O debate sobre legalização das drogas no Brasil é uma questão polêmica. Longe de ser apartado da sociedade, nos últimos anos temos visto como a direita em todos os seus espectros, aproveitando-se do medo e da violência nas periferias decorrente da guerra às drogas, tem capitalizado o assunto via moralismo cristão. Ao mesmo tempo, especialmente na juventude, o debate antiproibicionista feito pelo lado esquerdo da história ainda tem espaço, se lembrarmos das mobilizações da marcha da maconha (que segue viva em algumas capitais do país) e das campanhas eleitorais de 2018, 2020 e 2022, em que o PSOL foi um dos poucos partidos de esquerda que colocou abertamente o debate sobre drogas em seu programa. Um fato curioso: nas campanhas encampadas pelo Afronte!, como a eleição da Bancada Feminista (SP), Guilherme Cortês (SP), Iza Lourença (MG) e Matheus Gomes (RS), os materiais antiproibicionistas acabavam rapidamente, o que demonstra que há um espaço ainda pouco explorado para essa disputa ideológica que atinge milhares nas periferias do país.
No entanto, até na esquerda temos divergências profundas. De um lado, há aqueles que preferem “não provocar”, deixar essa disputa para um depois abstrato por não quererem um enfrentamento direto com o núcleo moralista conservador – especialmente o neopentecostalismo – que tem ganhado espaço nos últimos anos no seio da classe trabalhadora. Do lado de cá, há aqueles que defendem abertamente um programa antiproibicionista e anticapitalista, entendendo que a guerra às drogas é uma guerra à população preta e pobre no Brasil e que precisamos avançar em uma política de legalização do uso (medicinal e recreativo) atrelado à redução de danos.
No entanto, em nenhum desses dois campos encontramos os companheiros da Unidade Popular. Apesar de se localizarem no campo da esquerda revolucionária conosco, os companheiros não encampam a bandeira da legalização das drogas. Podemos ver essa posição nos textos “A quem serve as drogas?” (2020) [1], “Lutar para ser realmente livre” (2021) [2], na nota que demonstra a posição da organização na formação de seus militantes “UJR realiza plenária para debater o uso de drogas na juventude” (2021) [3] e, ainda que o texto “O álcool como mal necessário para a manutenção do capitalismo” (2020) [4] não fale explicitamente de drogas ilícitas, também possui a mesma concepção que buscamos debater no decorrer deste texto. Buscamos um diálogo fraterno com esses companheiros, com o objetivo de contribuir para um entendimento mais profundo sobre o combate ao genocídio da negritude decorrente da política de guerra às drogas no país.
Na primeira parte deste texto, situamos o debate histórico, para compreendermos os significados do uso para além do debate superficial sobre alienação. Já na segunda, apontamos as convergências que temos com os companheiros, no que diz respeito à indústria da guerra às drogas. No terceiro, apresentamos nossas divergências e uma questão de fundo: a ideia de moral na esquerda revolucionária. Por fim, na quarta e última parte, concluímos afirmando nosso programa de como dar fim ao genocídio do nosso povo sem cair nas armadilhas do moralismo. Esperamos que este debate seja só o começo para avançarmos em uma compreensão mais apurada sobre as saídas à esquerda para a descriminalização e legalização das drogas no Brasil.
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Breves considerações históricas
Iniciamos esse debate com as contribuições de Henrique Carneiro (1994; 2004), historiador e ativista antiproibicionista. Ele afirma que antes de se estabelecer o comércio, o conceito de droga era relacionado a elementos mágicos e místicos, apontando que parte dos povos indígenas, por exemplo, utilizavam plantas terapêuticas, afrodisíacas e alucinógenas em seus rituais. Em alguns países do continente africano, segundo o autor, o consumo de algumas bebidas como o vinho estava associada não só ao apaziguamento da dor, mas também para auxiliar a digestão, demonstrar hospitalidade, em casamentos, festas, rituais fúnebres e no contato com os mortos e divindades.
