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1 ano da guerra na Ucrânia

A Guerra da Ucrânia completa um ano. Seu rastro de destruição não se resume ao território ucraniano, onde já deixou centenas de milhares de baixas entre mortos e feridos em ambos os lados do conflito. O conflito latente desde o fim da União Soviética e a política de “contenção” do imperialismo ocidental contra a reconstituição da Rússia como uma potência de nível mundial, que remonta o começo dos anos 1990, deu um salto com a invasão russa. Esta tinha como objetivo direto e explícito acabar com a existência da Ucrânia como país independente. As razões precisas da decisão de Putin há um ano ainda são tema de debate, mas o fato é que ela deu início a uma guerra inédita no coração da Europa desde a II Guerra Mundial.

O conflito evoluiu para uma guerra complexa, em que se combinam vários elementos: a luta pela manutenção da Ucrânia como país independente e, cada vez mais, uma guerra por procuração em que estão envolvidas de alguma forma as principais potências imperialistas mundiais. As pesadas sanções ocidentais contra a Rússia, a provisão de bilhões de dólares pelas potências ocidentais ao exército ucraniano, as reiteradas ameaças russas de recorrer a armas nucleares, contribuíram para causar uma situação inédita desde o final da guerra fria entre o Ocidente e a ex-União Soviética, em que o pesadelo de uma guerra nuclear de extermínio, embora altamente improvável, entrou novamente no rol das possibilidades. A guerra causa também enormes sofrimentos para a classe trabalhadora, por conta do aumento dramático da inflação em décadas.

Por outro lado, a guerra foi o sinal para que os orçamentos militares das principais potências mundiais, que já vinham em ascensão, dessem um salto terrível. E, como se sabe, as armas são produzidas para atemorizar e…para combater. Por isso, não é estranho que tenhamos visto um aumento das tensões geopolíticas em todo o mundo, em particular o conflito mais importante do nosso tempo, que é a luta pela hegemonia mundial entre a potência ainda dominante, mas que vive um longo declínio – os EUA – e sua principal desafiante, a China, que teve uma ascensão meteórica após a restauração do capitalismo nos anos 1990, aproveitando-se do intervalo entre a antiga guerra fria e a que começou quando os EUA perceberam que tinham uma rival a ser contida.

Por conta de todos esses aspectos, o Esquerda On-line começa a publicar artigos de balanço sobre o conflito.

Não existe internacionalismo pela metade

Reprodução

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Quando um não quer, dois não brigam.

Quem não pode morder, não mostre os dentes.

Ditados populares portugueses

1. A guerra da Ucrânia dividiu a esquerda mundial de forma inusitada. Não se trata de mais um desdobramento da velha fratura entre os partidos moderados e as correntes mais radicais. Em um bloco estão os que consideram  que se trata de uma luta de libertação nacional da Ucrânia, e apoiam uma vitória militar de Kiev. Em outro estão os que avaliam que se trata de uma guerra defensiva da Rússia contra os EUA e a OTAN, e apoiam uma vitória militar de Moscou. Revolucionários ou reformistas e tendências intermediárias podem ser encontradas nos dois blocos. Uma maioria da esquerda europeia apoia, militarmente, Zelensky. Uma maioria da esquerda latino-americana apoia, militarmente, Putin. O argumento deste artigo é que ambas posições são equivocadas, porque a guerra da Ucrânia é de natureza inter-imperialista, portanto, uma posição internacionalista deve ser contra a guerra, pela paz, por um armistício imediato e abertura de negociações sem condições prévias.

