Em seu famoso livro O dia de um oprítchnik, o escritor russo contemporâneo Vladímir Sorókin imagina uma distopia caracterizada pelo renascimento, na Rússia de 2027, do regime político que imperou sob o reinado de Ivan, o Terrível, na segunda metade do século 16. Na genial obra, a Rússia está separada do Ocidente por uma enorme muralha, sendo permitido apenas o trânsito de gás em direção à Europa. Além disso, a Rússia se encontra sob forte influência chinesa, com áreas inteiras da Sibéria sendo ocupadas por esta população. O oprítchnik é um fiel membro da milícia particular do Soberano, que governa a Rússia de forma autocrática já há duas gerações. A Oprítchnina, esta tropa de choque medieval que surgiu e desapareceu no século 16 e renasceu na Rússia distópica de Sorókin, é uma poderosa força de repressão, utilizada pelo Soberano em suas operações pessoais de vingança. Embora os livros de Sorókin tenham sido queimados em praça pública na Rússia e as bibliotecas e livrarias se recusem a comprá-lo e distribuí-lo, ele nos ajuda a pensar a encruzilhada na qual se encontra a Rússia e o mundo no atual momento histórico.
A guerra na Ucrânia completa hoje 1 ano. Como todos lembram, as operações se iniciaram com uma dupla justificativa por parte de Putin: defender a população russa (ou falante do russo) da região do Donbass (leste da Ucrânia) e impedir o avanço da OTAN rumo às fronteiras russas.
Desde o seu início, o conflito se revestiu, portanto, de um duplo caráter: por um lado, tratava-se de uma guerra de agressão por parte da Rússia contra a Ucrânia, um país historicamente oprimido pelo nacionalismo grão-russo1. Por outro, a expansão da OTAN em direção ao Oriente é um fato real, o que concedia à guerra um caráter de conflito interimperialista, ou seja, de um enfrentamento velado entre a Rússia e as potências ocidentais.
Não eram justas, portanto, as análises que absolutizavam um aspecto da guerra em detrimento de outro. Muitas organizações de esquerda viam apenas a agressão russa contra a Ucrânia, o que era e é um dado da realidade, mas não esgota o problema. Outras organizações ignoravam exatamente este aspecto e tomavam o enfrentamento interimperialista como único fator importante, o que também se caracterizava como erro.
Passado um ano do conflito, pode-se dizer que este duplo caráter apenas fez se aprofundar. A guerra de agressão se desdobrou em uma guerra de ocupação, com a incorporação, por meio de plebiscitos bastante questionáveis, dos territórios do leste da Ucrânia à Rússia. Aos alvos militares, somaram-se alvos civis, principalmente a estrutura de produção e distribuição de energia elétrica do país, o que deixou boa parte dos ucranianos no escuro e no frio durante os piores meses do inverno.
De outro lado, o que começou como simples incentivo político e diplomático ao conflito por parte dos países imperialistas centrais se transformou em participação quase direta, com o gigantesco financiamento da guerra e o fornecimento de armamentos cada vez mais caros e pesados. Desde esse ponto de vista, a guerra se transformou em uma típica guerra por procuração, onde os ucranianos lutam por si, mas também lutam pela OTAN, que os utiliza para derrotar a Rússia. A dívida externa da Ucrânia com o Ocidente se tornou quase incalculável, com 17 bilhões de dólares devendo ser pagos somente em 2023.
É verdade que a guerra se demonstrou muito mais longa e mais difícil do que provavelmente previam os generais e políticos russos. O exército ucraniano, armado e treinado pelo Ocidente, se demonstrou bastante eficiente e impôs ajustes importantes nos planos iniciais de Putin. Mas também é verdade que a enxurrada de sanções contra a Rússia não teve o efeito que se esperava em Washington, Londres, Berlim e Paris. Resulta que Putin estava preparado também para um cenário de guerra longa e sanções mais duras. Durante o ano que se passou, apesar da guerra, foram estreitados laços entre a Rússia e países como China, Irã, Índia, África do Sul e outros. Discute-se não apenas comércio, mas colaboração estratégica, como por exemplo a adoção de moedas alternativas ao dólar como meio de pagamento das transações bilaterais.
