O Deputado Federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos/DF) propôs o PL 551/2023, que dispõe sobre a obrigatoriedade de exame psicológico para estudantes de medicina, enfermagem e psicologia, como condição para o exercício profissional; além de propor a avaliação em saúde mental como critério admissional e exame periódico. O PL tenta atribuir um verniz de cuidado aos profissionais de saúde e proteção à população a medidas contraditórias, insuficientes e inadequadas.
O projeto, cuja justificativa cita nominalmente o apoio do presidente bolsonarista do Conselho Federal de Medicina, José Hiran Gallo, possui pontos problemáticos:
– Prevê a obrigatoriedade de inclusão na grade curricular dos cursos citados das disciplinas de Humanização, Bioética e Atenção à Saúde Mental;
– Deixa a critério do empregador a escolha do instrumento de avaliação psicológica admissional e periódica;
– Atribui ao adoecimento mental as denúncias de importunação e violência sexual cometidas por profissionais de saúde, enfatizando como grande motivação ao projeto a denúncia de estupro contra o médico anestesista que violentou uma parturiente durante cesárea no Rio de Janeiro;
– Atribui ao exame psicológico o poder de identificar transtornos mentais e “desvios de caráter, impedindo que pessoas inescrupulosas” exerçam as profissões.
A formulação do projeto revela profundo desconhecimento pelos proponentes acerca da matriz curricular dos cursos abarcados, uma vez que já inclui os temas de humanização, bioética e atenção à saúde mental. A questão central sobre isso é, na verdade, a fragilização dos currículos, com sucessivas tentativas de desvincular a formação profissional das bases do Sistema Único de Saúde (SUS) e de suas políticas, o que está agregado ao sucateamento das universidades públicas; à precarização do ensino, da pesquisa e da permanência estudantil; e à ostensiva investida do sistema privado de educação para a expansão do Ensino à Distância (EaD) e para a intervenção na pesquisa e na extensão. Exemplo disso são as iniciativas de expansão do EaD e a reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de Enfermagem.
A integração entre o ensino, o serviço e a comunidade, balizada por um sistema educacional fortalecido que execute bases curriculares coerentes com as políticas públicas de saúde é a real medida de qualificação da formação das categorias visadas pelo projeto. Isto é intrinsecamente dependente da estrutura e da execução das políticas e programas de saúde nas unidades de saúde utilizadas como campos de prática para a construção desses profissionais, que estão atravessadas pelo desmonte, pelo sucateamento, e pela permanência de uma lógica de saúde biologicista, hospitalocêntrica, manicomial e segregadora.
Em segundo lugar, a interpretação das denúncias de violência sexual como resultado de transtornos mentais blinda os agressores da responsabilização por seus crimes – em uma perspectiva patologizadora da conduta criminosa que visa justificar a ação violenta como despropositada e irracional -, e desvia a compreensão da relação entre as violações à garantia do direito à saúde e a cultura do estupro. Como já apontado aqui no Esquerda Online, no texto “Cultura do estupro, direito à saúde e a cruzada contra a vida das mulheres”, a formação profissional, fadada a um modelo tecnicista e mercantilista, suprime o “debate social que deve atribuir à construção de profissionais preparados para lidar com a vida a crítica e a prática transformadora atravessada pelo combate a todo tipo de opressão e violência”. Ademais, “a nova Lei de Improbidade Administrativa exclui dos processos na esfera cível casos de estupro e assédio sexual no serviço público, sob a justificativa de maior clareza e segurança jurídica para o assunto”.
Portanto, não será o exame psicológico prévio à concessão do direito ao exercício profissional que livrará as usuárias da saúde das violências praticadas pelos profissionais, sobretudo pelo crime definitivamente não se tratar de um desvio de caráter – que nenhuma avaliação de saúde mental tem a prerrogativa de identificar- , mas do resultado da formação sociocultural de uma sociedade que pune, violenta e mata mulheres pela condição de gênero.
Por fim, a garantia de que as universidades entreguem ao mercado de trabalho profissionais da medicina, da enfermagem e da psicologia em hígidas condições de saúde mental não passa pela realização de uma avaliação pontual, mas pela reformulação dos parâmetros de formação, pela assistência e permanência estudantis, pelo fomento às políticas públicas de educação e saúde – com adequados investimento, infraestrutura e manutenção. No exercício profissional, não são exames de saúde mental periódicos que assegurarão à população o cuidado por profissionais saudáveis, mas sim condições de trabalho adequadas, segurança de vínculo empregatício, implantação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora em todos os estados e municípios com realização das ações e programas pertinentes ao cuidado aos trabalhadores da saúde, valorização profissional – medidas, enfim, que fortaleçam o SUS e garantam o direito à saúde não apenas aos usuários, mas também aos servidores e funcionários.
Assim como os exames de proficiência, a avaliação psicológica e qualquer falácia semelhante não visam ao cuidado dos profissionais, tampouco à segurança da população, mas sim à reserva de mercado, ao desemprego, à precarização do trabalho, à desvalorização profissional, à expansão de empresas que podem lucrar vendendo o que chamam de “preparação” para esses tipos de avaliação. Trata-se, assim, não só de uma cortina de fumaça para que não se discuta a raiz do adoecimento mental de estudantes e profissionais de saúde, mas também da desvirtuação do debate acerca das violências estruturais, institucionais e sociais que perpassam a formação e o exercício profissional no âmbito da saúde no Brasil.
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