Segundo Henrique Carneiro, é com as grandes navegações que se estabelece o que seria o início do tráfico de drogas, que ocorre em três grandes ciclos. O primeiro se deu com o comércio de especiarias no século XVI com a rota marítima entre Índia e países europeus, e posteriormente com a invasão da América. O segundo, já no período colonial, foi baseado no comércio do açúcar, aguardente e tabaco, em que diversos povos africanos foram arrancados de suas terras e utilizados como moeda de troca. O terceiro, no período de transição entre trabalho escravo para trabalho “livre”, foi marcado pelo comércio de bebidas quentes como o chá e o café.
No período colonial, o álcool passa a ser incorporado na dieta dos povos africanos, americanos e orientais. Ao mesmo tempo, é difundido na Europa enquanto mercadoria, trazendo elementos de troca, lucro e fetiche de consumo. Assim, o álcool é correlacionado como moeda de troca, no tráfico de escravos, e no próprio consumo interno a partir do plantio da matéria prima – o açúcar – que era destilada nos alambiques dos engenhos. Um fato curioso é que, no processo de colonização, o álcool também foi uma dor de cabeça para os jesuítas, que diziam que a bebida era um problema para catequizar os povos indígenas, pois o consumo de cachaça agia como uma “degradação do corpo e da alma”.
No Brasil Império vemos a primeira proibição da produção e comércio de algum tipo de droga através do dispositivo legal. Em 1830 é a primeira vez que o “pito do pango”, nome popular da maconha na época, é criminalizado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Mas é no pós-abolição que as drogas são de fato proibidas, em uma relação direta com o racismo. Nesse momento, o monopólio da medicina sobre determinadas substâncias passou a criminalizar práticas não oficiais que as utilizassem. A partir de uma visão eugenista, esses estudos médicos passam a associar o uso de maconha, por exemplo, com a violência e criminalidade. Isso porque, de acordo com eles, esse “mau hábito” foi trazido pelos povos africanos, e seu consumo no pós-abolição no Brasil seria uma “vingança” pelo roubo de sua liberdade.
É importante lembrar que, mesmo nesse contexto de proibição, as drogas continuavam a ser utilizadas em rituais e festividades, tanto dos povos indígenas quanto dos negros recém-libertos. Assim, em uma relação direta com o racismo, a criminalização da maconha reforçava a perseguição às formas culturais e espirituais de resistência negra, como a capoeira, o samba e o candomblé, por exemplo. Em 1937, durante a ditadura varguista, o setor estatal que criminalizava entorpecentes e prendia seus usuários era o mesmo setor responsável por perseguir religiões afro-brasileiras: era a chamada “Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações”.
Assim, quando discutimos a questão das drogas no Brasil, estamos discutindo uma história de séculos. Ela perpassa desde a invasão da América e o período escravocrata até, na contemporaneidade, pelo assassinato e encarceramento em massa de milhares de jovens negros. A política de guerra às drogas é parte de um controle político de uma população. Esse controle é necessário à acumulação capitalista no Brasil, que utiliza fundamentalmente o instrumento da racialização. Para além da ideia de alienação – que nesse caso significa a fuga da realidade para o apaziguamento da dor – o uso de drogas tem a dimensão da liberdade individual, ou seja, do direito de cada um de decidir sobre si mesmo, e também tem a sua dimensão simbólica que, ao ignorá-la, corremos o perigo de reproduzir o mesmo apagamento cultural que a elite branca tentou e tenta até hoje impor à maioria dos explorados e oprimidos. E, sem essa maioria, não há revolução possível no Brasil.
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Limpando o terreno: o papel da indústria
A indústria da guerra às drogas é um negócio bilionário. Pela sua ilegalidade, o mercado de drogas tem altas oscilações de oferta e procura, e torna-se um negócio rentável com altas taxas de lucro, cujas “empresas” estão em disputa de mercado, território e mão-de-obra constantemente. O Brasil é um dos maiores consumidores do mundo e também um dos grandes exportadores. O mercado de drogas tem um sistema interligado que perpassa desde o controle das rotas, dos centros de distribuição e comércio, até o sistema prisional.
