Seria impossível explicar a ascensão de Bolsonaro e seu governo apenas pelo fator militar. A crise de hegemonia aberta a partir das manifestações de junho de 2013 e aprofundada com a ampliação dos impactos da crise capitalista, a partir de 2014, serviu de pano de fundo para a opção da classe dominante e da maioria de suas representações políticas pelo golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016. Golpe que seria complementado pela prisão de Lula em 2018 (retirando-o da corrida presidencial, na qual era favorito). Naquele contexto, a combinação de ingredientes ideológicos reacionários que alimentou mobilizações sociais de cariz neofascista acabou por encontrar em Bolsonaro seu “mito”, um guia à altura da tarefa de “negar tudo isso que está aí”, reproduzindo justamente tudo de pior que sempre esteve por aqui. Não cabe aqui retomar todos os elementos para a análise desse processo. Tentei fazê-lo em outro momento. Este artigo se concentra em apenas um elemento: o papel dos militares.
Porque também seria impossível explicar a ascensão de Bolsonaro e seu governo sem dar a devida relevância ao fator militar. Além disso, como o 08 de janeiro deixou evidente, continuará a ser impossível entender a dinâmica política nacional, neste início de governo Lula, sem ter em conta o peso político decisivo dos comandos militares.
Ao longo da história republicana do Brasil, a intervenção militar na vida política nacional foi uma sombra permanente, muitas vezes efetivada em golpes que trocaram governos, ou mesmo alteraram o regime político. Se a intervenção militar foi um elemento de continuidade, suas formas variaram muito ao longo do tempo. Com Deodoro e Floriano (1889-1894), a proposta positivista da “ditadura republicana” foi interpretada como sinônimo de uma ditadura militar, para a qual não encontraram suficiente respaldo oligárquico. Já com Hermes da Fonseca (1910-1914), brechas no jogo político viciado das oligarquias foram aproveitadas para a volta de um Marechal à presidência, pela via eleitoral. Apostando no voto, militares voltaram a disputar as eleições (e eventualmente governar), entre 1945 e 1964, com Dutra, Eduardo Gomes e Lott, entre outros. Protagonizando golpes, conduziram, sustentaram e depois derrubaram (duas vezes), Vargas da presidência apoiando um regime ditatorial com um presidente civil (em 1930 e de novo em 1937) e ameaçando implantar uma ditadura quando ele cumpria um mandato democrático (em 1954). Em 1964, outro golpe instalou uma ditadura, agora de face realmente militar, que durou 21 anos, com generais se revezando à frente do Executivo. As formas do golpe também variaram, daqueles baseados nas tropas e tanques nas ruas aos que se efetivaram apenas com reuniões e cartas ameaçadoras.
No golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, parlamento, judiciário e mídia tiveram protagonismo, mas o respaldo do alto-comando das forças armadas ao processo que levou Temer à presidência ficaria aos poucos mais evidente, pelo avanço da militarização do Estado que se efetivou ao longo de seus mais de dois anos de mandato. Foi farta a distribuição de cargos nos primeiros escalões do governo a oficiais militares e foi aberta a porteira para pronunciamentos públicos sobre a política nacional pelos generais. Um crescente de intervenção militar, que culminou com a famosa tuitada do general Villas Boas, ameaçando o STF, quando da votação do habeas corpus de Lula, em 2018.