De uma forma ou de outra, o redesenho do mundo parece ter começado, o que estava incluído entre os objetivos de Putin, embora essa não fosse a única questão. Este novo mundo não será um mundo livre da opressão imperialista, como pensam os mais ardorosos fãs de Putin e Xi Jinping, já que esses países, uma vez consolidada sua posição imperialista, devem estabelecer com suas semi-colônias relações tão injustas quanto quaisquer outras relações imperialistas. Também não será a mundialização do regime russo ou chinês, numa espécie de distopia mundial à la George Orwell. Esse não é o projeto de Rússia, nem China, nem Irã. Na verdade, não sabemos muito bem como esse mundo será. E quem disser que sabe está mentindo. Mas temos alguns elementos.
Sabemos que a China tenderá a drenar cada vez mais recursos energéticos e commodities do mundo, sendo que a Rússia se colocará como uma das grandes fornecedoras dessa energia na forma de gás natural. A aliança entre esses dois atores tende a se aprofundar e adquirir cada vez mais um caráter estratégico.
Sabemos também que alguns países tendem a abandonar o dólar com meio de pagamento de suas compras internacionais, o que deve acelerar um pouco a lenta decadência norte-americana.
Sabemos que mais cedo ou mais tarde, a questão de Taiwan será posta sobre a mesa pela China, o que pode desencadear um novo conflito de dimensões globais, ainda mais agudo do que o atual. A grande questão é definir o que é “mais cedo ou mais tarde” em termos chineses, um império milenar que pensa e planeja na casa das décadas.
Sabemos que a Europa pagará cada vez mais caro pela energia, que ela será obrigada a continuar recebendo imigrantes devido à difícil situação demográfica em que já se encontra. Sabemos que num caso e no outro podem se fortalecer posições fascistas e de extrema-direita, anti-imigração e antiliberais.
Sabemos que o crescimento econômico mundial continuará a ser pífio ainda por um longo tempo, dado que o motor chinês vem desacelerando já há alguns anos. Isso também deve provocar reviravoltas no tabuleiro político, inclusive (ou até mesmo sobretudo) em países como o Brasil, profundamente dependentes dos ciclos mundiais de crescimento e recessão.
Fala-se muito que uma parte significativa da população russa não apoia a guerra, o que parece ser verdade pelos dados de que dispomos. Mas pouco fala-se que a população europeia e norte-americana também está cansando de pagar quatro vezes mais pelo gás, enquanto burocratas ucranianos passam suas férias em resorts nos Emirados Árabes. O que acontecerá quando o apoio à guerra entre os eleitores de Biden ou Macron chegar a patamares mínimos? Zelenski será abandonado ou a extrema-direita apoiadora de Putin e opositora da guerra vencerá?
Enfim, a guerra que está sendo travada é uma guerra por um redesenho global, sendo que nenhuma das partes tem uma ideia final e acabada de como o resultado final deve ser. Como tudo no capitalismo, impera o caos dos interesses nacionais e individuais, equacionados apenas pelo “estica e puxa” diplomático, político, econômico e militar.
Aqueles entre a esquerda que pregam “guerra até a vitória!” (para um ou outro lado, não importa), só o fazem porque estão a 10.000 quilômetros dos acontecimentos e não têm a menor ideia do que significa uma guerra de verdade.
Mais do que nunca, é necessária a paz. Uma paz difícil, complexa, que precisa atender aos interesses de distintos povos, com distintas culturas e percepções de si mesmo e de seus vizinhos.
Lula errou em orientar que o Brasil votasse na ONU uma resolução que condena a Rússia, mas cala sobre a OTAN. Ainda assim, sua proposta de construir uma mesa de negociação e mediação com países não interessados no conflito pode ser um importante primeiro passo, embora claramente insuficiente neste momento. De qualquer forma, é positivo que se façam esforços por retirar a iniciativa da paz das mãos dos senhores da guerra.
O mundo que deve surgir desta guerra está distante de um mundo melhor, mais solidário, mais livre e mais justo. Será o mundo com uma nova configuração de senhores, mas, ainda assim, um mundo de senhores. O nosso mundo, aquele sem explorados e exploradores, oprimidos e opressores – este ainda está por construir.
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