Pular para o conteúdo
BRASIL

Os argumentos da Turma do contra: Uma análise da cobertura de O Globo sobre o processo de concessão pública do “ex-Canecão”

Por Pedro Barreto Pereira*

O Rio de Janeiro vai ter o antigo Canecão de volta! Isso não é maravilhoso? Ao pensar sobre esta pergunta, recordo a professora Sylvia Moretzsohn, autora do livro “Pensando contra os fatos”, baseado em sua tese de doutorado, orientada por José Paulo Neto. O argumento central, grosso modo, é o de que a velha e carcomida frase “contra fatos não há argumentos” deve ser questionada: quais são os fatos? Quem os interpreta? Como os relata? A partir de que critérios?

Lendo o texto do jornalista Luiz Ernesto Magalhães, publicado no jornal O Globo de 3 de fevereiro, “Empresa vence leilão de concessão do novo Canecão” (clique aqui para ler a versão online: Novo Canecão deve ser aberto em 2025 com shows, musicais e peças de teatro | Rio | O Globo), me ocorrem essas e outras questões que serão expostas aqui. Inicialmente, advirto que não pretendo me estender sobre minha opinião pessoal, que interessa pouco ou nada aqui. Apenas me posicionar claramente, como penso que deva ser o mais honesto, ao invés de me esconder por trás da fantasia da imparcialidade. 

Antes de apresentar argumentos, é preciso dizer que escrevo como servidor técnico-administrativo dessa universidade há 15 anos, jornalista e pesquisador de Comunicação. Logo, nessa posição, afirmo que sim, fui contrário à forma como a Reitoria – tanto a atual gestão, como a anterior – conduziu o processo de concessão pública do terreno localizado no campus da Praia Vermelha, onde está sediado o outrora conhecido “Canecão”. Devemos lembrar que aquele espaço era alugado a um famoso empresário por um valor irrisório e que a UFRJ obteve a reintegração de posse em 2010, após décadas de batalha judicial – a primeira reivindicação do terreno data de 1971 (clique aqui: G1 – Justiça do Rio obriga Canecão a deixar terreno da UFRJ, diz AGU – notícias em Rio de Janeiro (globo.com)). 

O que ocorreu dali em diante foi um misto de incapacidade da universidade em gerir seu próprio patrimônio e de arcar com as consequências de uma política de desinvestimento da Educação pública desde então. O fato é que, em 2009, o então reitor Aloisio Teixeira iniciou o debate “Plano Diretor UFRJ 2020”, que utilizaria recursos do Reuni para expandir e aprimorar as instalações dos campi da universidade. Para o campus da Praia Vermelha foi designado um comitê técnico para estudar propostas para o local. Entre elas, a reforma do Palácio Universitário e a criação de um grande equipamento no terreno do “ex-Canecão” e adjacências, que incluiria um centro de convenções, espaços culturais, entre outros usos. Um dos integrantes daquele comitê técnico era o professor do Instituto de Economia (IE) Carlos Frederico Leão Rocha, atual reitor em exercício da UFRJ. Portanto, alguém que entende bastante sobre o tema. 

O “Plano Diretor UFRJ 2020” jamais saiu do papel – ao contrário de outras universidades Brasil afora -, à exceção de algumas poucas iniciativas, principalmente aquelas financiadas com recursos privados. O atual projeto de concessão do “ex-Canecão” retornou à baila durante a gestão Roberto Leher, que apresentou a proposta de estudo através do BNDES para posterior licitação. A medida ganhou opositores, mesmo entre aqueles que apoiavam o então reitor. Não apenas por isso, mas o projeto não foi adiante, ficando a cargo da gestão da professora Denise Pires de Carvalho a incumbência de resolver a questão. 

O que ocorreu de 2019 para cá foi uma enorme inabilidade para o diálogo da Reitoria com a comunidade universitária e a população do Rio de Janeiro de modo geral. Desde o início, deu-se assim: a documentação sobre o estudo do BNDES demorou meses até que fosse amplamente publicizada; perguntas não respondidas e palavras cassadas nas sessões de consulta em diferentes unidades e instâncias da universidade; e, por fim, integrantes da comunidade universitária foram impedidos de assistir ao leilão. Chama a atenção, principalmente, a carência de detalhamento em relação às contrapartidas oferecidas pela concessionária à universidade, como salas de aula, auditórios, laboratórios, refeitórios e outras necessidades urgentes de estudantes, professores e técnico-administrativos. 