A eleição de Bolsonaro foi garantida por aquela intervenção política do comandante do exército, mas o “capitão” devia muito mais ao alto comando, como ele deixou claro em seu discurso de posse. Afinal, o tenente renegado que passou à reserva em 1987, depois de ameaçar jogar bombas em quartéis para pedir aumento nos soldos, foi parlamentar por mais de duas décadas, com a pauta da defesa dos privilégios corporativos das corporações militares, mas nunca fora um “porta-voz” da cúpula armada. Tudo parece ter começado a mudar em 2014, quando Bolsonaro foi convidado a participar da formatura dos cadetes da AMAN e fez o discurso em que se lançou à presidência da República. Desde então, a trajetória do agora ex-presidente está completamente vinculada à participação decisiva dos altos-comandos militares na condução, primeiro da campanha, com um general na vice-presidência da chapa vitoriosa em 2018, e depois de um governo recordista em cargos ocupados por oficiais militares, incluindo generais da ativa em ministérios para os quais não apresentavam qualquer qualificação anterior. O caso do general Pazuello, no Ministério da Saúde, em meio a uma pandemia, “credenciado” por uma experiência para lá de controversa em Roraima, conforme fartas denúncias jornalísticas de Lúcio de Castro, é o exemplo mais extremo.
O governo Bolsonaro é, portanto, mais um episódio da intervenção militar na condução do Estado brasileiro. Mas, esse elemento de continuidade é marcado também por especificidades. A ditadura militar, referência de intervenção anterior – especialmente para a geração de generais formada nos anos 1970 e 1980, que ocupou a direção do Estado com Bolsonaro – caracterizou-se pelo esforço constante de desmobilização social e popular. Após as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que convocaram e festejaram o golpe de 1964, a ditadura fez muitos esforços para buscar apoio e legitimidade de setores médios e mesmo fatias da classe trabalhadora, mas não convocava e organizava mobilizações de massa para isso, preferindo formas mais “passivas” de busca de consentimento. Embora a adesão de figuras da alta oficialidade ao ideário nazifascista dos anos 1930 tenha sido registrada e aspectos da ideologia fascista tenham sido incorporados em outros momentos, a utilização de métodos (neo)fascistas de mobilização de massas para pressionar o regime político-democrático ao limite foi uma novidade destes últimos anos.
Os atos bolsonaristas com agitação golpista de sete de setembro 2021 e 2022 já davam a senha do que estaria por vir. O ensaio de levante dos “patriotas” em 12 de dezembro, a tentativa de atentado a bomba no aeroporto de Brasília no Natal e, finalmente, o 08 de janeiro foram todos eventos preparados nos acampamentos das portas dos quartéis, especialmente em Brasília, com evidente clamor golpista (em nome da pátria, da família, de Deus, da liberdade…). Esses acampamentos foram alimentados pela cúpula militar, desde o fim do pleito presidencial, através de notas do alto-comando e discursos dos comandantes, garantindo proteção e estrutura, o que mostra até onde essa adesão militar aos métodos da mobilização fascistizante pode levar.
Assim, coloca-se não apenas a tarefa de “desbolsonarizar” as forças armadas (o que seria mirar mais numa consequência do que na causa), mas principalmente a de desmilitarizar o Estado brasileiro e por fim à politização “intervencionista” das cúpulas militares. Para o governo Lula, esta é uma questão de sobrevivência. Alguns possíveis passos nessa direção já estão incorporados ao debate político, seja pela experiência de outras nações que passaram por ditaduras militares – ou sustentadas por militares – e percorreram um processo de transição democrática diferente do brasileiro, seja pelas evidências que a realidade novamente impõe no Brasil de hoje. Cabe sistematizá-los, para fomentar o debate sobre o lugar dos militares no Estado brasileiro.
Rever as atribuições constitucionais das Forças Armadas
Embora o artigo 142 da Constituição Federal não autorize as Forças Armadas a intervirem em qualquer dos poderes da república, como interpretam os bolsonaristas, sua redação, negociada sob forte pressão durante o processo constituinte, é de fato um obstáculo para a definitiva “volta aos quartéis”. No texto constitucional, lê-se que:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Notícias recentes dão conta de está em discussão (com polêmicas internas ao partido) uma iniciativa de parlamentares do PT para apresentar um projeto de emenda à Constituição alterando esse artigo para que as atribuições se limitem à defesa da soberania e/ou independência nacional.