O tráfico é uma consequência da proibição das drogas, mas ele não sobreviveria sem seu braço direito: a indústria do armamento. Na crise econômica de 2008, por exemplo, enquanto várias economias entraram em colapso no mundo, o setor armamentista continuou se expandindo. A existência da guerra às drogas abre uma demanda valiosa para a venda e compra de armas: de um lado, para os grupos ligados ao tráfico que disputam o controle do mercado e, de outro, para o Estado, que investe na repressão e na política do terror contra o “inimigo interno” – que sabemos muito bem qual é sua cor, classe e endereço. Os pequenos traficantes são os alvos da política estatal, permanecendo intacto todo o sistema global do tráfico de drogas, cujos empresários encontram-se muito longe das favelas.
Como o historiador Henrique Oliveira na “Carta aberta ao ministro Luís Barroso: A guerra às drogas não fracassou para os ricos” (2018) aponta,
“O tráfico de drogas também tem seu braço nas instituições políticas do Brasil, como no caso do helicóptero de propriedade do senador Zezé Perrella (PMDB) apreendido em 2013 com nada menos do que 455 kg de Cocaína pasta base, que sequer foi investigado pela Polícia Federal. As eleições são momentos importantes para a lavagem de dinheiro do tráfico de drogas e para a eleição de políticos vinculados ao mesmo, em recente entrevista o traficante Marcinho VP afirmou que o tráfico de drogas financia campanhas políticas, por isso a legalização das drogas não seria interessante para os membros dos poderes Legislativo e Executivo. […] Os ricos ganham muito dinheiro produzindo, vendendo armas e drogas, enquanto só morrem os pobres, sejam policiais, traficantes ou moradores de favela. O Estado criminalizou uma relação comercial e tenta acabar com esse mercado que ele criou” (OLIVEIRA, H. 2018).
Para quem se lembra do avião da comitiva de Bolsonaro com 37 pacotes de cocaína, não é nenhuma novidade a ligação entre poder público e o negócio bilionário da guerra às drogas. Talvez, a maior novidade seja a preferência pelo transporte aéreo, que inclusive milhares dos nossos não tiveram tempo de vida o suficiente para poder pisar em um.
Quem realmente ganha com o proibicionismo são os grandes traficantes de drogas (que, como já vimos, não estão nas favelas e às vezes sequer no Brasil), os grandes empresários armamentistas, além dos setores milicianos do poder estatal que lucram não só com o tráfico em si mas também com a construção de presídios superlotados com uma grande parte da população sem direitos e sem julgamento. Por que a esquerda revolucionária ganharia com o proibicionismo?
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Três argumentos da UP contra legalização das drogas
Ser radical é ir na raiz dos problemas. Quando falamos do complexo sistema capitalista, todos nós, na esquerda revolucionária, partimos do acordo que é necessário o desmantelamento completo desse sistema que tanto nos oprime e explora. Queremos o povo no poder para que ele possa com as suas próprias mãos, a partir da construção da consciência de classe, decidir seu destino. Partindo da ideia que estamos em um debate entre anticapitalistas, queremos apresentar os pontos que nos diferenciam da análise dos companheiros.
As três citações a seguir evidenciam a posição dos companheiros da Unidade Popular em relação ao debate de drogas:
“Descriminalizar ou mesmo legalizar o uso e comércio das drogas não diminuirá a violência, nem os danos causados pelo seu uso. […] Portanto, se queremos ser consequentes na nossa luta contra o capitalismo devemos combater o uso das drogas e de seu comércio porque estas estão a serviço dos capitalistas e não dos trabalhadores e da juventude” (FEITOSA, 2020).
“Quando dizemos que o álcool é ruim e as drogas também não nos fazem bem, não é por considerarmos que simplesmente beber é “errado” ou então é “vulgar”. Quando os revolucionários afirmam isso, é porque sabem que é algo que atrapalha a luta e ajuda na manutenção do sistema de exploração” (LOUISE, 2020).
“E em todas essas discussões, devemos reafirmar nossa linha sobre a questão: droga é alienação!
Precisamos demonstrar aos companheiros que a fuga da realidade é o principal objetivo do uso dessas substâncias e que essa fuga é muito prejudicial a um comunista.” (DAMASCENO, 2021).
“Com a leitura ficou clara a forma como as drogas são uma ferramenta de alienação para a juventude: drogas lícitas ou ilícitas afetam não só a vida da pessoa, mas também seu desempenho dentro da organização e as pessoas à sua volta. As drogas são muito prejudiciais à saúde mental e física, levando muitas vezes consequências para o ambiente familiar, escolar, profissional e dentro da própria militância” (NASCIMENTO; DIAS, 2021).
