A luta pela memória é tão antiga quanto a história da humanidade. O cultivo da memória é uma luta contra o esquecimento. No limite, pode ser compreendida como uma luta da vida contra a morte – e a história do Brasil é permeada de torturas seguidas de mortes violentas, da pilhagem que produziu cadáveres incontáveis: parte sepultados, e outros tantos caindo no esquecimento. O apagamento sistemático, que atravessa as décadas e os séculos, se materializa por meio de sucessivas ofensivas contrarrevolucionárias burguesas, imperialistas e coloniais sobre nós. Demonizar, distorcer ou apagar nossa memória é trabalhar para aniquilar o acúmulo histórico de nossas lutas pregressas. É parte de uma estratégia ideológica permanente para exercer Poder sobre as classes subalternas. Mas a boa notícia é que novamente o passado volta à baila, está em disputa e é hora de avançar com a nossa estratégia.
Percorrendo as últimas décadas do século XX, verificamos que o terrorismo de Estado e crimes de lesa-humanidade, promovidos pela Ditadura Empresarial-Militar contra o povo brasileiro e suas classes populares, foram perdoados através da Lei da Anistia, em um acordo republicano pactuado pelo alto e tutelado pelas cúpulas militares no período de nossa transição democrática. Tal esforço minucioso serviu para Generais salvarem seus pescoços sim, mas não apenas: também foi para empreender a destruição da nossa memória, das lutas e resistências caladas pela ditadura com um banho de sangue. Essa é uma das causas do que chamamos de “amnésia geral” na sociedade brasileira, quando o assunto é história e política.
Em uma sociedade como a nossa, tão marcada pelo esquecimento, não causa espanto o pouco apreço pelos valores democráticos. Fato inclusive constatado nos últimos anos, exaustivamente, com recorrentes reivindicações clamando por “intervenção militar” em protestos de rua. Não é de se estranhar que a defesa escancarada do legado de um dos períodos mais sombrios da história do Brasil, do qual o ex-presidente Jair Bolsonaro é subproduto, passe impune e tenha ressonância nos setores das camadas médias fascistizadas pelo Bolsonarismo.
O ápice foi a intentona golpista em Brasília que, apoiada por Generais, nos deu uma lição contundente: é irracional e impraticável para um convívio social que promova Dignidade continuar varrendo tanta sujeira para debaixo do tapete. Enquanto não acertarmos as contas com o nosso passado, ele retornará para assombrar em forma de terror golpista. E quando se trata de ter responsabilidade para com o futuro do Brasil, adiar essa tarefa democrática pendente/incompleta é algo que não pode mais ser cogitado.
Desde o Golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, passando pela galopante ocupação de cargos políticos por oficiais da reserva e da ativa das FFAA, as vantagens orçamentárias reunidas pela corporação e finalmente a adesão automática aos projetos econômicos ultraneoliberais de Temer a Bolsonaro (destruidores do nosso tecido social), a abundância de dados da realidade nos revela o óbvio: as Forças Armadas não apenas nunca abandonaram a política, como foram a mola propulsora da ascensão neofascista brasileira, se beneficiando diretamente da devastação social.
Agora a boa notícia é que, após anos difíceis de derrotas profundas, os ventos começam a mudar em nosso favor. A popularização rápida de um grito tão politizado como “SEM ANISTIA”, entoado desde a posse do presidente Lula, mas entalado em nossas gargantas há mais de 40 anos, deveria ter nos sinalizado antes mesmo do atentado em Brasília: os ventos estão mudando. Precisamos ser decisivos.
Chegou a hora de reunir fôlego, coragem e muita discussão política para lutar efetivamente por Memória, Verdade e Justiça. Sob essa prioridade, é preciso agir em consequência. Estamos diante de uma janela de oportunidade para as forças populares, mobilizadas e organizadas, colocarem o generalato brasileiro pela primeira vez no banco dos réus. Desde 1985, nunca houve melhor momento nacional e internacional de lutar pela derrubada da tutela militar. E nunca se viu as Forças Armadas desmoralizadas como agora. Uma compreensão dialética da intentona golpista em Brasília nos leva a perceber que, se de um lado o terror fascista nos alarma por sua gravidade, por outro lado e de maneira contraditória, ele (de maneira inconsequente) produziu uma oportunidade histórica de iniciarmos uma Justiça de Transição no Brasil.
Também é preciso dizer que estamos com o presidente Lula para que ele demita o Ministro da Defesa, José Múcio, salvaguarda bolsonarista e militar. Múcio acoberta nossos inimigos e representa uma ameaça concreta aos nossos interesses populares, aos da Nação e ao objetivo de reconstrução do Brasil após a devastação bolsonarista. Também é uma medida urgente estender a varredura aos generais oficiais já comprovadamente vinculados ao bolsonarismo, colocando-os na reserva. Afastar Múcio e encurralar todo esse oficialato na reserva é uma necessidade imediata que o presidente Lula terá apoio popular para executá-la. Então será possível inaugurar um debate nacional sobre mudanças estruturais nas FFAA.
Se abriu uma janela de oportunidade histórica para um acerto de contas com o nosso passado e isso é inequívoco. Hora de agarrá-la, pois sabemos que oportunidades históricas, tão raras, não são eternas. E quando se encerram, o resultado ainda pode ser trágico. São tempos para se ter responsabilidade e clareza de que o momento político é demasiado privilegiado para ser desperdiçado.
Por isso a palavra de ordem “SEM ANISTIA” não pode se limitar a ser apenas instrumento político de exigência por punição a Bolsonaro e sua família. Isso é óbvio que sim, é parte da tarefa conjuntural. Mas, “SEM ANISTIA” também deve ser a ponte que nos conecta a uma estratégia de luta muito maior. De recuperação das tarefas democráticas incompletas, e para promovermos a efetiva Justiça de Transição pela primeira vez na história do Brasil.
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