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BRASIL

Nota de repúdio à criação do Departamento de apoio às comunidades terapêuticas

Conferência Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial

A Conferência Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, mobilização social antimanicomial, antiproibicionista, antirracista e feminista, que surge no âmbito da V Conferência Nacional de Saúde Mental, constituída por mulheres cis, travestis, mulheres trans e pessoas não binárias, de diferentes raças e classes sociais e de diversos estados do Brasil, repudia e é contrária à criação do Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas no Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome.

Embora as Comunidades Terapêuticas estejam previstas na Lei nº 13.840/19, na Resolução CONAD nº 01/2015, na RDC ANVISA nº 29/11, na Nota Técnica nº 055/2013 – GRECS/GGTES/ANVISA, na Portaria de consolidação MG/MS nº 03/2017 e na Resolução CNDH nº 8/19, a legislação atual não é suficiente para responsabilizar e punir os crimes das pessoas donas destas instituições e organizações, muitas das quais subsidiadas pelo governo federal. Do mesmo modo frágil, a RDC Anvisa n°29/2011 faculta que o Responsável Técnico de uma Comunidade Terapêutica pode ser qualquer profissional de nível superior, não necessariamente da saúde, o que compromete sobremaneira o cuidado integral que pessoas portadoras de transtornos psíquicos e/ou decorrentes de substâncias psicoativas (SPA) necessitam.

Relatórios do Ministério Público Federal, do Conselho Federal de Psicologia e do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura dispõem de provas e evidências que muitos destes espaços trabalham de forma antagônica aos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, uma vez que fazem uso de dispositivos violentos que ferem os direitos da pessoa em sofrimento psíquico tais como abstinência, internações de longa duração, laborterapia (trabalho similar à escravidão), internações socioeducativas, cura gay e existem menções públicas em relação a prática de crimes como estupros corretivos, assédio sexual, violência psicológica e física e castigos.

Embora a ANVISA registre que as Comunidades Terapêuticas utilizam como instrumento terapêutico a convivência entre os pares e que as mesmas não dependam de profissionais de saúde, reforçam que tal serviço é considerado de interesse social e não um serviço de saúde. Por essas razões, absolutamente incabível que estes dispositivos figurem no país enquanto instituições capazes de fazer qualquer tipo de tratamento aos sujeitos em sofrimento psicossocial e/ou em uso de álcool e outras drogas. Instituições que têm como princípio o encarceramento e o trabalho análogo ao escravo enquanto terapêutica, sem equipe multiprofissional, norteadas por princípios religiosos não podem ser toleradas em nenhuma pasta do país. A simples transferência de responsabilidade para o Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, da Família e Combate à Fome de modo algum mascara ou ameniza o fato de que estas instituições estão, atualmente, ofertando suposto tratamento em saúde da pior qualidade. Tal situação configura negligência ou omissão do estado diante das necessidades das populações em sofrimento psíquico e social decorrentes do uso de substâncias psicoativas ou não. É sabido que muitos destes espaços asilares são de responsabilidade de líderes religiosos que, inclusive, obrigam as pessoas a seguirem sua fé e aguardarem por “milagres” para o reestabelecimento de suas saúdes e inúmeros são os relatos de pessoas submetidas a internações forçadas nestes espaços, obrigadas a trabalhar sob condições absolutamente cruéis e insalubres, em regime de exploração, pois toda a renda fica para a Comunidade Terapêutica, muitas sem comida, sem água e sem condições sanitárias.

Estas instituições trabalham em uma lógica higienista, manicomialista, segregacionista e excludente, já que a principal população que se encontra internada nestes espaços é constituída por pessoas em situação de rua, pessoas usuárias de substâncias, pessoas negras e a população trans, que, via de regra, não são tratadas por seu nome social e tem sua identidade de gênero violentamente questionada. É desumano seguir punindo, violentando e estigmatizando pessoas usuárias de substâncias, pessoas em situação de rua, mulheres, população negra, população periférica, população LGBTQIA+, principalmente, pessoas transvestigêneres. É urgente que o atual governo invista em políticas de moradia, de trabalho e renda para essas populações, principalmente as populações com pessoas em situação de rua e implemente também políticas públicas específicas para o acolhimento da população trans.

