final de século anterior até hoje ― teve avanços e recuos, mas não sofreu nenhuma  derrota profunda. A dinâmica não foi decapitada, as forças e lições acumuladas persistem. No novo  momento que vivemos, podem voltar a emergir com grande força. 

No atual momento, marcado pela inflação, por um baixo nível de desemprego (por enquanto) e um  descrédito do governo, uma nova fase de mobilização social. Pelo que temos visto, esta tende a aumentar  em dimensão e radicalidade, chegando a novos setores. Este é o facto mais importante da atual  conjuntura. Nos meses recentes, as ocupações de escolas pelo clima, a luta crescente dos professores e  greves importantes como na CP e na Autoeuropa parecem dar esse sinal: entramos num período em que  a contestação social tende a ocupar um protagonismo crescente na vida política nacional. 

Ainda que esta nova fase, como todas as anteriores, expresse afluxos e refluxos, não se descarta que, nos  anos de 2023 e 2024, eclodam grandes momentos de contestação que combinem novos movimentos  (climático, antirracista, feminista, LGBTQIA+), mobilizações sociais de tipo «inorgânico» e luta sindical  organizada de massas. As frentes da saúde e da educação tendem a ser terrenos férteis para essa  confluência, assim como a luta pela habitação (que tem, no entanto, menos tradição como luta de  massas). Se essa vaga de lutas confluir, superando divisões setoriais, corporativas e político-partidárias,  elevando o nível da disputa social através de plataformas comuns de proposta e exigência política e  calendários coordenados de contestação, a situação pode mudar. Com base nesse movimento, a  esquerda pode retomar um papel ofensivo e a tendência ao esvaziamento do centro político poderá ter uma saída positiva que aponte no sentido de uma retomada de direitos e do empoderamento das  classes trabalhadoras e populares. Uma solução pela esquerda da crescente crise orgânica nacional,  retirando espaço ao centrão e a alternativas de (extrema) direita. Este é o maior desafio para o próximo  par de anos. O eixo ordenador de uma política ousada à esquerda: elevar a dimensão, radicalidade,  organização e densidade política da contestação dos debaixo. 

Nada disso acontecerá espontaneamente. Nem o desafio pode ser alcançado no mero terreno eleitoral  (ainda que este conte, e muito). É pelo trabalho organizativo de base, pelo diálogo e mútua influência  fraternal com os ativistas de cada frente de combate, pelo estabelecimento de uma política de alianças e  de uma plataforma programática que espelhe e dialogue com a revolta social que a esquerda pode  cumprir esse papel. Fazemos três propostas nesse sentido. 

Tese X. Três propostas para uma polarização à esquerda 

Os elementos centrais da atual situação são a) um novo momento de crise económica e social em que o  flagelo da inflação tende a dar lugar, e a combinar-se, com um novo momento recessivo, com as  inevitáveis chagas crescentes do empobrecimento e do desemprego; b) um desgaste acelerado do  governo que revela os perigos de um vácuo político e a abertura de uma crise orgânica, mais profunda do  que a do próprio governo, cujos desdobramentos e ritmos são imprevisíveis e que pode eclodir por  iniciativa do Presidente da República, por uma divisão no PS, pelo crescimento e ofensiva das direitas e  pelo crescimento das lutas sociais (ou, mais provavelmente, por uma combinação dos vários fatores); c)  o crescimento das lutas sociais; d) a consolidação e possível crescimento da extrema-direita,  encabeçada por um partido neofascista cuja ambição é conquistar posições no poder de estado  (inicialmente coligado a outras forças de direita) e, a partir daí, ensaiar uma subversão do regime  democrático rumo a uma ofensiva de fundo sobre as liberdades democráticas e os direitos sociais. 

