Ucrânia: Primeiro ano de uma aterrorizante guerra imperialista

Durante um ano, o Ocidente e a Rússia transformaram a Ucrânia no palco de uma guerra por procuração mortal. Nick Clark e Charlie Kimber analisam o que está por trás do massacre – e como ele pode ser interrompido.

Nick Clark e Charlie Kimber, do Reino Unido.
Foto: PNUD Ucrânia/Flickr

Vivendo em meio às ruínas na aldeia de Novoselivka, perto de Chernihiv, Ucrânia. Regiões do país foram destruídas por barragens de mísseis

Não há final à vista para a guerra na Ucrânia – e também não há heróis. Certamente não são aqueles que, nos últimos 12 meses, apoiaram entusiasticamente e aplaudiram o envio de mais armas e equipamentos de guerra para os militares ucranianos. Em vez de ajudar a tornar o fim da guerra mais próximo, eles a transformaram em um confronto cada vez mais aberto entre a OTAN, a aliança militar do Ocidente, e a Rússia.

As pessoas comuns na Ucrânia e na Rússia foram obrigadas a desempenhar o papel de soldados de infantaria e vítimas nesta guerra pela dominação na Europa Oriental. Mas, quanto mais o tempo passa e quanto maior o envolvimento do Ocidente nos combates, maior a probabilidade de a guerra se estender e englobar muito mais gente no horror.

No campo de batalha, soldados ucranianos e russos passaram meses nas trincheiras, matando-se uns aos outros em um front que quase não se move. Os EUA avaliam que, entre mortos e feridos, as baixas chegam a 100 mil soldados de cada lado desde o início da guerra. Mas, passo a passo, os EUA, a Grã-Bretanha e outros países europeus se envolveram cada vez mais na guerra, à medida em que trilham um caminho agora já familiar.

Atualmente, o governo ucraniano está exigindo que os EUA e seus aliados lhe forneçam caças de combate –especialmente os F16 fabricados nos EUA. O presidente dos EUA, Joe Biden, recusa-se a fazê-lo, de forma categórica – em público. Os EUA sabem que armar a Ucrânia com caças de longo alcance é um risco de expandir a guerra bem além da Ucrânia. Também implicaria a OTAN mais diretamente na guerra.

Mas os aliados dos EUA, incluindo a Grã-Bretanha, sugeriram que poderiam enviar caças no futuro. E o governo ucraniano está esperançoso de que um dia conseguirá o que quer. Ele se recorda de como, até recentemente, os EUA e seus aliados também se recusavam a enviar tanques para ajudar na ofensiva da Ucrânia. Isso mudou em janeiro, marcando uma ruptura com a alegação de que o Ocidente só armaria a Ucrânia com as armas necessárias para se defender.

Ao longo da guerra, o armamento da Ucrânia pelo Ocidente ultrapassou todas as suas supostas “linhas vermelhas”, uma a uma. Começou com sanções, depois passou rapidamente para o fornecimento de armas “defensivas”, depois armamento pesado para bombardeios. Yuriy Sak, conselheiro do ministro da Defesa ucraniano, Oleksiy Reznikov, disse à agência de notícias Reuters: “Eles não queriam nos dar artilharia pesada, então eles o fizeram. Eles não queriam nos dar sistemas Himars1, mas depois mudaram de ideia. Eles não queriam fornecer tanques, agora estão nos dando tanques. A não ser armas nucleares, não há mais nada que não recebamos.”

A fabricante de armas Lockheed Martin já aumentou sua produção de F-16, prevendo que os governos estão prestes a enviar seus próprios jatos para a Ucrânia.

Não se trata então do caso de a OTAN ser arrastada para a guerra, contra a sua própria vontade. Os EUA e seus aliados usam o controle e o fornecimento de armas para, à distância, dirigir a guerra em seus próprios interesses. No ano passado, quando Boris Johnson ainda era primeiro-ministro britânico, ele usou uma de suas várias viagens à Ucrânia para dizer ao presidente Volodymyr Zelensky não negociar com a Rússia.

O jornal ucraniano Ukrainska Pravda informou que Johnson disse a Zelensky que o Ocidente “não estava pronto” para o fim da guerra. Em vez disso, disse que o Ocidente queria usar a guerra para “pressionar” o presidente russo, Vladimir Putin. Dias depois, as negociações fracassaram após a Ucrânia endurecer sua posição.

Isso deve dizer algo sobre quem está realmente dirigindo a guerra e para quais fins. Em mais de uma ocasião, Biden e as autoridades dos EUA disseram que seu objetivo na guerra da Ucrânia é o de “enfraquecer” a força e a influência da Rússia na Europa.

