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BRASIL

Cinco anos sem Marielle: um inquérito problemático e a necessidade da federalização

Henrique Canary, de São Paulo (SP)
Guilherme Cunha/ALERJ

Hoje completam-se cinco anos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes em 14 de março de 2018. A maioria de nós ainda estava acordada quando as notícias começaram a circular nas redes sociais e veículos de imprensa. Não podíamos acreditar. Uma das figuras mais combativas, talentosas e queridas da esquerda brasileira havia sido assassinada. O choque e a desorientação prevaleceram. O golpe havia triunfado dois anos antes e a extrema-direita estava em franca ascensão. O assassinato de Marielle era o prenúncio dos tempos difíceis que estávamos começando a viver. Meia década depois, seguimos sem respostas para as perguntas mais decisivas: Quem mandou matar Marielle e qual a motivação do crime?

Desde que foi instaurado, imediatamente depois do assassinato, o inquérito policial relativo ao caso teve uma história tortuosa. Nada menos do que cinco delegados se revezaram na condução das investigações, ao mesmo tempo em que o grupo de procuradores do Ministério Público Estadual foi trocado três vezes ao longo desses anos.

Em maio de 2019, a própria Polícia Federal afirmou que depoimentos falsos foram dados no inquérito para desviar o foco das investigações. Além disso, parentes e pessoas próximas a Marielle denunciaram repetidamente a interferência externa nas investigações, o que também foi confirmado pela PF. A confusão foi tão grande, que em setembro de 2019, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge chegou a pedir a federalização do caso, pedido que foi negado pelo Supremo Tribunal de Justiça no ano seguinte.

Ao longo dos anos, as investigações avançaram em algumas direções importantes, porém insuficientes. Em março de 2019 o policial reformado Ronnie Lessa foi preso junto com o ex-militar Élcio Vieira de Queiroz. Lessa foi acusado de atirar contra Marielle, enquanto Queiroz dirigia o carro utilizado na emboscada. Nenhum dos dois jamais confessou o crime e não se sabe nada até hoje sobre o mandante. Ambos estão em prisão preventiva aguardando julgamento, que deve se dar via juri popular.

Aliás, Ronnie Lessa era vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra. Bolsonaro sempre negou conhecer Lessa, embora existam fotos dos dois juntos, que Bolsonaro atribuiu ao fato de “tirar foto com todo mundo”. Sabe-se, por exemplo, que Lessa recebeu ajuda de Bolsonaro para ser atendido em uma associação filantrópica da qual Bolsonaro é diretor. Além disso, o filho mais novo de Bolsonaro, Renan, chegou a namorar a filha de Lessa, o que também foi minimizado por Bolsonaro. Para fechar com chave de ouro, o outro assassino, Élcio Vieira de Queiroz, foi ao condomínio de Bolsonaro e Lessa na época do assassinato. Segundo denúncia do Jornal Nacional, Queiroz teria informado na portaria que iria na casa de Bolsonaro, a famosa casa 58. Não se sabe, no entanto, se a visita à casa do ex-mandatário da república se confirmou e quem estaria lá para recebê-lo. O fato é que o envolvimento da família Bolsonaro no crime sempre foi uma das hipóteses mais promissoras, que no entanto jamais foi levada a sério pela investigação.

Outro elemento estranho do caso é que, por determinação da Justiça do Rio, até agora os advogados e familiares de Marielle e Anderson não têm acesso aos autos do processo, ao contrário do que acontece em geral em investigações de homicídio. Deve-se lembrar que, à época do assassinato de Marielle, o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal na segurança pública e Marielle era uma das vozes de denúncia das atrocidades da intervenção, o que irritava gente importante, tanto na esfera estadual quanto federal.

Além do jogo de empurra-empurra administrativo, coisas inacreditáveis aconteceram no âmbito da investigação em si. Por exemplo, Fernanda Chaves, assessora que acompanhava Marielle Franco no carro e única sobrevivente do atentado, afirma que, dos cinco delegados que conduziram o caso, apenas o delegado Giniton Lages se interessou em ouvi-la. Estamos falando nada menos do que da única testemunha viva dos eventos.