Outra informação que causa espécie é o valor de apenas R$ 4,35 milhões para a concessão de 30 anos de uma área de 15 mil m2 em plena zona sul do Rio de Janeiro. Por fim, ganha relevo o dado de que um dos sócios da empresa vencedora seja ninguém menos que o senhor Kléber Leite, ex-presidente do Clube de Regatas do Flamengo nos anos 1990, mais conhecido pelas negociações milionárias de jogadores como Romário, entre outros, do que pelo êxito esportivo dentro de campo. Muito famoso, portanto, entre toda a torcida do “Mais querido”, na qual se inclui o magnífico reitor em exercício.

Jornalismo imparcial

Mas como este escriba não é urbanista, administrador e muito menos economista, devemos confiar naqueles que o são. Voltando à primeira frase do texto, evidentemente é muito difícil criticar qualquer iniciativa que pretenda devolver à cidade uma casa de shows como o Canecão, onde se apresentaram, durante décadas, tantos e tão importantes artistas. Apenas isso já seria suficiente para legitimar o processo, o que parece ter sido feito de forma bastante exitosa pelos seus executores. E ainda: aliar a “marca” da UFRJ – universidade respeitável nacional e internacionalmente – a tudo isso apenas garante a chancela de algo ético, eficiente e promissor. 

Porém, como nos alerta Moretzsohn, a mediação – por meio da qual jornalistas selecionam, interpretam e dão o devido tratamento textual aos eventos do cotidiano – é fundamental para a compreensão ou o questionamento dos “fatos” – que jamais existirão sem interpretações. Debrucemo-nos, então, brevemente sobre o texto do senhor Luiz Ernesto Magalhães, de O Globo, que não conhecemos pessoalmente. É possível que seja um jovem e imberbe repórter que, temeroso pelo seu precário e mal remunerado emprego, escreva aquilo que seus patrões esperam ler. Ou, talvez, seja um experiente profissional, que há décadas trabalha para a empresa da Família Marinho, sobreviveu aos frequentes e tão temidos “passaralhos” e sabe muito bem como manter-se ali durante tanto tempo. O que constatamos de fato, ao ler o texto, é o esmero pela técnica da redação, o lead (ou “lide”) – primeiro parágrafo que explica resumidamente para o leitor o que a matéria tem de mais importante – bem construído, sem que deixe perguntas básicas sem respostas, o respeito ao vernáculo, etc.

O senhor Magalhães, entretanto, parece ignorar o que dizem os princípios editoriais da própria empresa (clique aqui: Princípios Editoriais Grupo Globo) que afirma, em sua Sessão 1, item 1, alínea b:

Na apuração, edição e publicação de uma reportagem, seja ela factual ou analítica, os diversos ângulos que cercam os acontecimentos que ela busca retratar ou analisar devem ser abordados. O contraditório deve ser sempre acolhido, o que implica dizer que todos os diretamente envolvidos no assunto têm direito à sua versão sobre os fatos, à expressão de seus pontos de vista ou a dar as explicações que considerar convenientes.

Não só Magalhães não dá vez ao contraditório, apenas conferindo voz ao magnífico reitor que, orgulhoso, afirma: “É um novo passo para a Cultura do Rio”. O texto também desqualifica os opositores do leilão, presentes defronte ao Edifício Ventura, chamando-os de “Turma do contra”, em um dos entretítulos da reportagem – na edição digital o termo foi suprimido, o que evidencia o equívoco, mas é possível acessar a versão impressa na imagem que acompanha este texto. É preciso salientar que em uma redação jornalística como a d´O Globo, o texto final deve passar pelo crivo de um ou mais editores antes de ser publicado. Desse modo, é possível que o termo tenha sido incluído posteriormente à redação do repórter. Mas, como meros leitores, nos limitaremos a mencionar o nome daquele que assina a reportagem. 