Embora por si só não baste, a medida é condição necessária para uma alteração qualitativa do papel das corporações militares na política brasileira, afirmando desde o texto constitucional a limitação das atribuições militares ao que concerne efetivamente à defesa do território frente a possíveis ameaças externas. Com uma emenda desse tipo, cairiam as famigeradas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que serviram na prática para avalizar e ampliar o papel repressivo das forças militares sobre parcelas – exploradas e oprimidas – da sociedade brasileira, legitimando um papel de guardiões da ordem.
A mudança do artigo 142 tem que atingir também as regras para exercício de cargos do governo por militares, da ativa e da reserva, restringindo tal possibilidade aos estreitos limites das competências e atribuições do pessoal fardado e vedando as múltiplas remunerações daí recorrentes, parte dos privilégios que alimentaram a voracidade da ocupação do Estado pelos militares nos últimos anos. Suprimir as possibilidades de compartilhamento de salários no governo com soldos, que vêm gerando remunerações sem qualquer teto, assim como igualar as regras de aposentadoria e pensão entre servidores civis e militares, são medidas essenciais para superar o espírito de casta que alimenta a ocupação de espaços no Estado pelos oficiais.
Uma revisão constitucional do artigo 142, com o consequente redimensionamento das atribuições das forças militares, abriria espaço também para a rediscussão dos artigos seguintes (143 e 144), colocando em questão o serviço militar obrigatório e a existência dos corpos de segurança pública militarizados nos estados (as polícias militares).
Afastar os defensores da ditadura e instituir uma cultura de respeito à democracia
Em 21 de janeiro, Lula substituiu o comandante do exército. Saiu o general Júlio Arruda, que havia barrado as tentativas de desmontagem do acampamento golpista em frente ao comando do exército, em Brasília, inclusive enfrentando-se com o Ministro da Justiça na noite de 08 de janeiro, após os ataques à Praça dos Três Poderes. Entrou o general Tomás Paiva, que na semana anterior à nomeação fez e divulgou um discurso em que defendeu um posicionamento de submissão militar ao poder civil democraticamente eleito. A troca do comandante do exército, com 20 dias de governo, foi um acerto de Lula. Simbolicamente, impõe sua autoridade civil ao comando militar.
Acreditar, porém, que essa substituição mude substancialmente o posicionamento das cúpulas militares seria um engano. Como ressaltou José Roberto Martins Filho, Paiva era o comandante da AMAN em 2014, quando autorizou e estimulou o discurso de Bolsonaro aos cadetes lançando-se candidato à presidência como representante do projeto militar. Em 2018, o atual comandante era chefe de gabinete do general Villas Boas, participando de todo o processo de pressão sobre o STF e do apoio mais ou menos declarado, conforme a situação, à eleição de Bolsonaro, que seria comemorada por Villas Boas concedendo a Bolsonaro o diploma de capitão que lhe havia sido negado em 1987, depois de sua ameaça bombista.
Os generais que ocuparam os postos-chave do governo Bolsonaro e o atual alto-comando das forças armadas foram todos formados durante os anos 1970 e 1980, em plena ditadura militar, e compartilham dos mesmos valores e projetos. Como chama a atenção Marcelo Pimentel, coronel da reserva do exército, não há diferentes “alas” – supostamente polarizadas entre “legalistas” e “golpistas” – entre os membros desse alto-comando, que compartilham os mesmos valores e atuaram conjuntamente nos últimos anos.
A ditadura militar tratou de, já na sua largada, afastar das Forças Armadas todos aqueles que pudessem compartilhar valores políticos não apenas de esquerda, mas também os tidos à época como “legalistas” e “nacionalistas”, uniformizando ideologicamente a formação de novos quadros. As aparentes dissonâncias de pronunciamentos públicos e matérias plantadas por depoimentos “em off” para a mídia corporativa nos últimos anos fazem, inclusive, parte do arsenal aprendido por esses oficiais em seus manuais de “operações de informação”.
