TEXTO ORIGINAL PUBLICADO EM 30/12/2022
O estabelecimento da nova coalisão governamental de Israel, ocorrido nesta quinta-feira, 29/12/2022, coloca um problema: como melhor defini-lo?
Direitista? Ultradireitista? Ultra-ultra-ultradireitista? Extremista? Racista? Governo de apartheid?
Qualquer uma e todas essas descrições poderiam se aplicar de forma precisa.
Este é um governo que pretende “legalizar” os postos de colonização avançados, ou seja, torná-los legais sob a jurisdição israelense, mas não sob a legislação internacional, segundo a qual todas as colônias em território ocupado são ilegais.
O governo considera, nas palavras do primeiro-ministro eterno de Israel, Benjamin Netanyahu, que “o povo judeu possui um direito exclusivo e inquestionável a todas as áreas do Território de Israel.” Essas áreas, aparentemente, incluem as Colinas de Golan e a ”Judeia e Samaria”, mais conhecida como Cisjordânia – todas territórios ocupados.
Assegurar a primazia de direitos de um povo sobre outro em qualquer contexto, mas especialmente em uma área com paridade populacional, ao mesmo tempo que, de forma desaforada, desprezar a legislação internacional, seria normalmente considerado como extremismo no melhor dos casos ou, conservadoramente, como racismo descarado.
O problema para aplicar esses epítetos é que eles criam uma sensação de que este novo governo é, de alguma forma, um desvio [do padrão] de governos israelenses do passado. O que não é o caso.
A mesma coisa que os governos anteriores?
Não faz muito tempo que Israel estava determinado a anexar partes dos territórios ocupados durante um governo anterior dirigido por Netanyahu, quando o ex-presidente dos EUA Donald Trump estava no governo.
O plano de “paz” de Trump foi amplamente ridicularizado e os planos de anexação foram engavetados, mesmo que Israel tenha recebido o reconhecimento dos EUA para sua anexação das Colinas de Golan, feita em 1981, em violação à legislação internacional, que proíbe a aquisição de territórios pela força.
Isso não deteve a formação de nada distinto a uma coalisão liderada por Netanyahu que pode ter incluído um partido “árabe”, mas também foi dirigida por Naftali Bennett, um ex-dirigente do conselho Yesha[1], que supervisiona as colônias israelenses nos territórios ocupados, que se opunha à igualdade de direitos, promovia a construção de colônias e se gabava sobre “matar árabes”.
Tais políticas não são meramente um fenômeno recente. Os planos de anexação para a Cisjordânia começaram no momento que a col0nização judaica começou propriamente lá, o que ocorreu imediatamente depois da ocupação de 1967. Afinal, porque mover civis – se é que colonos armados podem ser descritos dessa forma – para territórios militarmente ocupados se a intenção não fosse a de se manter naquele território?
Em termos dos territórios ocupados em 1967, o novo governo promete mais do mesmo. Talvez de forma mais ruidosa e mais óbvia: a afirmação de que os territórios são propriedade “exclusiva e inquestionável” do povo judeu certamente vai mais longe inclusive do que a discriminatória “lei do estado nacional”[i][2] israelense.
Mas é a mesma coisa, apesar das diferenças. Israel anexará formalmente mais territórios? Isso poderia ocorrer, apesar de que Netanyahu, como de costume, fala mais do que faz e ele já tentou “tranquilizar” seus aliados que o que fará será mais do mesmo.
Apagando os limites
Há diferenças. A expansão dos poderes do novo ministério de “segurança nacional” encabeçado por Itamar Ben-Gvir, dirigente do partido supremacista Poder Judaico, inclui mais controle sobre a polícia israelense (palestinos dentro das fronteiras de 1948, cuidado!), assim como a transferência para o ministério da denominada Polícia de Fronteiras, geralmente utilizada contra os palestinos dos territórios ocupados.
Há outro apagamento da diferença entre os limites de Israel dentro de suas fronteiras de 1948x – excluindo-se a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza – e os territórios ocupados em 1967, que são todos, recorde-se, de domínio “exclusivo” do povo judeu. Além disso, o apoio declarado de Ben-Gvir para que os judeus possam rezar no complexo da Mesquita de al-Aqsa deve se tornar uma fonte de sérias tensões.
