Águas passadas não movem moinhos.
Ditado popular português.
Uma parcela da esquerda brasileira educada no campismo defende a vitória militar da Rússia na guerra da Ucrânia. O cálculo é que uma derrota de Volodymyr Zelensky seria uma derrota da Otan e de Washington e, portanto, um desenlace progressivo, mesmo para os que não confiam em Vladimir Putin nem para beber um copo d’água. Não seria.
O campismo considerava que o destino da causa socialista estava, indissoluvelmente, associado ao futuro do governo da URSS e seus aliados. O que era interpretado como “bom” para os interesses da URSS era justo. O destino das lutas dos povos era indissociável dos interesses de Moscou. Este “nacionalismo da URSS”, ou stalinismo, não merece ser confundido com o internacionalismo marxista. O campismo foi a visão de mundo dominante na esquerda ao longo dos últimos setenta anos.
Já era uma nostalgia equivocada, antes do fim da URSS, para quem se reivindicava socialista. Mas a russofilia é muito mais grave agora quando a restauração capitalista já se completou há três décadas, e vigora em Moscou um regime bonapartista com impulso imperialista. A ironia da história é que, a partir da terceira fase da “guerra fria”, nos anos setenta, quando da gestão Nixon/Kissinger, a China se aproximou dos EUA. Agora se alinhou com a Rússia diante da etapa da nova “guerra fria”. A bússola campista deixa a esquerda à deriva diante destes reposicionamentos. Não é realismo político, é uma ideologia. Será responsável pela desmoralização de milhares de ativistas.
A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrações burocráticas, um híbrido histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda internacionalista, no pós-guerra, em uma situação paradoxal e desconcertante. Deveria defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Mas, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores pelas liberdades democráticas. Ou seja, um defensismo condicionado ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional. A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa originando desequilíbrios: stalinofilia ou stalinofobia.
A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa abriram uma nova época histórica. O marxismo revolucionário definiu-a como uma época de apogeu e decadência do capitalismo, de guerras e revoluções. Os últimos 100 anos confirmaram este prognóstico. A caracterização de época revolucionária é um conceito elaborado para descrever um longo período histórico de decadência do capitalismo, e tem como prognóstico central a perspectiva de que revoluções são possíveis.
Dizer que são possíveis não equivale a prever que vencerão. A sua utilização para descrever a época aberta pela Primeira Guerra Mundial não foi de Trotsky, mas de Lênin, que recuperou a fórmula de Marx. O sentido desta caracterização foi ressaltar que, a partir da Primeira Guerra Mundial, se abriu uma longa fase de declínio do capitalismo, um intervalo de época histórica, portanto, um longo período secular. A restauração capitalista na ex-URSS e Leste Europeu foi uma derrota histórica.
Significou uma mudança de etapa, mas não de época. Não foi o “fim da história”, interpretado como a vitória “final” do capitalismo, e menos ainda o triunfo definitivo dos regimes democrático-liberais. Etapas e situações reacionárias existiram e continuarão a existir, porque derrotas acontecem e as relações de forças oscilam dentro de cada nação, na escala de regiões, e mesmo, internacionalmente, quando pensamos em graus mais elevados de abstração, de confronto entre revolução e contrarrevolução. Mas a caracterização de época responde a outro nível de análise. Ela considera um período histórico.
O capitalismo contemporâneo permanece um sistema em crise crônica, também, em função da nova realidade de aquecimento global. Guerras voltarão a ocorrer, mas a crise mundial potencializa, também, a possibilidade de revoluções. Essa deve ser a estratégia de uma esquerda anticapitalista. Preparar-se para um cenário em que guerras serão inevitáveis, mas revoluções serão possíveis.
Mas qualquer aposta catastrofista seria um erro. A crise do capital não é o bastante. A transição socialista é um projeto que exige consciência de classe. Desde o Vietnã, portanto, há meio século, não triunfou nenhuma revolução social anticapitalista. Mas a maioria dos regimes tirânicos dos últimos 50 anos em todos os continentes foi derrotada por revoluções políticas.
Revoluções políticas não são iguais a revoluções sociais, mas não deveriam ser reduzidas à categoria de crises políticas graves. A força de inércia das ditaduras que resistiram durante décadas, merece ser examinada como uma das características da abertura de uma época revolucionária, nas palavras de Lênin. A transição de regimes ditatoriais para regimes democrático-liberais, sem uma ruptura política provocada pela irrupção das massas em mobilizações gigantescas, como a experiência pós-franquista do Pacto de La Moncloa[1] na Espanha no final dos anos 70, ou no Chile de Pinochet[2] nos anos 90, continuou acontecendo, porém, foi excepcional.
As transições preventivas pelo alto foram uma consequência de processos de ruptura que comoveram nações vizinhas e ameaçavam contágio – a revolução portuguesa de 1974/75, no caso espanhol, e as situações no Peru e Argentina, ao final dos anos 80, no caso chileno. Do regime de Baby Doc Duvalier, no Haiti, e as Filipinas de Marcos em 1986[3] ou a Indonésia de Suharto em 1998[4], foram incontáveis os processos de mobilização de massas que derrubaram ditaduras com milhões de pessoas nas ruas. Não foi diferente no Egito de Mubarak já no século XXI. Revoluções democráticas são revoluções populares interrompidas. Mas, ainda que limitadas à derrubada de ditaduras são, igualmente, legítimas.