Nos textos dos companheiros podemos identificar três argumentos principais que utilizam para justificar sua posição contra a legalização das drogas. O primeiro, remete à ideia de alienação, que seria a “raiz do problema”: o uso de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, amortece a consciência de classe e seria um impeditivo para a luta contra o sistema. O segundo argumento diz respeito à ideia de moral, em que o uso de drogas dentro das fileiras da esquerda implicaria em uma consequência negativa na devoção dos militantes ao partido e à causa revolucionária. O terceiro, por fim, é como enfrentar a questão das drogas, apontando, a partir da saúde pública, uma perspectiva de individualização dos sujeitos que as utilizam.
Começamos o debate pelo conceito marxista de alienação. Quando escreveu os “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (2004), Marx define alienação, em termos gerais, como o processo de dissociação entre o trabalho realizado pelos seres humanos e o seu produto, que no capitalismo se dá pela forma de mercadoria. Ao invés de se identificar com o produto que ele próprio produziu, com a divisão do trabalho e a produção cada vez mais especializada, o/a trabalhador/a torna-se estranho, alheio ao que produz.
Essa alienação transborda o local de trabalho: separa os seres humanos da natureza, atingindo também a sua relação com outras pessoas, que passam a medir suas relações sociais a partir do “quanto valemos”, em um processo de coisificação. Esta divisão do trabalho tira o seu caráter humano, transforma o trabalho em animalização: os/as trabalhadores/as não se vêem mais no seu produto e na sua produção, o trabalho se converte apenas numa forma de suprir as suas carências mais animais, perdendo a aparência de atividade criadora. Dessa forma, o ser humano, no capitalismo, não se vê mais enquanto ser genérico, enquanto humano, e passa também a não reconhecer mais a humanidade das outras pessoas em sua produção.
Deste modo, o processo de “tomada de consciência” significa, para Marx, sair do lugar de alienação, reconhecendo a humanidade dos seres humanos que, no capitalismo, são resumidos à mercadoria. Assim, tomar consciência implica compreender que a desalienação só é possível através do conjunto da humanidade e, por isso, aposta na organização coletiva para a transformação radical desse sistema, indo na contracorrente do que prega o individualismo burguês. Esse processo é o que toda organização revolucionária é obstinada em conseguir: construir as condições necessárias para que as massas tomem consciência do poder que possuem e marchar rumo à revolução socialista.
Em partes é verdade que o uso de drogas pode ser utilizado pelos capitalistas como forma de amortecer o processo de tomada de consciência, através da fuga de uma realidade difícil. Os companheiros ainda afirmam que existe, por parte da burguesia, uma tentativa de
“[…] apresentar o uso das drogas como algo romântico, rebelde e libertador. […] Com isso pregam a ideologia burguesa do individualismo, da satisfação do prazer pessoal, do egoísmo como caminho para felicidade enquanto o mundo sucumbe diante da ferocidade do capitalismo imperialista” (FEITOSA, 2020).
No entanto, vários estudiosos, sendo ou não marxistas, já comprovaram cientificamente que a disciplina e o combate ao tempo “ocioso” (lembrando que esse termo vem da palavra ócio, desocupação, muitas vezes relacionado à ideia de “vadiagem”, da qual muitos dos usuários de drogas também são associados) é muito mais eficiente na tarefa de alienar os/as trabalhadores/as do produto de seu próprio trabalho. O clássico de Max Weber, em “A ética protestante e o espírito do capitalismo” afirma que o desenvolvimento do capitalismo foi atrelado à difusão de uma ética centrada na disciplina, na ideia de trabalho enquanto dignificante e uma moral apoiada em um tipo cristianismo que, se você trabalhar duro e seguir as regras morais da família cristã burguesa, a mudança de classe social é possível – naquela visão já conhecida por muitos de nós daqueles “vieram debaixo e ascenderam pelo seu próprio mérito”.