Trata-se de parte de um projeto ainda maior para reafirmar o poder militar dos EUA – e atrair os estados europeus para uma aliança mais estreita – contra sua maior rival, a China. Isso é o que torna a guerra muito mais do que uma guerra de invasão e defesa. É uma guerra por procuração, entre dois campos imperialistas, em que a Ucrânia luta em nome do Ocidente.

Ela explodiu após mais de uma década de crescente competição entre o Ocidente e a Rússia na Europa Oriental.

A Rússia tentou estabelecer e consolidar o domínio econômico na região, principalmente através de seu controle do fornecimento de gás para a Europa. Paralelamente, a União Europeia e a Otan tentaram atrair os países vizinhos para a sua área de influência por meio de ofertas de cooperação econômica e de proteção militar.­

A Rússia invadiu a Ucrânia não para proteger o povo ucraniano, mas para defender seus interesses militares e econômicos. Putin não é um amigo da classe trabalhadora internacional. Ele preside um regime neoliberal repressivo e apela ao nacionalismo da Grande Rússia em busca de apoio ideológico.

Putin procurou reconstruir o poder militar russo e utilizá-lo para manter o domínio de Moscou sobre seu “entorno próximo”, com destaque para o esmagamento do movimento de independência na Chechênia, na guerra de 2008 com a Geórgia e na conquista da Crimeia em 2014. Um pouco mais além, o poder militar russo tem sido usado para salvar o regime brutal de Bashar al-Assad na Síria.

Por sua vez, nos anos anteriores à guerra, a OTAN impulsionou a cooperação militar com os estados próximos das fronteiras russas e consolidou suas forças bélicas lá. Treinou e equipou o exército ucraniano, tudo com o objetivo explícito de “conter” a Rússia.

Esse processo de competição é que deve ser responsabilizado pela guerra – e fornecer novas armas com o objetivo de derrotar a Rússia é uma extensão disso. Longe de acabar com a guerra, ele a prolonga e impulsiona a alturas mais aterrorizantes.

Precisamos de um movimento anti-guerra no Reino Unido e na Rússia também

A melhor forma de acabar com a guerra seria por meio de levantamentos revolucionários no Ocidente, na Rússia e na Ucrânia. No começo da guerra, dezenas de milhares de russos, corajosamente, foram às ruas contra Vladimir Putin e pediram a paz. Os socialistas entre eles clamaram pela transformação da guerra imperialista em uma guerra de classes.

Mas o movimento enfrentou uma intensa repressão e não se expandiu suficientemente para a classe trabalhadora. As sanções ocidentais, projetadas para aumentar as dificuldades econômicas, tornaram mais fácil para Putin posar como um amigo dos cidadãos comuns. Policiais e soldados interromperam a onda inicial de protestos pela paz.

No entanto, ao longo da história, a maior oposição à guerra tem vindo muitas vezes após meses ou anos de luta. Assim foi na Primeira Guerra Mundial, ou na guerra dos EUA no Vietnã ou na invasão russa no Afeganistão. O sentimento antiguerra cresceu em torno de elementos como o horror à escala de baixas, a desilusão sobre os objetivos declarados da guerra e o sofrimento da classe trabalhadora.

Recentemente, o movimento antiguerra russo teve indícios de reavivamento. O canal de mensagens do Telegram “O Conselho de Esposas e Mães” reúne um grupo que acreditava que o exército russo estava obrigando as pessoas a assinarem termos de engajamento nas forças armadas contra a sua vontade. Esse canal tem agora comitês locais em 89 cidades em toda a Rússia.

E os russos protestaram após a morte de ucranianos no mês passado em um ataque com mísseis contra a cidade de Dnipro. Exposições improvisadas de flores, brinquedos de pelúcia e anotações manuscritas foram vistas em pelo menos 60 cidades em toda a Rússia. “É uma declaração contra a guerra, não apenas de luto pelas pessoas mortas em Dnipro”, declarou uma mulher que depositou flores em um memorial na cidade siberiana de Novosibirsk.

No Ocidente, as mobilizações antiguerra têm sido geralmente pequenas. E o apoio generalizado à guerra por parte de todos os partidos no Reino Unido, dos conservadores aos trabalhistas, ajudou a sufocar a oposição. A falta de grandes protestos de esquerda abriu a porta para a direita – como o presidente Victor Orban na Hungria – aparecer como o único foco significativo antiguerra.

Keir Starmer, líder do Partido Laborista, tem sido um ferrenho defensor da guerra desde o seu começo. Mas a esquerda trabalhista também desempenhou um papel particularmente prejudicial. Quando a guerra começou, 11 deputados, incluindo Diane Abbott, John McDonnell, Bell Ribeiro-Addy, Zarah Sultana e Richard Burgon, assinaram uma declaração, Stop the War, que se opunha à invasão, mas também criticava a OTAN.