Na época histórica anterior à revolução de Outubro o padrão foi outro: as passagens de regime político eram gradualistas e assumiam, predominantemente, a forma de transições por cima, a chamada via prussiana na Alemanha, estudada por Lênin, ou a revolução passiva na Itália, observada por Gramsci. Que as mais diferentes burguesias nacionais tenham tido dificuldades crescentes em articular transições seguras e controladas pelo interior das instituições do regime anterior – conseguiram em Madri, em 1977, depois de ter fracassado em Lisboa, em 1974, – ou como procuraram fazer no Brasil, significa que até para derrubar tiranias foi necessário um processo de mobilização de massas. Em outras palavras, que tenham sido necessários revoluções de “fevereiro”, mesmo se há duas gerações nenhuma se radicalizou até “outubro” não é um tema secundário na interpretação histórica.
As variáveis que devem ser consideradas para uma apreciação de época, a mais longa duração, são históricas. Ou seja, mais econômico-sociais do que políticas, e remetem a uma avaliação da dinâmica do capitalismo. Ao longo de sua história, o sistema nunca foi imune à pressão por mudanças, mas as transformações podem assumir, predominantemente, a forma de reformas negociadas, ou de rupturas. Quando viveu sua época de apogeu, a margem para negociações de reformas foi mais flexível. Se avaliarmos que não há decadência, no sentido histórico, a consequência é que revoluções são improváveis, porque a dinâmica ascendente do sistema permite transformações pela via das reformas que fortalecem o capitalismo. A caracterização de época não depende da avaliação da relação de forças entre as classes. Esse critério deve ser considerado para julgar quando uma situação nacional ou internacional é contrarrevolucionária ou revolucionária – ou as inúmeras situações intermediárias entre estes extremos, isto é, situações que evoluem de reacionárias para pré-revolucionárias ou, inversamente, regridem – ou seja, uma temporalidade política.
Dizer que a época da revolução social estava aberta – uma caracterização comum a todo o marxismo da Terceira Internacional – não significava, portanto, dizer que a situação internacional seria revolucionária. A Comintern julgou, por exemplo, que depois da derrota de 1923, na Alemanha, a situação revolucionária na Europa tinha se fechado – hipótese considerada desde 1921 – com uma inversão desfavorável da relação de forças, porém, não concluiu que o sentido da época tivesse sido revertido
A maioria dos campistas na esquerda brasileira tiveram a sua formação sob a influência do PCB, embora tenham se dispersado ao longo dos últimos 40 anos. Mas algo como um “partido comunista imaginário” ainda pulsa como uma visão de mundo em outras organizações, ou militantes em voo solo como Breno Altman. Estão de acordo que o capitalismo não superou a crise crônica, posterior aos anos 70, quando se esgotou o crescimento do pós-guerra apoiado na intervenção regulatória do Estado.
A questão é, portanto, se podemos conciliar a ideia de que o capitalismo teria mergulhado em uma crise crônica, mas a época, no sentido histórico, seria contrarrevolucionária. A sobreposição de uma situação reacionária – como na América Latina, entre meados dos anos 60 e o fim da década de 70 – dentro de uma época revolucionária é possível, transitoriamente, mas o inverso não. O imperativo ético-moral de lutar contra o perigo de uma guerra mundial devastadora e a barbárie permaneceria. Mas, se consideramos que a época aberta pela revolução de outubro se encerrou, o projeto socialista como aposta histórica perdeu sentido. Não estamos entre os que acreditam na vida depois da morte. Uma aposta política deve ter dimensões humanas.
Se a situação mundial aberta após 1989/1991 foi uma situação reacionária, pelo menos até 1995 – como foi também reacionária a situação mundial nos anos 30, diante das vitórias sucessivas do nazifascismo – isso não invalida que a época aberta pelas guerras mundiais e pelo triunfo da revolução de outubro permaneceu aberta. O confronto entre revolução e contrarrevolução assumiu proporções titânicas, em especial, nas circunstâncias dramáticas da Segunda Guerra mundial. Mas, nem quando o nazismo parecia uma força imperialista imbatível ocorreu uma derrota histórica tão séria que tivesse invertido o sentido da época. Poderia, talvez, tê-lo conseguido, mas o imperialismo alemão foi derrotado.
Nem a contraofensiva neoliberal liderada por Reagan e Thatcher contra as conquistas da classe trabalhadora (previdência social, seguro desemprego, educação universal, etc.) do pós-guerra, nem o processo de recolonização das semicolônias na América Latina, Ásia e África inverteram o sentido da época. Nem mesmo a restauração capitalista na China e ex-URSS, a mais dramática das derrotas históricas, e com consequências incontornáveis por uma geração, foram suficientes. Mas China e Rússia não são parte da solução da crise grave que vive o movimento socialista. Não sabemos se novos “outubros” virão. Mas outubro permanece a causa mais elevada do tempo que nos coube viver. O caminho deve ser procurado na luta dos explorados e oprimidos, nem em Moscou, nem em Beijing. Ninguém disse que seria fácil.
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