Uma questão para reflexão: se o uso de drogas amortece tanto a necessidade da luta por uma outra sociedade, qual a explicação então para a existência dos movimentos antiproibicionistas que possuem perspectivas anticapitalistas? Ademais, a caracterização que os companheiros fazem é que a legalização seria benéfica única e exclusivamente para o monopólio da burguesia, ignorando que há uma disputa nos movimentos antiproibicionistas sobre os projetos de legalização. No Uruguai, por exemplo, a legalização da maconha não beneficiou a grande indústria, mas é controlada pelo Estado através (1) do cultivo individual, quando o usuário planta o seu próprio pé de maconha; (2) do cultivo coletivo, onde associam-se em cooperativas de cultivo canábico; e (3) da compra de pequenas porções em farmácias, em que a distribuição é estatal.
Partindo para a segunda argumentação: a questão da moral. Os companheiros afirmam que
“A moral dos revolucionários condiz com a abnegação do indivíduo, com a entrega consciente de todas as suas energias à causa coletiva.
A moralidade revolucionária exige sacrifícios conscientes. Exige também uma entrega maior à luta. […] Por isso mesmo, precisamos aumentar a vigilância revolucionária em nós mesmos, a fim de influenciar as pessoas para a luta consciente e não propagar uma ideologia que mantém a sociedade e as coisas como estão.
É importante cada revolucionário refletir sobre o seu papel e seu compromisso com os trabalhadores. Refletir com consciência sobre o seu próprio consumo e se a decisão for de abandonar completamente o uso do álcool, que seja movido pelo espírito de sacrifício consciente e de abnegação.” (LOUISE, 2020).
“Necessitamos também estabelecer critérios mínimos para que esses camaradas [que usam drogas] possam se manter atuantes em nossos coletivos enquanto realizamos essa discussão. Um exemplo de critério que podemos estabelecer, primeiramente, é reconhecer essas limitações individuais, essa dependência, concordar com nossa linha sobre o assunto e querer parar de fazer uso, não militando em nenhuma circunstância a favor do uso, mesmo que recreativo, de drogas ilícitas. […] São muitas tarefas, lutas, reuniões, brigadas, panfletagens, campanhas, eventos, e de fato, é necessário disciplina. […] [os que seguem usando drogas] Também desconsideram o grande risco de criminalização imposto pelo hipócrita estado burguês, que lota os presídios de pobres pegos com pequenas quantidades de drogas e deixam livres os traficantes ricos que são pegos com helicópteros cheios de cocaína” (DAMASCENO, 2021).
Como marxistas, fazemos política a partir do materialismo histórico-dialético. Isso significa que, à luz da experiência histórica da classe trabalhadora, fazemos a análise e intervenção na realidade partindo das condições materiais e produtivas, que estão imbricadas com o desenvolvimento histórico da luta de classes. Pautas que seriam tangentes nos tempos de revolução russa, hoje, com o avanço das lutas e dos movimentos de massa (sindicalistas, feministas, negros, indígenas, LGBTIA+, etc), possuem outra centralidade reivindicatória, o que implica a necessidade de reelaboração e autocrítica do próprio marxismo. Uma delas é a ideia de vigilância. O grande capital é vigilante e tenta de todas as formas moldar, disciplinar e controlar os corpos dos/as trabalhadores/as para seguir com seu projeto de dominação. Podemos ver sua expressão máxima na necropolítica, como coloca Achille Mbembe, que é o controle de quem pode viver e quem pode morrer, ou seja, a distribuição desigual de quem, a depender da cor da pele ou classe social, tem a oportunidade ou não de seguir vivo.
Quando estabelecem o critério mínimo de que os militantes precisam parar de usar drogas para que sigam desenvolvendo-se na organização, os companheiros demonstram uma necessidade de controle, disciplina e autovigilância que, para nós, é perigoso ser reivindicado nas fileiras da esquerda revolucionária. A necessidade de controle dos nossos camaradas de partido – veja bem, não estou falando de orientação, que é comum em organizações centralizadas –, do que fazem ou deixam de fazer com os próprios corpos, não pode se assemelhar ao tipo de controle que o capital tenta nos impor. Nosso projeto de desmantelamento do sistema não pode seguir a mesma linha da burguesia. Ademais, os companheiros colocam a responsabilização nos próprios militantes no que diz respeito ao risco de criminalização – que, como vimos anteriormente, é um problema estrutural, e não individual. Em um nível de abstração: na sociedade comunista que almejamos tanto, as pessoas não serão livres o suficiente para fazerem o que quiserem com o próprio corpo, inclusive fazer o uso de drogas?