O chefe do Partido Trabalhista os repreendeu e, em uma rápida vitória de Keir Starmer, eles imediatamente retiraram suas assinaturas. Os relatos de quanto tempo levou para eles recuarem variam entre 30 minutos e uma hora. A partir de então, nenhum deputado trabalhista participou de manifestações ou comícios antiguerra.

O objetivo de “libertação nacional” já foi substituído há muito tempo. A intervenção dos EUA e seus aliados suprimiu quaisquer elementos de libertação nacional e os substituiu por seus próprios interesses. Uma vitória da Ucrânia-OTAN só pode acontecer com a Ucrânia exaurida, suas terras devastadas e seu futuro como um acampamento militar permanente.

Os direitos populares e a democracia foram esvaziados sob o pretexto das “medidas especiais de guerra” e da “unidade nacional”. O governo ucraniano já proscreveu vários partidos de oposição, destruiu os direitos sindicais e introduziu medidas duras contra os “desertores”.

Os socialistas sempre se opuseram à invasão russa. Mas também tiveram que lutar contra o papel da OTAN e sua guerra por procuração. O principal inimigo dos socialistas é a sua própria classe dominante. Na Rússia, isso significa enfatizar a oposição a Putin sem sucumbir ao apoio à Otan.

Na Grã-Bretanha, isso significa não ceder em nada às mentiras e ao belicismo de nossos governantes – mas não embelezar a reacionária invasão russa.  Isso, por mais difícil que seja, também é verdade na Ucrânia – e há um precedente muito relevante.

A Primeira Guerra Mundial foi desencadeada pelo ataque à Sérvia pelo poder do Império Austro-Húngaro. Naquele momento, os socialistas sérvios deveriam ter aceitado o patrocínio das forças imperialistas que se disseram prontas a apoiá-los? O melhor entre eles não o fez.

O socialista revolucionário sérvio Dusan Popovic escreveu: “Para nós, ficou claro que, no que dizia respeito ao conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, nosso país estava obviamente em uma posição defensiva. A Sérvia estava defendendo sua vida e sua independência”.

Mas ele acrescentou: “No entanto, para nós, o fato decisivo foi que a guerra entre a Sérvia e a Áustria foi apenas uma pequena parte de uma totalidade, meramente o prólogo da guerra europeia universal, e esta não poderia deixar de ter um caráter imperialista claramente pronunciado. Como resultado, consideramos que era nosso dever nos opormos resolutamente à guerra.”

E a revolucionária Rosa Luxemburgo disse: “A própria Sérvia é apenas um peão no grande jogo da política mundial. Uma apreciação sobre a guerra na Sérvia a partir de um ponto de vista que não leve em conta essas relações mais abrangentes e o contexto político mundial geral é necessariamente sem fundamento”.

Os revolucionários sérvios no parlamento corajosamente votaram contra as verbas para a guerra e, assim, colocaram-se contra o que logo se revelou como uma carnificina global.

Tirando proveito de um conflito sangrento

Quanto mais o Ocidente se envolve nhttp://filmesfranceses.com.br/a guerra, mais seus políticos procuram colocar sua economia em pé de guerra. O ministro da Defesa conservador do Reino Unido, Ben Wallace, está exigindo que, quando o governo britânico defina seu orçamento em março, gaste mais com as forças armadas. Ele reclamou que os orçamentos militares foram “saqueados” durante o que ele denominou como “tempos de paz”.

Mas agora que a Grã-Bretanha está se preparando, junto com os EUA, para confrontos com a Rússia e a China, os gastos militares devem ser centrais, diz ele – e são mais importantes do que o financiamento de aumentos salariais. A austeridade vindoura “significa que vai atingir a todos nós em todos os nossos departamentos, porque, como vocês sabem, em última análise, a resposta não pode ser, portanto, a de inundar tudo com gastos extras ou mais empréstimos. Mas também sei que temos uma ameaça crescente no cenário mundial”, disse ele.

O ministro-sombra da Defesa do Partido Trabalhista, John Healey, é ainda mais contundente. No início de fevereiro, ele prometeu que um governo trabalhista reequiparia as forças armadas da Grã-Bretanha, ao mesmo tempo em que enviasse armas para a Ucrânia. Ele quer gastos militares britânicos em “uma base operacional urgente” para estocar armas para manter a guerra na Ucrânia e – ameaçadoramente – “para qualquer conflito futuro”.

1 Sigla em inglês para sistema lançador múltiplo de foguetes.

Publicação original: Ukraine: Year one of a terrifying imperialist war

Tradução por Waldo Mermelstein