Nesta sexta-feira (20), o Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em razão da crise de saúde entre o povo indígena Yanomami. O diagnóstico da pasta é que há dezenas de idosos e crianças, principalmente, em estado grave, além de inúmeros casos de desnutrição, malária e infecção respiratória aguda (IRA).
A crise é progressiva: em 2022, de acordo com o Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), foram diagnosticados mais de 11 mil casos de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami; registradas 99 mortes de crianças yanomami por desnutrição e síndrome respiratória aguda grave (SRAG) –causada, entre outras etiologias, pela COVID19 -; e muitos casos de verminoses. Nos últimos quatro anos, mais de 500 crianças indígenas morreram. Também em 2022, a Associação Yanomami Hutukara e a Associação Wanasseduumme Ye’kwana, junto à assessoria técnica do Instituto Socioambiental, divulgaram o levantamento “Yanomami sob ataque”, que evidenciou a crise sanitária, com aumento dos casos de malária e desnutrição infantil.
O relatório também apontou o garimpo como causa direta do aumento da desnutrição e dos demais problemas de saúde vivenciados pelos yanomami, dada a degradação da terra e consequente diminuição do terreno fértil para agricultura; a introdução de doenças entre os indígenas; a degradação ambiental com impacto epidemiológico por provocar o trânsito de agentes etiológicos de doenças entre os ecossistemas; a diminuição da capacidade laborativa dos indígenas para se protegerem da violência e, consequentemente, da capacidade de cuidado às crianças e idosos.
Levando em consideração o verdadeiro apagão de dados vivenciado pelo País acerca das questões de saúde, resultado da desfiguração dos sistemas de informação e da omissão da pasta quanto à vigilância em saúde, é possível que a defasagem de informações seja grande. O presidente Lula, as ministras Nísia Trindade (Saúde) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas do Brasil), outros quatro ministros, e equipes técnicas da Funai, sob a gestão de Joênia Wapichana, encontram-se nos territórios Yanomami. A previsão é de que até meados de fevereiro exista um relatório mais robusto sobre a situação.
A crise de saúde vivenciada nesse momento pelo povo yanomami é uma tragédia anunciada, reflexo do desmonte recrudescente do Sistema Único de Saúde (SUS), da negligência histórica com a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), e da intensidade da violência e opressão agravada pela pandemia de COVID19. Acima de tudo, a calamidade vivenciada pelos yanomami é resultado do genocídio sistematicamente executado por Jair Bolsonaro.
Como já apontamos aqui no Esquerda Online, há 20 anos o movimento indígena conquistou o Subsistema de Saúde Indígena, voltado à promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde com a devida integração das particularidades étnicas, culturais e epidemiológicas de cada um dos cerca de 305 povos indígenas que vivem no País. Para tal, as comunidades são regionalizadas em 34 distritos de saúde, em uma estrutura que integra o SUS e, apesar da dificuldade na fixação de profissionais e sua integração aos conhecimentos étnicos e culturais, estava avançando.
Contudo, já no primeiro ano de governo, Bolsonaro cogitou extinguir a SESAI e, após recuar, fechou cargos e alterou departamentos, o que agravou a situação de carência de atenção à saúde provocada pela saída dos profissionais do programa Mais Médicos. Em uma manobra que revela nítido desconhecimento sobre a saúde brasileira, as alterações foram justificadas pela integração do subsistema de saúde indígena ao SUS, como se fossem apartados. A medida aprofunda as dificuldades vivenciadas por esse setor de atenção à saúde, continuamente preterido na política pública e sendo vítima de iniciativas como a terceirização dos serviços – o que impacta na longitudinalidade do cuidado.
