O jogo, o rei, a eternidade.

Pelé é carregado pelos torcedores no gramado do estádio Azteca após o Brasil vencer a Itália e conquistar o tricampeonato
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Pelé é carregado pelos torcedores no gramado do estádio Azteca após o Brasil vencer a Itália e conquistar o tricampeonato

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

“Se Pelé não tivesse nascido homem, teria nascido bola”

( Armando Nogueira)

O ano era 1957, o Vasco da Gama era até então uma das principais equipes de futebol da América do Sul. O time carioca viajou para a Europa, onde em uma excursão venceu o Real Madrid em uma final em Paris, e aplicou uma goleada por 7 a 2 no Barcelona, em plena
Catalunha. Apesar dos feitos impressionantes, o que entra pra história era algo que acontecia do outro lado do continente, quando era disputado no Rio de Janeiro um torneio sem muita badalação.

Um combinado entre atletas do Santos e jogadores do Vasco que não viajaram enfrentariam Flamengo, Dínamo de Zagreb e Belenenses. Pelo lado do Vasco, o destaque era Bellini, que não viajou por estar convocado pela Seleção brasileira. Já pelo time paulista, as atenções estavam sobre um jovem franzino, de pele escura, nascido em Minas Gerais e torcedor do Vasco, de apenas 16 anos, que começava a aparecer no mundo do futebol. Era Pelé. Que jogando com a camisa preta portando a Cruz de Malta marcou cinco gols em três jogos.

Foi a primeira vez que Pelé marcava um gol Maracanã. Foi a primeira vez que Pelé fazia três gols no mesmo jogo. Após a partida foi a primeira vez que Pelé foi convocado para a Seleção Brasileira. O resto é história.

Reza a lenda que, antes dele, o número dez era somente um número. Após os feitos de Edson Arantes do Nascimento em campo, o 10 ficou reservado apenas para os melhores. Se tornou um número místico, uma armadura.

O fato é que muitos craques jogaram antes de Pelé. Vavá, Didi, Leônidas da Silva, Arthur Friedenreich. Outros tantos foram contemporâneos. Garrincha, Eusébio, Di Stefano, Beckembauer. E outros muitos vieram depois. Johan Cruyff, Zidane, os Ronaldos, Messi, Cristiano, Maradona. Porém nenhum deles era Pelé.

Pelé se tornou um adjetivo. Um termo. Quase como um nobre título. Reservado aquele que é o melhor em sua área de atuação. Existe o Pelé da literatura. O Pelé da política. O Pelé do atletismo. Se você é muito bom você é quase um Pelé. Quase, porque não importa quão bom fosse, é impossível ser Pelé.

Eduardo Galeano já escreveu “Pelé joga futebol como Deus jogaria se resolvesse se dedicar seriamente ao assunto”. O problema é que Deus tem coisas mais sérias pra fazer do que correr atrás da bola. Pelé jogou como Deus, mas nem Deus jogaria como Pelé.

Pelé, quando entrava em campo, se separava de Edson, se tornava uma entidade, um ser superior. Pelé se tornou o Santos F.C em carne e osso, se tornou o Brasil em pessoa. Pelé se tornava a materialização da excelência. Da beleza. Do heroísmo. Do ato de jogar futebol. P-e-l-é, se tornou uma das poucas palavras quase universais, cujo significado quer dizer: perfeição. Nunca antes quatro letras se tornaram tão gigantes e tão fácil de se pronunciar em qualquer idioma que fosse. Do aramaico, ao grego, passando pelo coreano.

Assim como existe um futebol antes do Rei e um futebol depois da Majestade desfilar em campos de mais de oitenta países, acredito que existe um Brasil antes e depois de Pelé. Enquanto nosso país ainda buscava se afirmar como Nação soberana, enquanto estava
descobrindo o que queríamos ser, Pelé fez o Brasil ganhar o mundo. A bandeira verde e amarela passou a ser vista por todos.

Enquanto ainda estava se formando um sentimento daquilo que é ser brasileiro, Pelé foi um dos primeiros, se não o primeiro, a nos dar orgulho de ter nascido nesse solo. No período que o mito da democracia racial tomava corpo e se afirmava, um jovem negro socava o ar e como uma redenção se libertava. Pelé se tornou mais famoso que o país que o negava e anunciava um novo Brasil que ainda estava por vir. Pelé representa a rejeição ao Brasil que mata, ao Brasil escravocrata e colonial, ao país que abandona Edson pela cor de sua pele. Ele é anúncio de um Brasil soberano, liberto, no qual o Rei é negro da mesma cor que Zumbi.

Esse acaso do destino, o de Pelé ter nascido Edson, e de Edson ter nascido negro, a Europa não pode perdoar. Como um negro pode ser o maior dentro os maiores? Como ele pode ter recusado os times europeus e escolhido fazer carreira em seu clube de coração? E justamente por isso que os burocratas do futebol buscam rejeitar seus números. Com argumentos que mais parecem esfarrapadas desculpas, usam de estatísticas para tirar gols de sua carreira. Dizem que no tempo de Pelé era mais fácil, que o jogo não era tão evoluído. Não exista a tal da marcação sobre pressão ou a esfarrapada linha de três.

Se Pelé jogasse hoje faria muito mais que os mil e duzentos gols que ele e somente ele fez. Qualquer um que assiste vídeos de Pelé em campo, algum filme ou documentário sobre ele, chega a mesma conclusão que eu cheguei: a imortalidade existe.

Porém, ao lado dos burocratas do jogo, existem os homens de pouca fé, que duvidam e não sabem o que falam. E procuram, em vão, qualquer coisa para diminuir a grandiosidade do Rei. O argumento da moda é dizer que Pelé não se dedicava às causas sociais. Que apoiava a ditadura. Que era uma figura de direita. Os defensores do Rei, para rebater as acusações, chegaram a desenterrar uma entrevista de Pelé para a Folha de São Paulo, na qual ele afirmava concorrer a presidência e que era Socialista.

Eu, pessoalmente, não acredito que Pelé era socialista, muito menos que Pelé apoiou a ditadura. Agora, o que Edson era politicamente não sei e não me interessa. O lado humano de todo mito é recheado de imperfeições. Mas aquilo que não entende os que acusam Pelé é que se faz política com a bola e sem a bola. Sem a bola, Pelé pediu e se somou ao movimento por Diretas Já, pela alfabetização e  contra o trabalho infantil. Com a Bola Pelé produziu um mundo à parte. Pelé parou uma guerra, foi responsável por greves. E, se seus críticos não entendem a grandeza de um Rei negro no país da então “democracia racial”, caso não compreendam o Brasil que ele ajudou a formar e o Brasil que ele anunciou ser possível, não é papel dessas linhas que irão explicar.

Como um comunista, sou politicamente contra as monarquias. Dentro do jogo a história é outra. Sou um fiel súdito de nosso Rei. Obrigado por tudo Pelé.

Edson Arantes do Nascimento fez sua passagem. Que encontre a paz. Pelé será Eterno. Pelé se faz presente em cada criança que chuta uma bola. Pelé se tornou imortal!