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TEORIA

Trinta e um anos depois do fim da URSS, algumas reflexões

Henrique Canary, de São Paulo (SP)
Arkádi Chaikhet/МАММ/МDF/russiainphoto.ru
E então, que quereis?
Fiz ranger as folhas de jornal
Abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
De cada fronteira distante
Subiu um cheiro de pólvora
Perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
Nada de novo há
No rugir das tempestades
Não estamos alegres,
É certo,
Mas também por que razão
Haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
É agitado.
As ameaças
E as guerras
Havemos de atravessá-las.
Rompê-las ao meio,
Cortando-as
Como uma quilha corta
As ondas
Vladimir Maiakóvski

Foi há exatos 31 anos, no dia 25 de dezembro de 1991, às 19:35, depois de um breve pronunciamento de Mikhail Gorbatchóv, que a bandeira vermelha da URSS foi pela última vez arriada da cúpula do Palácio do Senado, no Kremlin de Moscou. Quase imediatamente, a bandeira tricolor, simbolizando a “nova Rússia”, capitalista e ultraliberal, foi hasteada em seu lugar. Foi um fim melancólico para a mais importante experiência socialista jamais realizada pelos seres humanos sobre o planeta Terra. Desde a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o capitalismo mundial e seus ideólogos não param de cantar canções sobre a sua vitória e a consequente “derrota do socialismo”. Mas será isso mesmo? O socialismo foi mesmo derrotado em 1991? Em um sentido, é evidente que sim, e não admitir isso é fechar os olhos para pelo menos 30 anos de derrotas sucessivas da causa da libertação da humanidade. Mas em outro sentido, não. E é sobre isso que falaremos aqui.

Tem sido dito pelo trotskismo que o que foi derrotado em 1991 na União Soviética foi o stalinismo, e não o socialismo. Essa ideia contém alguma verdade, mas é uma explicação demasiadamente fácil. Dizemos simplesmente “aquele não era o nosso projeto” e lavamos as mãos. Assim, evitamos o peso psicológico da derrota. Ora, é verdade que a experiência soviética estava há muitas décadas contaminada pela degeneração stalinista, mas essa degeneração não era completa, não anulava em si a experiência. Então, simplesmente se desvencilhar do fato e dizer que reivindicamos um outro socialismo não me parece uma saída real, capaz de fornecer algum sentido aos 70 e poucos anos de construção soviética.

Vamos à história. A União Soviética foi formada em 1922 como fruto da Revolução Russa ocorrida em 1917. O Império Russo do final do século 19 e início do século 20 era um dos territórios mais contraditórios do mundo. Por um lado, um país camponês, com uma agricultura extensiva e pouco produtiva, com um regime político autocrático baseado na ortodoxia bizantina, sem liberdades políticas e com uma débil sociedade civil. Por outro, a Rússia estava salpicada de grandes cidades industriais, onde vivia um proletariado jovem e aguerrido, corajoso e com fortes ligações com o campo, de onde a maioria acabara de sair. Havia também um vigoroso movimento socialista, que contrastava com uma burguesia mesquinha e covarde, incapaz de cumprir o papel histórico que lhe cabia “por direito”.

A Revolução Russa ocorreu nesse contexto. A direção bolchevique, a despeito das vacilações iniciais, rapidamente entendeu que a introdução de medidas capitalistas era a única forma de desenvolver uma economia socialista forte. Começou a NEP, Nova Política Econômica, sugerida pela primeira vez por Trótski em 1920 e adotada no ano seguinte por insistência de Lênin.

Em menos de 30 anos, a União Soviética conseguiu um nível de crescimento e desenvolvimento que nenhum país capitalista jamais havia alcançado. Fruto da nacionalização da economia, do monopólio do comércio exterior e do planejamento da produção, a URSS se tornou, em tempo recorde, de fato, a segunda potência industrial do mundo.