Casos como o do general Mourão, eleito vice-presidente em 2018 e atual senador, que durante o governo Temer foi verborrágico na manifestação das maiores atrocidades reacionárias e golpistas, no governo Bolsonaro vendeu a imagem de “contraponto” mais moderado ao presidente destemperado e agora se candidata à liderança direta da extrema-direita, explicitam essa dança em que “todos atuam na mesma direção e os mais falantes permitem aos que atuam nos bastidores aparecerem bem na fita, como numa peça bem ensaiada”, conforme nos lembra Martins Filho.
Sendo a simples troca de comando entre pares de mesma geração medida insuficiente para afastar a sombra da intervenção militar no Estado brasileiro, talvez seja a hora de o governo Lula procurar renovar de fato a cúpula dirigente, afastando toda a geração formada na ditadura e nomeando oficiais mais jovens para os postos mais elevados. No ano passado, ao assumir a presidência da Colômbia, Petro afastou 22 generais da Polícia Nacional, 16 do Exército, sete da marinha e três da Aeronáutica, promovendo oficiais mais jovens para os comandos (o que resultou em passagem à reserva dos mais velhos). Não é uma medida original. Como lembrou Rosa Freire D’Aguiar, Felipe González fez algo semelhante, porém em maior escala, na Espanha dos anos 1980, reformando dezenas de generais franquistas e promovendo oficiais mais jovens, ao mesmo tempo em que reduzia as tropas regulares e alterava o ensino militar, fazendo os oficiais em formação e seus professores realizarem intercâmbios com as universidades públicas e tirando da órbita exclusiva dos quartéis a definição de currículos e conteúdos das escolas de formação das armas.
Com o debate aberto após o 08 de janeiro, é o momento de o governo Lula pautar a reforma do ensino militar, submetendo o conteúdo ensinado nas escolas militares aos ministérios civis, da Defesa e Educação. Só assim será possível formar novas gerações de oficiais militares que abandonem o negacionismo histórico sobre os crimes da ditadura e compartilhem de valores democráticos.
Sem anistia
O saneamento democratizante das Forças Armadas depende também da quebra da tradição de “anistiar” os militares golpistas, que atravessou o regime republicano. Anistias são definidas como instrumento de justiça de transição, para reconduzir à vida pública e restituir direitos aos perseguidos políticos de regimes de exceção, reconhecendo as responsabilidades do Estado em relação à violência política. No Brasil, foram muitas vezes empregadas para isentar do devido processo legal militares que atentaram contra o Estado de direito.
Está correto o ministro Silvio Almeida ao defender que os torturadores da ditadura, que ainda estiverem vivos, devem sofrer as penas da lei. A fragilidade do direito à memória, verdade e justiça no Brasil pós-ditadura é uma parte central da explicação para a situação que leva ao governo Bolsonaro e, agora, ao 08 de janeiro.
Por isso mesmo, a apuração dos crimes cometidos naquela data tem que ir além dos “patriotas” que serviram de bucha de canhão do levante bolsonarista – o que não os isenta do rigor da lei – para atingir não apenas os financiadores diretos, mas também seus mentores políticos, o que inclui o ex-presidente e também os militares do escalão superior que governaram com ele e depois fomentaram e sustentaram toda a mobilização antidemocrática que se seguiu à eleição de Lula. Para processá-los não bastam os tribunais militares, viciados pela mesma lógica de casta. É preciso julgar a todos pelos mesmos tribunais civis, pois seus crimes são de natureza política e não estritamente militar.
Desarmar imediatamente a armadilha da intervenção militar será essencial para o sucesso do governo Lula. Porém, se avançar em submeter de vez os militares aos poderes civis legitimados pelas regras do jogo democrático, esse governo pode gerar um legado de dimensões históricas muito mais amplas, justamente porque alargaria um pouco os muito estreitos limites de tal jogo entre nós.
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