2. Em perspectiva histórica, a obra mais importante do capitalismo foi impulsionar a formação do mercado mundial liberando forças produtivas, até então, inimagináveis, embora à custa da conquista da América Latina, Ásia e África e da escravidão por mais de três séculos. Mas este progresso teve um outro custo catastrófico para a humanidade: a luta ininterrupta pelo domínio imperialista do mundo. Alguns poucos Estados controlam, comandam e oprimem a imensa maioria dos países. Impõem a sua ordem e disputam para manter suas posições de poder, ameaçando, regularmente, a paz mundial. O nome deste sistema é ordem mundial imperialista. Ela não pode ser preservada sem guerras. O capitalismo é um obstáculo intransponível para a tendência mais profunda do desenvolvimento histórico que o próprio capital potencializou. Esta tendência é somente uma possibilidade, não um destino: a crescente unificação da humanidade em uma civilização mundial. Mas o capitalismo não pode unificar a humanidade. Ser de esquerda é ser anti-imperialista.

3. Quando dizemos que a ordem mundial se estrutura como uma ordem imperialista não estamos afirmando que exista um “governo mundial”. O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas. O Brexit é mais uma demonstração de que permanece intensa a competição entre as burguesias dos países centrais nas disputas por espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos. Não se confirmou a hipótese de um superimperialismo, discutida na época da II Internacional: uma fusão dos interesses imperialistas dos países centrais. O ultraimperialismo nunca foi senão uma utopia reacionária.

4. Mas seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da II Guerra Mundial. Ele se expressa ainda hoje, institucionalmente, trinta e dois anos depois do fim da URSS, pelas organizações do sistema ONU e Bretton Woods, portanto, através do FMI, do Banco Mundial, OMC, e BIS de Basileia e, finalmente, no G7. A contrarrevolução aprendeu com a história. No centro de poder da ordem imperialista está a Tríade: os EUA, a União Europeia e o Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington, e aceitam a sua superioridade desde o final da II Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica em 1989/91 não alterou este papel da Tríade e, em especial, o lugar dos EUA. Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece. A dimensão de sua economia com um PIB acima de US$20 trilhões; o peso de seu mercado interno; o apelo do dólar como moeda de reserva ou entesouramento; a superioridade militar; e a capacidade de iniciativa política permitiram, entre outros fatores, apesar de uma tendência de debilitamento, manter a posição de liderança no sistema de Estados. O papel dos EUA é preservar este lugar, em especial, diante da China.

5. Nenhum Estado da periferia passou a ser aceito no centro do sistema nos últimos trinta anos. Rússia e China (apesar da caracterização da natureza da China ser mais controversa) são Estados que preservaram a independência política, embora tenham restaurado o capitalismo, e exercem papel protoimperialista em suas regiões de influência. Na órbita da Rússia estão semicolônias como a Bielorrússia, Turcomenistão, Quirguízia, Uzbequistão, Tadjiquistão. A Rússia tem o segundo arsenal nuclear do mundo. A China é a segunda economia do mundo e tamanho faz diferença. Ao contrário da Rússia, em Beijing a burguesia não está, diretamente, no poder e o controle do Estado se mantem nas mãos de um aparelho burocrático. Mas os investimentos chineses têm dimensão mundial. Rússia e China são exportadores de capital, não países dependentes. São potências subalternas, ou em formação. Historicamente, a emergência de subimperialismos nunca se resolveu através de negociações. Itália, Japão e  até a enorme Alemanha tiveram que ir à guerra. Não podemos saber qual será a dinâmica para o conflito entre Rússia e China contra a Tríade. Mas a guerra na Ucrânia é hoje o laboratório da história.

6. Outras mudanças ocorreram na inserção dos Estados da periferia. Alguns têm uma situação de dependência maior, e outros uma dependência menor. O que predominou, depois dos anos oitenta, foi um processo de inserção subalterna, ou “recolonização”, ainda que com oscilações, e atingiu até o Brasil, o maior país entre os dependentes. Há uma regressão histórico-social em curso. E ela é inversa daquela que predominou entre 1945/75, depois da derrota do nazifascismo, quando a maior parte das antigas colônias na periferia conquistou, parcialmente, independência política, ainda que no contexto de uma condição dependente, ou mesmo semicolonial. A maioria dos Estados que conquistaram independência política na onda de revoluções anti-imperialistas que se seguiram à vitória da revolução chinesa, coreana e vietnamita perdeu esta conquista: Argélia e Egito, ou Líbia, Iraque e Síria são exemplos, entre outros, desta regressão histórica, posterior a 1991. Alguns regrediram à condição de Protetorados. Ainda existem, porém, governos independentes, como Venezuela, Irã , Coreia do Norte e Cuba.

