Foi-se o tempo das primeiras-damas que se valiam do assistencialismo. Foi-se também o tempo em que a caridade era atributo de quem estava no poder para fazer da política de solidariedade uma estratégia de ascensão eleitoral e autoafirmação social. Ao romper essa tradição, Rosângela Lula da Silva, a Janja, assim como as ministras empossadas para incorporar a diversidade de gênero e étnico racial, abrem caminhos reais para o protagonismo feminino e o tão desejado aumento da participação da mulher nos espaços de decisões e poder político.
Apontada pela crítica como exemplo de primeira-dama que quebrou paradigmas, Janja construiu sua militância muito antes de se tornar esposa do presidente Lula, com uma trajetória pautada por três pautas fundamentais e que transcendem a visão patriarcal e diminutiva do papel da mulher nas instâncias de poder: o combate à violência doméstica, à fome e à discriminação racial.
Superar em quatro anos as perdas que culminaram em um retrocesso de 30 anos nos direitos das mulheres provocado por um governo autoritário, misógino, homofóbico e genocida é um desafio complexo para o novo governo e que exige romper com tudo que se arrasta há séculos e não serve mais. Principalmente, romper com o ciclo de mulheres que conquistaram não o respeito social, mas um tratamento de obediência pelas posições que ocupam, alimentada pelo medo às figuras masculinas de poder que lhe condicionaram a tal status.
Ver mulheres com o perfil de Janja, Sônia Guajajara, Anielle Franco, Margareth Menezes, Marina Silva, Nísia Trindade, Cida Gonçalves e tantas outras que expressam a diversidade de vozes e vivências nos espaços de protagonismo é honrar a história, a tradição e ancestralidade de nossos povos, sobretudo, de mulheres que fazem da labuta diária uma arte para inventar e reinventar formas de sobrevivência em uma sociedade estruturalmente patriarcal.
É também valorizar a força de mulheres que carregam nos ombros o peso da enxada, da discriminação, da violência, do preconceito, das horas lavando no tanque a sujeira da opressão, requentando a esperança no fogão e alimentando sonhos. É acreditar na vez da voz da mulher destituída, que vive no limite, por anos apequenada, violentada e desacreditada da própria capacidade de tanto ver a recompensa de seu suor em mãos indignas, que não tem tempo de olhar para si mesma nem se sente merecedora após tantos séculos de servidão.
É acreditar que o protagonismo é para todas, todos e todes e que a nobreza da caridade, por séculos associada ao poder, não é aquela que desde o feudalismo advém de quem recebe títulos do governo na perspectivada social da concentração de poder.
Particularmente, o simbolismo de Janja me remete à memória de Eduardo Nakamura, a quem indiretamente atribuo o início de minha militância e consciência da luta de classe, bem como da construção da esperança de um governo popular em Suzano. Médico sanitarista que jamais tratou a saúde como barganha política e eleitoral, estava cotado para disputar as eleições majoritárias do campo progressista em 2000, não fossem os problemas de saúde agravados por um câncer. A admiração que sua luta causava às pessoas influenciou a militância de muitos jovens que combateram a ditadura. Um deles foi meu pai, que se debruçava na elaboração de um possível plano de governo para Nakamura. Foi a primeira vez que me vi desafiada a refletir sobre o papel da mulher nas instâncias de poder político.
Falava-se muito sobre a necessidade da valorização feminina nos espaços de protagonismo, muito além do vínculo com uma figura masculina. Uma presença que deveria honrar e dignificar a participação da mulher nos ambientes de decisões e poder político, que não poderia se restringir ao papel da primeira dama, nem à política assistencialista orquestrada muitas vezes como estratégia eleitoreira e muito menos esbarrar em estereótipos, como o das supermadres – mulheres cujo poder caiu no colo pela influência masculina de seus cônjuges ou de quem mantinham laços sanguíneos.
Que essa ruptura de tradição provocada por Janja e a diversidade das vozes de nossas ministras possam eclodir um movimento político de resistência feminina para que a mulher seja pautada como sujeito permanente de direitos, pois como mostram experiências europeias, as pautas feministas são fundamentais para conter o avanço da extrema direita.
* Giss Zarbietti é jornalista especialista em Educomunicação, autora do livro “Memórias de Suzano – história e fotos de todos os tempos, do vilarejo à cidade grande”; foi editora de Cultura e integrou a coordenação Executiva do Programa Jornal e Educação da Associação Nacional de Jornais (ANJ)
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