A ausência absoluta de uma fala da chamada “Turma do contra” – expressão pejorativa e desqualificante, diga-se – é grave e contradiz os próprios princípios editoriais da empresa, conforme exposto. Há apenas a menção que transcrevo a seguir:

Turma do contra

Realizando no Centro, o leilão chegou a ser suspenso por pouco mais de uma hora por causa de um protesto de estudantes e funcionários da UFRJ contrários à concessão. Eles alegaram (grifo nosso) que não foram consultados. O reitor em exercício da UFRJ, Frederico Leão Rocha, rebateu dizendo que desde agosto passado foram feitas 20 reuniões em várias instâncias da universidade, apenas dentro do Conselho Universitário, que dedicou mais de 20% de seu tempo a isso.

Ou seja, a “posição” dos petulantes opositores aparece como uma “alegação”: algo passível de dúvidas, incerto, a ser mais bem apurado. Em seguida, o reitor em exercício rechaça firmemente o argumento, afirmando que dedicou até muito de seu preciosíssimo tempo para essa questão menor, diante da magnitude de tão grandioso objetivo que estava no horizonte. Imagino que seja realmente difícil para um jornalista da empresa da Família Marinho conceber que meros estudantes e trabalhadores possam pensar criticamente, atuar contra os interesses dos próprios superiores e ainda, pasmem, resistir e lutar em favor do patrimônio público. Ora, quanto atrevimento!

Tivesse O Globo a figura de um “ombudsman” – jornalista incumbido de analisar e criticar os textos de cada edição do jornal -, como outros grandes jornais possuem, certamente a reportagem seria alvo de críticas. Mas o periódico dos Marinho parece considerar desnecessária a existência de tal profissional em sua redação. Ou desinteressante para os negócios, talvez.

Antes de encerrar essas não tão breves linhas, é necessário enfatizar que não se tratou aqui de refutar o estatuto da “Verdade” e de satanizar a prática jornalística. Não sento em tais fileiras. O que se pretendeu aqui foi um exercício, ainda que superficial, de reflexão sobre um assunto de interesse público, sob o ponto de vista das teorias da Comunicação Social, em particular do Jornalismo – ofício este imprescindível para a democracia e que deve ser desempenhado de forma séria e responsável. No entanto, é preciso estar atento ao seu processo de produção, que requer a seleção de temas a serem tornados públicos – enquanto outros tantos não o são – e de como esses tópicos serão interpretados – e sob que pontos de vista – pelos profissionais que atuam nessa função. 

Como já dito, alguns cuidados muito elementares foram ignorados na reportagem. Não dar vez ao contraditório é um erro que sequer um primeiranista do curso de Comunicação cometeria. A utilização do termo “Turma do contra” também incorre em um equívoco rudimentar, que fere o princípio básico da objetividade jornalística – aquela que se opõe ao subjetivo, que diz respeito ao “eu”, à opinião de quem escreve o texto, que deveria, em tese, se limitar a relatar o que presencia. 

Tantos deslizes não deveriam passar despercebidos entre profissionais tão tarimbados de uma empresa jornalística de tradição mais do que secular. O que nos leva a crer que se trata de um texto intencionalmente enviesado, escrito, editado e publicado por pessoas que não entendem como público o espaço de uma universidade pública. E ainda que esses profissionais consideram que a construção de uma casa de espetáculos privada – que certamente cobrará ingressos caros – para o público das classes média e alta da zona sul do Rio de Janeiro é tão importante a ponto de passar por cima de garantias mínimas para o patrimônio e o funcionamento de uma universidade pública. Isso, evidente, contribui substancialmente para formar a opinião do público e construir o consenso de que aquilo é o certo a ser feito.

Peço desculpas pela extensão deste texto e pelo tempo gasto pelo/a estimado/a leitor. Considerei, entretanto, relevante expor aqui os argumentos da chamada “Turma do contra”, já que ficamos sem espaço no jornal da Família Marinho. Procurei apresentar pontos que classifico como importantes para um debate um pouco mais democrático, como parece não ter sido o caso aqui exposto. E também chamar atenção para as ciladas que o Jornalismo prega, sempre que revestido de sua suposta imparcialidade e da falsa premissa de que “contra fatos não há argumentos”. 

* Pedro Barreto Pereira é servidor da UFRJ há 15 anos, jornalista, doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, professor substituto do Nepp-DH/UFRJ e autor do livro “Notícias da pacificação: outro olhar possível sobre uma realidade em conflito” (Ed UFRJ, 2020).