A guerra imperialista e criminosa lançada pela autocracia putinista contra a Ucrânia vem destruindo o país há um ano e semeando morte e sofrimento, gerando uma guerra mundial e uma espiral reacionária, alimentando o caos econômico internacional e ofuscando as tarefas centrais da luta de classes do nosso tempo: a transição ecossocialista para evitar o colapso climático, a luta contra a exploração e a opressão e a luta contra a extrema-direita e o neofascismo. Nós de Anticapitalistas nos opomos a esta guerra, lutamos por uma paz sem anexações e a retirada das tropas russas, bem como a autodeterminação da Ucrânia e seu não alinhamento entre os blocos imperialistas, e apoiamos a desobediência contra a guerra.
No entanto, é necessário evitar simplificar esta guerra em ambas as direções, e sustentamos que, embora o governo Putin seja responsável pela invasão, não é menos verdade que o conflito armado interno desencadeado no leste da Ucrânia desde 2014 (com inegável origem endógena, apesar da rápida interferência de potências estrangeiras para ajudar a ambos os lados) e, acima de tudo, a incessante disputa geopolítica e geoeconômica entre o imperialismo russo e o ocidental (americano e também europeu) pelo controle daquele país, bem como a extensão da NATO à Europa Oriental, dizem-nos que a responsabilidade por ter dinamitado a paz na região é compartilhada e vem de muito mais longe.
Depois de um ano de guerra, é óbvio que não pode haver uma solução exclusivamente militar para o conflito por uma série de razões:
- A ocupação militar da Ucrânia pela Federação Russa é impossível por razões políticas e militares óbvias: a maioria dos cidadãos ucranianos rejeita a invasão e está determinada a resistir. Uma constante desde a Revolução Francesa é que, embora um exército inimigo inferior possa ser destruído, ele não pode esmagar indefinidamente um povo determinado a não ser ocupado.
- A menos que a figura de Putin desapareça (seja por razões de saúde ou por um golpe de Estado, por enquanto improvável), é difícil imaginar uma derrota russa completa, dado o tamanho do país e o fato incontestável de que seu regime uniu seu destino ao resultado da guerra. Por sua vez, o governo ucraniano não pode derrotar completamente a Rússia (especialmente se planeja recuperar a Crimeia) sem o risco muito alto de arrastar a OTAN para um confronto direto com a Rússia, algo que não apenas Zelensky, mas também os governos de extrema-direita da Polônia e da Lituânia vêm buscando desde o início da invasão.
- A ruptura desse equilíbrio fornecendo armas pesadas (tanques) e talvez, em breve, caças da OTAN e mísseis de longo alcance para a Ucrânia, desencadeou uma escalada do conflito, as represálias de Putin contra a população civil e a destruição da infraestrutura básica do país e o risco crescente, com o passar dos meses, de que isso levaria a uma guerra inter-imperialista em maior escala.
- Como muitos de seus formuladores de políticas dizem explicitamente, a guerra por procuração da OTAN contra a Rússia (que é o único objetivo ao qual seu suposto interesse em “democracia” e “liberdade” se resume) instrumentaliza a rejeição legítima da população ucraniana à invasão russa. Da mesma forma que a OTAN, e especialmente os Estados Unidos e o Reino Unido, estão dispostos a tirar proveito da guerra para enfraquecer a Rússia completamente, não está descartado que a China, principal adversário global de Washington, decida fazer o mesmo, armando a Rússia com a lógica simétrica de não deixar seu aliado se afundar, algo que, se acontecesse, nos aproximaria decididamente de uma Terceira Guerra Mundial.
Não só as sérias ameaças de Putin de recorrer a armas nucleares devem ser levadas muito a sério, mas também vale a pena lembrar que ameaças semelhantes foram proferidas por Biden mesmo antes da invasão e que – como Macron recentemente – não poucos líderes da OTAN estão tomando de forma frívola o enorme perigo representado pelo uso de tais armas (especialmente quando se trata de armas nucleares “táticas”).