Além disso, o Decreto 9.795/19 extinguiu o Departamento de Gestão da Saúde Indígena, que até então tinha a responsabilidade de garantir as condições necessárias à gestão do subsistema, programando a aquisição de insumos e coordenando as unidades de atendimento – a extinção do departamento afeta frontalmente a gestão e o controle social, pois não houve diálogo com as lideranças indígenas. O impacto não demorou a ser visto na realidade do povo indígena: em novembro de 2022, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) investigaram fraudes na distribuição de medicamentos vermífugos, retendo o tratamento e deixando 10.193 crianças desassistidas, segundo nota da PF. A situação culminou no aumento de infecções e manifestação de formas graves de parasitose, com crianças expelindo vermes pela boca.
A forma autocrática de gestão da saúde indígena foi recrudescida pelo fim da Comissão Nacional de Política Indigenista, uma plataforma de interlocução entre as etnias e a gestão federal que teve uma atuação fundamental para a criação da SESAI, que era a única secretaria do Ministério da Saúde com atribuição de execução orçamentária. Com a extinção do Departamento de Gestão de Saúde Indígena do órgão, perdeu-se independência política e financeira para a assistência aos povos indígenas.
O governo Bolsonaro fez questão de trocar coordenadores dos distritos sanitários, substituindo-os por indicações políticas que resultaram nas mais inaceitáveis infrações ao direito à saúde, que deve ser garantido aos povos originários. Em pelo menos quatro distritos, as indicações foram de militares ou aliados políticos, que somam denúncias de inexperiência, truculência e má gestão da pandemia; três distritos tiveram sua gestão alterada no governo Bolsonaro. Em alguns deles, foram cinco trocas de coordenadores em pouco mais de um ano. Além da ofensiva ao direito à saúde, à terra e à liberdade, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho foi transposta, uma vez que prevê o direito à consulta prévia aos indígenas na escolha dos coordenadores dos distritos sanitários.
Houve relatos de um coordenador trabalhando armado e intimidando indígenas; remoção de barreiras sanitárias; desvio de verbas do combate à pandemia; distribuição de medicamentos sem eficácia no tratamento da COVID-19, como a cloroquina; negligência sobre a vacinação, jogando a responsabilidade de vacinar indígenas que circulam no meio urbano para secretarias estaduais e municipais de saúde, ignorando o risco de contaminação presente no trânsito entre meio urbano e comunidades isoladas – motivados por diversas razões, sobretudo de subsistência. A situação da saúde indígena implica a responsabilização não apenas de Bolsonaro, mas também de seus ministros Henrique Mandetta, Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga, bastiões da execução do genocídio bolsonarista no Ministério da Saúde.
Quando os yanomami denunciaram a situação já calamitosa em seus territórios, Bolsonaro reafirmou sua contrariedade à demarcação de terras e incentivou o garimpo ilegal. A facilitação à entrada de grileiros e garimpeiros em áreas de conservação foi parte da política do ecocida Ricardo Salles, que deixou o Ministério do Meio Ambiente ao ser investigado por envolvimento em tráfico ilegal de madeira, mas não sem construir um histórico que também envolve a paralisação do Fundo Amazônia, o desmonte do Ibama e do ICMBio, a suspensão de multas ambientas – todas medidas com grande impacto na sobrevivência e na qualidade de vida dos povos indígenas.
Junto a eles, também a ex ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, é agente ativa do genocídio indígena promovido no Brasil durante os últimos anos. Acusada de sequestro de crianças indígenas e tráfico infantil para exploração sexual, Damares não só ignorou a morte de 570 crianças yanomami, como pediu diretamente a Bolsonaro o veto às medidas de reabilitação e proteção contra a COVID19 para comunidades indígenas; assediou servidores da Funai para facilitarem a entrada de missionários evangélicos em territórios proibidos, aparelhando a instituição e fazendo dela uma ferramenta para o proselitismo religioso; e encampou a iniciativa de classificar pecuaristas e garimpeiros como povos tradicionais. Encerrando seu mandato à frente do Ministério com o escândalo da exposição detalhada de supostos casos de violência sexual em território indígena, na expressão de grande omissão de sua pasta, Damares agora é senadora eleita pelo Distrito Federal (DF).