Este quadro recomenda clareza estratégica por parte do Bloco de Esquerda, assumindo a audácia  de liderar uma polarização à esquerda apoiada das lutas socias. A tarefa que a situação coloca é de,  perante um agudizar da crise política e social, impedir uma viragem da correlação de forças à direita e,  nesse processo, construir os pontos de apoio para uma contraofensiva proletária e popular. O objetivo é  que um provável fim de ciclo político possa ser aproveitado para uma conquista de posições pela  esquerda, abrindo caminho à conquista de direitos e a uma situação em que a correlação social e política  de forças permita uma ofensiva das maiorias exploradas e oprimidas, e as suas organizações e  movimentos rumo a um Governo seu que inicie uma profunda transformação social. Trata-se de impedir  uma viragem reacionária e, nesse processo, impulsionar uma viragem transformadora. Para tal, propomos  um tripe de eixos estratégicos para o novo momento político: 

1. A DISPUTA PELA HEGEMONIA À ESQUERDA, ou seja, a luta por consensos sociais opostos à ordem  neoliberal e à extrema-direita, só pode avançar com base numa aliança ampla das forças e movimentos  que representam os setores mais explorados e oprimidos. Em Portugal, hoje, nenhuma força política  pode almejar fazer esse caminho sozinha. O Bloco pode, e deve, sim, ajudar a esta nova fase impulsionar essa viragem. A mera autoafirmação partidária tem limites que ficam aquém dos objetivos que a situação  exige. O PS, e as suas diversas alas, não cabem nesta equação: a experiência da Geringonça, como tantas  anteriores, demonstra que este partido e as suas várias sensibilidades não se propõem sequer a reformas  mínimas que enfrentem os ditames de Bruxelas e dos mercados ― isso não exclui alianças táticas  pontuais, mas exige a construção de um leque de alianças à esquerda do PS. Há experiências  internacionais a serem consideradas: já foram salientadas as recentes experiências da campanha Enough  is Enough, que une a esquerda partidária, organizações de base e sindicatos, no Reino Unido; ou o NUPES,  aliança que juntou a France Insumisse, e o PCF os Verdes e o PS (já muito marginalizado) em França.  Acordos entre direções partidárias serão necessários, mas o central é assumir uma orientação geral no  sentido de construir plataformas e iniciativas comuns, em torno de lutas concretas (salários, habitação,  feminismo, antifascismo, clima e antirracismo) ― frentes políticas que unam movimentos, sindicatos,  partidos e individualidades para a mobilização de massas. Daqui surgirão configurações unitárias em que  se pode alicerçar um terceiro bloco político que rompa dicotomias reacionárias, sejam entre as direitas e  o PS, sejam entre o extremo-centro e o neofascismo. Nenhum terreno de disputa deve ser excluído. Um  diálogo com os movimentos sociais e os seus protagonistas, assente em acordos políticos que resultam  das próprias lutas sociais, exige paciência, esforço e um diálogo aberto avesso a tentações de  autossuficiência e afirmação. O que não significa não se reforçar: se o Bloco de Esquerda se propuser a  abraçar esta tarefa como central, ganhará uma autoridade política e social bem mais ampla que o seu  atual campo de influência, atraindo ativistas e eleitores.

2. A EXISTÊNCIA DE UM MOVIMENTO POLÍTICO CRESCENTE DE EXTREMADIREITA, encabeçado por um partido  extremista que ensaia a rutura com a ordem democrática, deve ser encarada como o diagnóstico de um  cancro que mina o tecido social. Nenhum problema está resolvido até o mal ser isolado e extirpado. A  acomodação a esta situação, como se fosse compatível com a normalidade democrática, é suicidária: há  que sacudir esse perigo e exigir que todos os atores políticos democráticos o façam. Não se trata de ter  ilusões: o PSD e a IL querem reduzir o Chega a uma expressão mínima, mas não abdicarão de se aliar a ele  para alcançar o poder; tal como Marcelo não bloqueará uma solução de tipo açoriano em S. Bento; e o PS  não está disponível para o grau de confronto necessário, além de querer beneficiar de uma polarização  com Ventura (que implica a sua aceitação no jogo político normal). Forças de segurança, aparelho de  estado e tribunais já mostraram uma grande permeabilidade à extrema-direita e às suas ideias, ainda que  em diferentes graus. Todos estes atores políticos e institucionais têm de ser chamados à responsabilidade  e denunciados por alimentarem a serpente ― essa denúncia cabe à esquerda fazê-la. Isto, sabendo que  não serão as forças do regime a travar o neofascismo: só a mobilização popular e a polarização  programática e política à esquerda podem construir uma maioria social que seque a base da extrema direita e a remeta à marginalidade. Não é, por isso, uma tarefa para camadas ativistas voluntaristas, mas  uma disputa política de larga escala. Trata-se de subir o tom, denunciar as conivências, reforçar o debate  ideológico e disputar as ruas ― dar ao tema a centralidade que ele já assumiu na vida política nacional e  internacional. Quem o souber fazer, encurralando o fascismo, assentará raízes políticas não meramente  conjunturais, mas de longo prazo. À esquerda anticapitalista, hoje, exige-se que seja uma força de  combate frontal ao fascismo e à extrema-direita.