Se defendemos uma moral revolucionária, que busca o oposto do que propõe a moral burguesa, nossa moral não é um fim em si mesma, mas é subordinada à nossa estratégia de transformação radical da sociedade e, portanto, está conectada à forma como interpretamos e intervimos na realidade – a política. Utilizando a analogia entre meios e fins, enquanto marxistas revolucionários compreendemos que os meios não são tudo. Isso porque correríamos o risco de absolutização de critérios morais, tornando-os um princípio sagrado e irrevogável que, no limite, subordina a política ao terreno da moralidade. Do mesmo modo, não podemos cair no perigo oposto: a posição que os fins justificam os meios, que também esquece que os fins precisam ser justificados. Qual a relação comum entre essas duas visões? Ambas separam a relação entre meios e fins, como se fossem independentes entre si. De um lado, temos o moralismo, de outro, o cinismo. Os companheiros, infelizmente, caem no primeiro erro.
Nossa posição é que os meios e fins possuem uma relação que é indissolúvel, indivisível. A moral que defendemos tem um objetivo: a revolução para uma sociedade em que todes possam ser livres, com oportunidades iguais e respeito às suas diferenças. Assim como só admitimos os meios estejam voltados para os nossos fins, ou seja, a conquista do poder pelos explorados e oprimidos, o fim só será conquistado através de meios que inflamem sua indignação, solidariedade de classe e confiança que suas lutas são justas. Mas esses meios não podem empurrar trabalhadores uns contra os outros, desprezar suas opiniões ou estimular um servilismo/seguidismo cego diante de seus dirigentes. Assim como os meios não podem ser um mandamento inviolável, em um tipo de catecismo jesuíta que dita o que é impensável, condenável e o que é legítimo, aceitável.
Por fim, chegamos ao último ponto: como os companheiros entendem que deve ser solucionada a questão das drogas no seio das próprias fileiras. Em um primeiro momento, afirmam que é uma questão de saúde pública – o que concordamos e na próxima seção apresentaremos o nosso programa com relação à isso –, no entanto, apontam em direção à uma individualização da questão:
“Pois bem, vamos aos fatos: temos evidenciado, em diversos locais, a aproximação e muitas vezes até o ingresso em nossa organização, de companheiros oriundos de diversos meios e camadas sociais, mas que mantém costumes muito parecidos, trazem os mesmos vícios e compartilham de certa rotina. É importante que não tratemos esses camaradas como um grupo. É necessário individualizarmos a discussão com cada um para obtermos resultados significativos […] […] Temos exemplos de camaradas que fumavam maconha há mais de 10 anos sem parar, e pararam literalmente do dia para noite, por compreenderem as necessidades do nosso partido de avançar no sentido de ter milhares e milhares de camaradas que se entreguem sem limites à causa da revolução” (DAMASCENO, 2021).
“Superar os vícios da velha sociedade é uma tarefa revolucionária, sendo necessário travar essa luta política com nós mesmos e com nossos camaradas sempre que possível”(NASCIMENTO; DIAS, 2021).
Concordando com os companheiros, o objeto do trabalho comunista é a realidade, a disputa na luta de classes. Além da resposta simplista de que é tudo culpa do sistema capitalista (o que em partes é verdade, mas no todo é impreciso e não ajuda a resolver a questão), como apontamos nas seções anteriores, quando falamos que a raiz da guerra às drogas é o controle da população periférica e o lucro de uma gama de capitalistas através da proibição do uso, partimos da experiência histórica. A Lei Seca, por exemplo, que vigorou por anos nos Estados Unidos, produziu uma máfia gigante e poderosa que lucrava com a venda ilegal de bebidas com procedência duvidosa, que geraram efeitos colaterais bastante nocivos para o povo trabalhador estadunidense. As pessoas não pararam de beber, só passaram a comprar bebidas ilegalmente. É o mesmo processo com a política de drogas, ainda que em diferentes proporções. Individualizar uma questão que é estrutural não condiz com a análise marxista de compreensão e intervenção na realidade.