Nesses tempos, encontramo-nos na necessidade de recordar obviedades como as seguintes: nenhum dos imperialismos (nem o da Rússia, nem o dos Estados Unidos, nem o da China, nem o da UE) respeita o direito de autodeterminação dos povos. Eles só vigiam os “direitos humanos” quando pisoteados por seus inimigos, eles só procuram julgar os crimes de guerra de seus adversários. O imperialismo nunca defende “valores”, o que defende são interesses. Nas palavras de um primeiro-ministro vitoriano do Império Britânico, Lorde Palmerston (1), “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Nossos interesses são eternos e perpétuos, e nossa obrigação é vigiá-los.”
Por todas essas razões, acreditamos que a esquerda anticapitalista e internacionalista não pode ceder à tentação de escolher entre os blocos em disputa e deve manter uma posição anti-imperialista independente e concentrar-se na rejeição da guerra, na solidariedade com o povo ucraniano que a sofre e no apoio à oposição antiguerra na Rússia e na luta contra o militarismo e os governos capitalistas. Isto obriga-nos a lutar contra a política dos nossos próprios governos nesta crise: contra os interesses imperialistas das classes dominantes dos nossos países, contra o aumento dos orçamentos militares e a expansão da NATO, contra a inflação, a alta no custo de vida e as políticas de austeridade e contra a alimentação da indústria da morte, que se aproveita do choque e da comoção provocadas guerra.
A guerra por procuração da OTAN, com a qual Washington alimentou e instrumentalizou a guerra em curso, está se combinando com “sanções econômicas” contra a Rússia – que, além disso, se revelaram totalmente inúteis para travar o conflito – que têm repercussões nas condições de vida das classes populares russas e do resto do mundo (e particularmente as dos povos do Sul Global), com uma guerra económica contra as classes populares russas e as do resto do mundo (e particularmente as dos povos do Sul Global) e com uma guerra económica contra a UE (e em particular contra a Alemanha) com a qual pretende recuperar a competitividade da economia dos EUA e incentivar as deslocalizações [de empresas para o território americano] (o pânico já está se espalhando em Paris e em Berlim a esse respeito) para, não só romper irremediavelmente a colaboração económica entre a Europa e a Rússia (“se houver invasão não haverá Nord Stream”, nas palavras de Biden a Sholz), mas também para reforçar a subordinação política da UE aos interesses de Washington. Os blocos imperialistas estão coesos e se preparando para uma fase de confrontos em diferentes níveis.
Bem, cabe-nos viver em um contexto internacional semelhante ao dos “anos de segurança” que precederam a Primeira Guerra Mundial, em que o movimento operário considerou como evitar uma grande guerra por todos os meios. Ontem como hoje, o perigo é ver a árvore e não a floresta e que a esquerda se adapte à denúncia das atrocidades das potências rivais sem lutar contra as suas, esquecendo, em suma, uma das frases proféticas do líder revolucionário alemão Karl Liebknecht: “o inimigo está em casa”.
Se a guerra em curso não for interrompida em breve, é muito provável que o que virá a seguir signifique um salto infinitamente maior e ainda mais irreversível em direção à barbárie. É por isso que a guerra deve ser interrompida antes que seja tarde demais, mas isso é impossível a menos que haja uma consciência e um passo em frente na ação política independente por parte das classes trabalhadoras, a fim de enfrentar o grave perigo que estamos correndo, não só na Ucrânia, mas também na Rússia, Europa e em todo o mundo.
Pela retirada imediata das tropas russas da Ucrânia.
Pela autodeterminação do povo ucraniano defendendo sua neutralidade e não-alinhamento com nenhum dos imperialismos.
Pelo direito de autodeterminação do Donbass sob a supervisão de países não alinhados no conflito.
Pelo cancelamento da dívida externa da Ucrânia e pelo fim das sanções em escala global.
Pelo cessar-fogo. Pela desmilitarização e desnuclearização das fronteiras. Fim das remessas de armas pelos países imperialistas.
Guerra à guerra: pelo internacionalismo e solidariedade entre as classes trabalhadoras do mundo.
NOTAS
1 Lorde Palmerston foi um estadista britânico do século XIX que teve muita importância na definição da política externa do país quando estava no apogeu de seu poder imperial.
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