A Constituição Federal de 1988 inaugurou paradigmas de emancipação das populações abrangidas pelas políticas públicas de forma que as pessoas deixassem de ser objetos de intervenção assumindo a condição de interlocutores legítimos de suas necessidades e direitos. A Lei nº 10.216/2001 é absolutamente inequívoca quando estabelece em seu Parágrafo Único, que são direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

E quando determina em seu Art. 4º que: “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o .

Em 2003, o Governo Federal estabeleceu a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, reafirmando que o cuidado às pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas não deve acontecer de forma fragmentada e, sim, de forma integral e intersetorial, com uma atuação transversal de diferentes políticas setoriais, em conjunto com setores do Estado, como as áreas de saúde, assistência social, educação, esporte, cultura, lazer, trabalho, habitação, qualificação profissional, segurança pública, entre outros. O fato destas instituições terem como origem a sociedade civil organizada não autoriza, portanto, que façam como bem entenderem, que rompam com as lógicas de cuidado em liberdade, violem direitos e cometam tortura e maus-tratos.

Comunidades Terapêuticas não resolvem as necessidades sociais e de saúde de pessoas em sofrimento psíquico e de pessoas que usam substâncias psicoativas. É preciso abolir quaisquer instituições que operem da forma com as quais se operam as Comunidades Terapêuticas e construir de fato políticas de cuidado e assistência para esse público. Defendemos:

1. revogação dos artigos do decreto presidencial 11.392/2023, que criam o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas vinculado à Secretaria Executiva do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome;
2. debate ampliado com integrantes do governo, de diversos ministérios, profissionais e usuários sobre a questão da descriminalização das drogas;
3. a criação de um GT Interministerial para garantir a ação necessariamente intersetorial da política integrada de atenção às pessoas em uso de substância psicoativa e, em especial, as que estão em situação de extrema vulnerabilidade social com representantes de entidades de usuários dos serviços de saúde mental e dos movimentos de luta antimanicomial e antiproibicionista;
4. a interrupção progressiva do financiamento das Comunidades Terapêuticas, até que serviços de saúde e sociais substitutivos possam acolher as pessoas que nelas estão internadas;
5. o fechamento imediato das Comunidades Terapêuticas que praticam “terapêuticas” que ferem os direitos humanos e sociais de seus residentes.

Por fim, desejamos que o atual governo, o Ministério da Saúde, coordenado pela Dra. Ministra Nísia Trindade e também pelo futuro departamento de Saúde Mental, invista massivamente nos serviços substitutivos do SUS, de maneira articulada e intersetorial, fortalecendo uma rede de cuidados substitutivos robusta, que já possuímos, e que sofreu desmontes após o golpe de 2016, com CAPS 24 horas, CECCOS, Residências, Consultório de Rua e Unidades de Acolhimento, garantindo o cuidado desde a Atenção Básica. Que o atual governo faça investimentos em Economia Solidária, trabalho e renda, programas de moradia, investimentos em concursos públicos para equipes multiprofissionais, também em arte e educação e letramento digital para pessoas usuárias e familiares, com tratamento digno a profissionais da área de saúde mental.

Que o SUS trabalhe em suas decisões com o SUAS, já que o departamento de apoio às comunidades terapêuticas encontra-se no Ministério de Assistência Social, Família e Combate à Fome e que o Controle Social Popular funcione democraticamente em suas diversas instâncias, garantindo que o cuidado em liberdade, humanizado, radicalmente antimanicomial, antiproibicionista, antirracista, antilgbtfóbica, abolicionista penal e feminista, seja o norte do cuidado no SUS, de forma equânime, integral e laica. Que possamos avançar de forma interseccional na Reforma Psiquiátrica Brasileira.

#NÃO AO DEPARTAMENTO DE APOIO ÀS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
#POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS
#NADA SOBRE NÓS SEM NÓS

Att.,

Conferência Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial
Janeiro, 2023