3. CONSTRUIR UMA AMPLA FRENTE DE COMBATE SOCIAL PASSA POR MOBILIZAR AS E OS MAIS OPRIMIDOS. Combater a extrema-direita e superar pela esquerda a crise do centrão exige uma base social mobilizada,  um avanço e uma radicalização das lutas sociais em grande escala. É preciso trazer para a vida política  dezenas de milhares de jovens e trabalhadores hoje alheados, marginalizados e excluídos. Os novos  movimentos sociais, chamemos-lhes assim, que também em Portugal mudaram a paisagem das lutas  nos últimos anos, transportam esse potencial. O movimento feminista, LGBTQIA+ e antirracista, nas suas  mobilizações e propostas, trazem para a centralidade política não apenas temas, mas pessoas  invisibilizadas ― à escala de dezenas de milhar. Sobretudo, pessoas trabalhadoras, as mais exploradas da  nossa classe. Por isso, estes movimentos não se opõem aos movimentos tradicionais da classe, mas, se  política houver para isso, serão uma outra face da mesma classe: um alargamento político da classe  trabalhadora cheio de potencial de mudança. Pela formação social de Portugal, o racismo estrutural,  que toma na prática a forma de um colonialismo interno, é uma clivagem central. Não se trata apenas  de um tema fraturante subjetivamente, mas de um eixo de domínio da classe capitalista cujo  enfrentamento é necessário para unir uma maioria social fragmentada, em que uma expressiva  componente racializada é mantida aparte, mutilando a capacidade das massas populares identificarem os  seus inimigos e se mobilizarem como um todo. A luta contra o racismo e a xenofobia é assim um caminho  incontornável para colocar em marcha as grandes massas proletárias, cercando o poder do capital para  obter vitórias. É esse o ensinamento do Black Lives Matter nos EUA, tal como a revolução de 1974 só  pôde expandir-se ao enfrentar o colonialismo. Trata-se de uma determinação história, não de uma opção  subjetiva: em países fortemente assentes no racismo estrutural, sem mobilização antirracista não se  une a nossa classe. Por isso, a esquerda deve reconhecer o caminho que ainda tem de percorrer, as  energias que tem de dedicar a este combate. Há passos que podem ser dados, desde já, pelo Bloco de  Esquerda. Desde logo, o de dar uma maior centralidade política aos elementos antirracistas que já  constam no nosso programa: a recolha de dados étnico-raciais; a revisão dos manuais escolares; o  combate à violência e ao racismo nas forças de segurança; a defesa de quotas e uma nova lei da  nacionalidade. E, junto com isso, incorporar uma dimensão antirracista em temas como a luta pela  habitação e, por exemplo, a uberização do trabalho. Simultaneamente, é preciso desenvolver uma  política concreta de diálogo com os movimentos antirracistas, assumindo a inevitabilidade de tensões e  controvérsias; assim como investir na promoção e visibilização de quadros e dirigentes racializados,  nomeadamente vindos dos movimentos. E, como em todos os outros setores, munir-se de um fórum  próprio, interno, para discutir e organizar esta intervenção. Sobretudo, trata-se de convencermo-nos a  nós mesmos que, num país em que o capitalismo assenta numa formação social racista, a unificação das  massas exploradas só pode ser alcançada pela mobilização dos seus estratos mais explorados e oprimidos  ― o que, em Portugal, significa dar maior centralidade ao combate antirracista.

Texto original.