A nomeação de Bezalel Smotrich, do partido Sionista Religioso, também [composto por] supremacistas judeus, como ministro de Finanças, significa que os colonos também não terão problemas de dinheiro.
Além disso, Smotrich e Ben-Gvir fizeram lobby para aumentar o controle governamental sobre o Poder Judiciário de Israel. Isso abre o caminho para um potencial cancelamento das acusações por corrupção contra Netanyahu, assim como acabar com o banimento (claramente mal observado) dos parlamentares que incitam o racismo.
Enquanto isso, a transferência para o Ministério da Defesa do poder para nomear um conselheiro jurídico para o setor das forças armadas que controla a ocupação é mais um passo no sentido de unificar Israel com a Cisjordânia. O que sinaliza “um passo significativo para a anexação e para a consolidação do regime de apartheid israelense na Cisjordânia”, de acordo com vários grupos de direitos humanos em Israel.
Mais além das fronteiras atuais, o Irã figura novamente como alvo. Netanyahu nomeou Tzachi Hanegbi como chefe do conselho de segurança de Israel. Hanegbi, um veterano falcão em relação ao Irã, já declarou que Netanyahu autorizaria um ataque unilateral contra o Irã se Washington e Teerã não chegarem a um acordo nuclear.
Preocupações
Esperam-se muitas preocupações por parte dos aliados ocidentais de Israel, cujo apoio a Israel e seu declarado compromisso com o direito internacional estão em constante contradição.
O foco estará em Washington, a União Europeia é um antigo contribuinte, não um ator, e nunca esteve muito preocupado pelos prévios governos de Netanyahu.
Não há dúvidas, o presidente dos EUA, Joe Biden, considerará a nova coalisão como uma dor de cabeça.
Mas Biden é ferrenhamente pró-Israel. Quando ele ligou para Netanyahu para congratulá-lo pela sua vitória eleitoral, ele lhe disse: “Nós somos irmãos. Nós faremos história juntos”.
Os EUA há pontos bem maiores em sua agenda, sendo a Rússia e a Ucrânia a imediata prioridade e a China, o de longo prazo. Na ausência de uma séria conflagração e considerando que Netanyahu não está interessado em começar nenhuma divisão com os EUA e que pode exercer controle sobre gente como Ben-Gvir e Smotrich, a promoção das políticas de apartheid por meio da usual anexação silenciosa pode servir a ambos os lados.
Os novos amigos árabes de Israel podem também descobrir que sua posição seja mais difícil de ser defendida. E as sugestões de que a Arábia Saudita possa assinar um acordo de normalização para impedir a anexação poderia ser mais difícil para Riad encarar, dado o pequeno impacto causado pelos Acordos de Abraão no comportamento de Israel.
Os palestinos irão pagar o preço, como sempre. E talvez a Autoridade Palestina (AP) pague o maior preço. Reduzida ao papel de distribuidor da ajuda internacional e como subcontratada na área de segurança, a AP foi sempre considerada como favas contadas por Israel, ignorada pelos atores internacionais e desdenhada pela maioria dos palestinos.
Sofrimento à vista
O destino da AP – um estado em formação sem status de estado no horizonte previsível – será questionado com crescente regularidade e poderá ter em breve sua inevitável conclusão.
Caso a AP entre ou não em colapso devido ao peso de sua própria irrelevância, os palestinos terão que se contar no (substancial) apoio popular global e esperar que o governo supremacista de Israel irá acelerar o que até agora tem sido uma mudança glacial, mas significativa, nas percepções populares nos EUA, em particular entre os judeus americanos.
Pode haver também uma pequena esperança na declaração do Tribunal Penal Internacional (TPI) de que irá dar andamento a um inquérito sobre crimes de guerra, se é que chegará a isso.
Será que o TPI começará os processos contra Netanyahu pelo crime de apartheid? Israel anexará toda ou partes da Cisjordânia? A AP entrará em colapso? Israel bombardeará o Irã?
Essas e muitas outras perguntas serão respondidas nas próximas semanas, meses e (possível, mas não provavelmente, dada a vida média dos governos israelenses) anos.
Uma coisa pelo menos é certa: haverá mais sofrimento para os palestinos, mesmo se os amigos e apoiadores de Israel terão cada vez mais dificuldades para apresentar uma defesa coerente dos “valores” de Israel.
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