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Saídas à esquerda: afrontar o moralismo e defender a legalização
O que fazer então para enfrentar a questão das drogas no Brasil? O Estado brasileiro dá uma resposta que podemos resumir em seis palavras: proibir, executar, encarcerar, violentar, internar compulsoriamente. Para nós, esse não é o caminho. Para garantir direitos básicos, como o direito à vida dos milhares de jovens negros que são o alvo dessa guerra, precisamos da legalização, tributação e regulamentação das drogas. Defendemos isso através do controle estatal da produção, distribuição e comércio dessas substâncias destinadas aos fins de interesse público, com produtos de qualidade e ecológicos. Para o uso recreativo, garantir a intimidade e privacidade. Para o uso terapêutico e medicinal, auxiliando por meio de políticas de saúde pública.
Além disso, nos casos de dependência, seguindo o acúmulo das lutas antimanicomiais, é necessário ter uma política de saúde articulada com a comunidade e territórios, voltada para a redução de danos. Nessa estratégia, não há uma exigência de abstinência automática e imediata, mas um estímulo à participação e engajamento do próprio usuário enquanto sujeito do processo. Sem julgamentos, considerando suas especificidades, ofertando o que é possível e necessário para a manutenção da vida, a redução de danos e riscos aponta para uma rede de atendimento em que os sujeitos envolvidos são protagonistas do processo. Baseada em um debate científico sério, essa política aponta em direção a uma mudança da mentalidade estigmatizada e excludente, focando na saúde pública e na prevenção das consequências negativas do abuso de drogas.
Uma nova política de drogas, que busca desmantelar todo o sistema de guerra, tiraria o lucro da indústria armamentista, da grande rede do tráfico que envolve traficantes, políticos, policiais e militares, e também da indústria de internação (um tema importante para as próximas discussões). Indo na raiz do problema, a pauta da legalização e fim do genocídio da negritude assume um sentido anticapitalista.
* Ingrid Saraiva é militante da juventude Afronte! e da Resistência-PSOL de Campinas, mestranda em Ciência Política e estudante de Licenciatura em Ciências Sociais na Unicamp, faz parte do Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH) e do Diretório Central dos Estudantes (DCE).
Notas
[1] FEITOSA, Alex. A quem serve as drogas? Jornal A Verdade, 2020. Disponível em: https://averdade.org.br/2020/08/a-quem-serve-as-drogas/
[2] DAMASCENO, Queops. Lutar para ser realmente livre. Jornal A Verdade, 2021. Disponível em: https://averdade.org.br/2021/01/lutar-para-ser-realmente-livre/
[3] NASCIMENTO, Gabrielly; DIAS, Giovanna. UJR realiza plenária para debater o uso de drogas na juventude. Jornal A Verdade, 2021. Disponível em: https://averdade.org.br/2021/04/ujr-realiza-plenaria-para-debater-o-uso-de-drogas-na-juventude/
[4] LOUISE, Vitória. O álcool como mal necessário para a manutenção do capitalismo. Jornal A Verdade, 2020. Disponível em: https://averdade.org.br/2020/07/o-alcool-como-mal-necessario-para-a-manutencao-do-capitalismo/
Referências
CARNEIRO, Henrique. As Drogas: Objeto da Nova História. Revista USP- Dossiê da Nova História, n.23, 1994.
_________________. Bebidas alcoólicas e outras drogas da época moderna. Economia e embriaguez do século XVI ao XVIII. Historiador Eletrônico, 2004.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Boitempo Editorial, 2004
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 3. ed., 2018.
TROTSKY, Leon. A moral deles e a nossa. Edições Antídoto, 1979.
OLIVEIRA, Henrique. Dos traficados com drogas, aos traficantes de drogas: racismo e proibicionismo no Brasil. Portal Esquerda Online, 2017. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2017/08/21/dos-traficados-com-drogas-aos-traficantes-de-drogas-racismo-e-proibicionismo-no-brasil/>.
_________________. Carta aberta ao ministro Luís Barroso: A guerra às drogas não fracassou para os ricos. Portal Esquerda Online, 2018. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2018/02/27/carta-aberta-ao-ministro-luis-barroso-a-guerra-as-drogas-nao-fracassou-para-os-ricos/>.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Editora Schwarcz SA, 2004.
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