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Colunas

Cotas abrem portas

Primeira turma de cotistas étnico-raciais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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Primeira turma de cotistas étnico-raciais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Letícia Lé

Letícia Lé é militante do Afronte! e Diretora de Movimentos Sociais da UEE-SP

No início deste ano, se formou a 191ª turma da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da qual faço parte, sendo esta a sua primeira turma de cotistas étnico-raciais. Isso se dá depois de 190 anos de turmas com pouquíssimos estudantes negros, gerando para a sociedade notáveis juristas que são, até hoje, de maneira quase hegemônica, brancos. A Faculdade de Direito do Largo São Francisco foi onde se estabeleceu o primeiro curso de Direito do Brasil, juntamente com a Faculdade de Direito de Olinda e é, portanto, um curso extremamente tradicional, pelo qual passaram figuras emblemáticas e fundamentais para a produção de uma ciência extremamente racista no nosso país. 

Foram estudantes e professores da Sanfran: Monteiro Lobato, um dos membros da Sociedade Eugênica de São Paulo, onde mantinha relações estreitas com vários dos principais nomes das políticas eugenistas brasileiras, Amâncio de Carvalho, que hoje nomeia uma Faculdade e que, além de ter sido sócio e presidente honorário da Sociedade Eugênica de São Paulo, mumifica e expôs o corpo de uma mulher negra em sala de aula por anos (1). Essas são somente algumas das figuras que contribuíram com a disseminação da ideologia do racismo científico. 

Isso leva a alguns questionamentos que tive, assim como muitos outros negros e negras, ao adentrar o espaço das arcadas. Certamente os corpos que levantaram os tijolos e toda a construção daquele espaço físico são corpos como os nossos, que hoje frequentam a São Francisco com o intuito de ali estudar e eventualmente compor o quadro dos melhores juristas deste país. Contudo, apesar de termos conseguido adentrar este espaço enquanto estudantes, isso não muda o fato de que apesar da Universidade ter sido construída por nós, ela certamente não foi feita para nós. 

É importante refletir sobre este tema porque nos faz valorizar a luta de todos que nos antecederam. Penso em Luiz Gama, o primeiro advogado negro do Brasil, filho de Luisa Mahin, mulher negra livre que participou de diversas insurreições de escravos. Luiz Gama foi um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil e, na sua época, tentou frequentar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Por ser negro, enfrentou o racismo de professores e alunos, mas persistiu como ouvinte das aulas. Não concluiu o curso, mas o conhecimento adquirido permitiu que atuasse na defesa jurídica de negros escravos para que obtivessem a sua liberdade. Penso também em Eunice Prudente, primeira – e até hoje a única – mulher negra a lecionar na São Francisco, com quem tive e tenho a oportunidade de aprender tanto sobre o Direito e sobre a vida. Por fim, penso principalmente no Movimento Negro, pois é nele que me referencio e foi nele que obtive alguns dos aprendizados mais valiosos da minha vida.

Letícia Lé. umas das alunas formadas da primeira turma de cotistas étnico-raciais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Letícia Lé, militante do coletivo de juventude Afronte e umas das alunas formadas da primeira turma de cotistas étnico-raciais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Foi o movimento negro que, com seu histórico importante de luta e resistência em nosso país, se tornou-se um dos principais protagonistas no cenário brasileiro a ocupar e a tornar os espaços sociais como locais de disputa política. Uma dessas disputas foi pela implementação da Lei de Cotas, visando obter reparação histórica pelo povo negro. Por este motivo, não podemos esquecer que a conquista das cotas foi o produto de um longo processo de luta travada nas ruas e nos espaços institucionais. Foi através da luta de muitos que vieram antes de nós que estamos hoje aqui.

Apesar da Lei de Cotas ter sido implementada em 2012, foi somente em 2017 que a USP aderiu ao sistema de cotas étnico-raciais, como resultado de muita luta estudantil e disputas nos espaços de deliberação da Faculdade, pois há quem acreditasse que o nível acadêmico da Universidade seria rebaixado com a entrada de estudantes negros e pobres. Contudo, mais uma vez a realidade provou que estes indivíduos estavam errados, pois hoje se forma a turma 191, a primeira turma de cotistas, repleta de indivíduos brilhantes e que tem traçados caminhos muito especiais. 

A defesa das cotas étnico-raciais é fundamental para a construção de uma nova fotografia do poder para o Brasil. Certamente não será unicamente responsável pela construção de um novo mundo, mas é através dela que cada vez mais temos visto uma transformação social feita pelo acesso à educação. Lutemos também pela ampliação dessa política, para que possamos ver, nos próximos anos, a inclusão também de cotas trans, por exemplo. As cotas abrem portas.

NOTAS
1 Como a principal faculdade de direito do país violou o corpo de uma mulher negra por 30 anos – Ponte Jornalismo