7. Analisar a situação mundial exige estudar as disputas no sistema internacional de Estados, mas marxistas não devem se esquecer da luta de classes. O marxismo sempre se distinguiu por considerar que os antagonismos de classe seriam os conflitos decisivos no mundo contemporâneo, embora não fossem, evidentemente, os únicos. O marxismo sublinhou que, se a luta entre o capital e os trabalhadores e seus aliados oprimidos era um combate que se iniciava dentro de fronteiras, se decidiria na arena mundial. Uma análise que ignora o lugar e as rivalidades dos Estados no sistema internacional diminui e subestima a força da contrarrevolução. O caminho inverso é ainda mais desanimador. Quando se subestimam os conflitos entre as classes em cada sociedade, a análise redundará, fatalmente, em avaliações superficiais exagerando a força da contrarrevolução. Guerras continuarão acontecendo, infelizmente, mas revoluções, também.

8. Esse segundo caminho foi percorrido por boa parte da esquerda mundial no século XX, sobretudo, aquela que considerou que o destino da causa socialista estava, indissoluvelmente, associado ao futuro do governo da URSS. Este “nacionalismo da URSS” ou estalinismo não deve ser confundido com o internacionalismo, e merece ser denominado de campismo socialista. A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que os seus regimes políticos fossem aberrações burocráticas, um híbrido histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda internacionalista, no pós-guerra, em uma situação paradoxal, até desconcertante. Deveria defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista. Mas, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores pelas liberdades democráticas. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito. Algo muito mais complexo do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional. A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa originando desequilíbrios: estalinofilia ou estalinofobia.

9. Um problema político semelhante se coloca hoje face à guerra da Ucrânia. O campismo é uma bússola perigosa. O imperialismo da Rússia é subalterno, porque está fora do centro de poder no sistema internacional de Estados. É verdade que os EUA tinham negociado, trinta anos atrás, que a OTAN não avançaria para o Leste e rompeu este acordo, o que é uma ameaça para Moscou. Também é verdade que Zelensky lidera um governo de extrema-direita que tem apoio de uma ala fascista, e transformou a Ucrânia em um protetorado dos EUA. Mas não é verdade que a Ucrânia não é uma nação, historicamente, legítima. E o discurso ideológico ultranacionalista de que a Rússia está em luta pelo “direito de existir” é uma invenção paranoica. A Rússia tem força nuclear com poder dissuador. A invasão não foi um movimento defensivo diante de uma situação de “perigo real e imediato”. Putin cometeu um erro de cálculo estratégico. Não haveria nada de progressivo, se a Rússia recuperasse o domínio semicolonial que manteve, até 2014, em Kiev. Mas este desenlace é mais do que improvável, sem engajamento da China. E a China não tem interesse em medir forças agora.

10. A justa defesa da Ucrania diante de uma agressão imperialista não nos desobriga da constatação de que a entrada da OTAN na guerra mudou a natureza do conflito. A ausência de uma declaração formal, por parte dos EUA e da União Europeia, de guerra contra a Rússia é uma manobra diplomática. Nas guerras contemporâneas a presença de soldados no solo é, militarmente, um desafio tático. Os ucranianos cumprem o papel de “carne para canhão”. A guerra é financiada pelos EUA e UE, as armas são norte-americanas, inglesas e de países da EU, o comando militar é compartilhado com os ucranianos. A permanência de Kiev como protetorado de Washington é uma ameaça à paz mundial. Nenhum dos dois blocos está mais perto de vitória um ano depois. E não há solução militar à vista, ao contrário, o perigo é a guerra escalar. Os dilemas da luta anti-imperialista são complicados. Mas só uma esquerda internacionalista por inteiro é digna de futuro.