Ao longo de seu governo, Bolsonaro ignorou 21 ofícios com pedidos de ajuda enviados pelo Yanomami. Quando das denúncias, havia estimativa pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de 20 mil garimpeiros em terras indígenas, ao que o então vice-presidente, Hamilton Mourão, respondeu dizendo que tanto esta estatística, quanto as denúncias de estupro e desaparecimento de membros da comunidade yanomami eram “fantasiosas”. A violência de garimpeiros e grileiros esteve ao lado do aparelhamento político dos distritos sanitários e do maior corte orçamentário para a saúde indígena nos últimos oito anos, fazendo da maior pandemia do século o instrumento do genocídio bolsonarista contra os povos indígenas.
Agora, com a crise sanitária entre o povo yanomami assumindo caráter de calamidade e marcando a história brasileira como mais uma grande tragédia, as tarefas para mitigação e condução dos impactos são gigantes. A Ministra da Saúde, Nísia Trindade, já anunciou a criação de uma sala de situação para monitoramento da crise e tomada das providências mais urgentes; atuação da Força Nacional do SUS com equipes multiprofissionais de saúde no cuidado às pessoas em sofrimento; distribuição de cestas básicas, insumos e medicamentos para o território; e instalação de um Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE- Yanomami).
Além disso, haverá atuação das Forças Armadas na proteção de profissionais e da comunidade contra a ação do garimpo ilegal; bem como a transição do Hospital de Campanha da Aeronáutica do Rio de Janeiro para Roraima, e transferência de membros da Operação Acolhida – que atua com os refugiados venezuelanos – para a Casa de Saúde Indígena (CASAI) de Boa Vista. Aeronaves de pequeno porte também estão disponíveis para transportar pessoas em estado grave.
Junto às medidas setoriais de mitigação da calamidade vivenciada pelos yanomami, é uma sinalização de suma importância a abertura de inquérito de investigação por crime de genocídio contra Bolsonaro pelo Ministério da Justiça, de Flávio Dino. Não só Bolsonaro, mas Mourão (Republicanos) – agora senador pelo Rio Grande do Sul -, Mandetta (UB), Pazuello, Queiroga, Salles (PL) – agora deputado federal por São Paulo – , Damares Alves (Republicanos) – senadora pelo DF – e todos os bolsonaristas envolvidos na execução do genocídio implementado contra os povos indígenas brasileiros devem ser implicados no inquérito e responsabilizados.
Manejada a crise, é necessária a retomada sistemática, interdisciplinar e intersetorial da atenção aos povos indígenas, com ênfase na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. É urgente que, simultaneamente ao resgate da demarcação de terras e ao combate à grilagem e ao garimpo, a SESAI – que já foi reinstitucionalizada e está sob gestão do ativista, advogado e líder indígena cearense Ricardo Weibe Tapeba – seja reconstituída, com recuperação de sua autonomia financeira. De forma complementar à demarcação de terras, é importante que a territorialização em saúde seja revista e atualizada, garantindo distritos sanitários indígenas distribuídos equitativamente nos territórios. Também é central que a histórica terceirização da atenção à saúde indígena seja destituída, com a PNASPI sendo aportada por programas, ações e estratégias com impacto na formação profissional, no aporte de recursos humanos aos distritos sanitários, na vigilância em saúde, na distribuição de insumos e equipamentos, no aprimoramento do controle social para gestão compartilhada das ações de saúde com as lideranças e comunidades indígenas.
Pelo avanço no reconhecimento histórico aos povos originários, com um ministério destinado às políticas públicas voltadas a essas populações, é necessário que o SUS e as políticas de saúde também olhem com o cuidado necessário para aqueles que são essenciais na manutenção da terra, dos biomas e da história do País. Isto é parte imprescindível da reconstrução da saúde pública brasileira.
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