Finalmente, em fevereiro desse ano, o ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou que a Polícia Federal abrisse um inquérito paralelo para ajudar nas investigações. Dino salienta que não se trata ainda da federalização do caso, mas que esta não está totalmente descartada. A federalização exigiria um novo pedido ao STJ em base a novos argumentos.

De um modo geral, o novo governo, principalmente na figura de Dino, tem se mostrado bastante disposto a levar as investigações até o seu desfecho, ou seja, à descoberta do mandante e da motivação do crime. No entanto, ao que tudo indica, enquanto o inquérito principal estiver nas mãos da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro, as coisas não vão andar. Há muitas pessoas e interesses envolvidos na esfera estadual para que as investigações caminhem. É preciso federalizar defintivamente o caso. A Polícia Federal tem mais capilaridade nacional, mais acesso a informações e bases de dados sobre armas e munições (a arma do crime até agora não foi encontrada) e mais expertise nesse tipo de investigação. Além do mais, não se trata de um crime comum, mas de um crime político, o que por si só demandaria o envolvimento de uma estrutura federal.

Marielle morreu depois de participar de um debate feminista na Casa das Pretas, no bairro da Lapa no Rio de Janeiro. Foi morta fazendo o que melhor sabia fazer: organizando e inspirando gente. Como todos lembram, Marielle foi assassinada uma segunda vez com uma campanha de ódio e calúnias disseminada na internet pela extrema-direita. Não adiantou. Eles mataram Marielle, mas não sabiam que ela era semente. Hoje ela floresce nos murais pelas cidades, nas placas de ruas feitas espontaneamente pelas pessoas para lembrar o seu legado, mas sobretudo nas lutas por um mundo melhor, mais justo e sem violência política. Aos cinco anos de seu assassinato, Marielle vive.

Cronologia do caso

14 de março de 2018: Marielle Franco e Anderson Gomes são assassinados.

15 de março de 2018: Giniton Lages assume a Delegacia de Homicídios do Rio e o caso.

21 de março de 2018: O MPRJ escolhe um grupo de promotores para a apuração do crime.

01 de setembro de 2018: Entra no caso o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO/MPRJ). Acontece a primeira troca de promotores do MPRJ.

25 de setembro de 2018: Orlando Curicica, encarcerado no Presídio Federal de Mossoró por crimes ligados à milícia, menciona o ‘Escritório do Crime’ para os investigadores. Uma testemunha cita o vereador Marcello Siciliano por suposto envolvimento na morte de Marielle. Siciliano foi preso, mas o envolvimento dele foi descartado depois.

11 de outubro de 2018: Investigações do MPRJ identificam biotipo do executor do crime e rastreiam novos locais por onde circulou o carro usado no crime.

11 de março de 2019: A primeira fase de investigações é encerrada. Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são denunciados por homicídio doloso.

12 de março de 2019: Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa são presos no Rio de Janeiro.

25 de março de 2019: Giniton Lages é substituído por Daniel Rosa na Delegacia de Homicídios do Rio.

23 de maio de 2019: Polícia Federal aponta que foram dados depoimentos falsos para dificultar a solução dos homicídios.

11 de setembro de 2019: A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pede a federalização das investigações.

10 de março de 2020: Justiça do Rio determina que Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz sejam levados a júri popular.

27 de maio de 2020: Superior Tribunal de Justiça (STJ) nega a federalização das investigações.

17 de setembro de 2020: Delegado Daniel Rosa deixa o caso. Moisés Santana assume o lugar dele.

05 de julho de 2021: Terceira troca na Delegacia de Homicídios: sai Moisés Santana, entra Edson Henrique Damasceno.

02 de fevereiro de 2022: Quarta troca: Edson Henrique Damasceno é substituído por Alexandre Herdy.

30 de agosto de 2022: Supremo Tribunal Federal (STF) nega recursos das defesas de Ronnie Lessa e Élcio Vieira, e mantém decisão sobre júri popular.

22 de fevereiro de 2023: O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, anuncia abertura de inquérito da Polícia Federal para investigar assassinatos.

04 de março de 2023: MP do Rio define novos promotores do caso Marielle Franco.

(Crédito da cronologia: Agência Brasil)