Ao longo de sua existência, a União Soviética distribuiu terras aos camponeses, acabou com o analfabetismo, promoveu a integração da mulher no mercado de trabalho e estruturas de poder, legalizou o aborto e o divórcio, integrou as nacionalidades oprimidas na vida da sociedade, dando-lhes direitos e garantindo o seu desenvolvimento social e cultural. A União Soviética foi a responsável pela vitória sobre o nazismo, façanha essa que lhe custou 27 milhões de vidas, além da ocupação e destruição de uma parcela importante de seu território. A União Soviética enviou o primeiro objeto construído pelo ser humano ao espaço, o satélite Sputnik, em 1957; construiu a primeira estação espacial, a Saliut-1, em 1971; enviou a primeira sonda interplanetária, a Venera7, que pousou suavemente em Vênus em 1970 e enviou dados à Terra por 23 minutos, antes de ser esmagada e derretida pela temperatura e pressão da atmosfera do planeta, tudo isso em um momento em que os seres humanos nem sonhavam com a exploração de Marte; enviou o primeiro ser vivo ao espaço, a cadela Laika, em 1957; o primeiro ser humano ao espaço, Iuri Gagárin, em 1961; a primeira mulher ao espaço, Valentina Terechkóva, em 1963. A União Soviética reduziu drasticamente o déficit habitacional do país, com programas ousados de moradia popular em condições climáticas extremas, com frios de até -50º; criou um sistema de saúde pública e educacional, cujas conquistas perduram até hoje; A URSS foi, ao longo do século 20, uma referência no esporte, no balé, no cinema, na arquitetura, na física e na matemática.

De um modo geral, o século 20 foi o século da União Soviética. Como então, pode-se afirmar que a União Soviética “não deu certo”? Ora, porque essa afirmação é puramente ideológica, não tem necessariamente relação com os fatos.

A burguesia existe como classe social desde pelo menos o século 12, mas só conseguiu implementar seu projeto de poder plenamente no final do século 18, com o a vitória da Revolução Francesa. Pode-se afirmar que a burguesia “não deu certo” entre os séculos 12 e 18? Não. Acontece que as grandes mudanças sociais frequentemente não ocorrem de imediato simplesmente porque a sociedade está objetivamente madura. Ao contrário, quase sempre as grandes transformações incluem recuos, derrotas, novas tentativas, vitórias parciais, adaptações às condições concretas. O projeto socialista exige tempo histórico, um tempo talvez maior do que o de nossas vidas. A luta socialista é uma luta de longuíssimo prazo. Batalhamos pelo futuro.

Nesse sentido, a experiência soviética foi exitosa porque mostrou ao mundo as potencialidades do socialismo. Que ela tenha deixado de existir não anula a experiência em si, da mesma forma que os experimentos de física quântica realizados hoje no Grande Acelerador de Partículas não anulam as velhas experiências de física newtoniana, realizadas com uma pedra, uma pena e uma torre. Trata-se unicamente de diferentes etapas no processo de apreensão do mundo. No caso do socialismo, diferentes etapas no processo de sua transformação.

O proletariado é o sujeito da revolução socialista porque é a classe mais universal da sociedade. Na sua ausência de propriedade e no caráter coletivo de sua produção está contido o gérmen do único futuro possível para a humanidade. É por isso que o futuro lhe pertence. Mas não sabemos o quão longe ele está porque o proletariado também é uma classe explorada, oprimida e alienada, e é a primeira vez que uma classe com essas características formula um projeto de poder. Os clássicos do marxismo viam a revolução socialista dentro do seu horizonte político e a construção do socialismo como uma questão de anos ou décadas. E realmente foi assim naquele momento. Mas houve a luta de classes, as guerras, as contrarrevoluções, o stalinismo. Aconteceu o que sempre acontece: a História. A revolução saiu do horizonte político de curto prazo e se deslocou para o horizonte histórico, e o que é pior: fora do campo do visão individual. Mas é justamente por isso que o socialismo só pode ser um projeto coletivo, feito por muitas gerações, pensado em tempo histórico.

Pensar as derrotas do socialismo, pensar essa “melancolia de esquerda”, como disse o grande historiador italiano Enzo Traverso, é pensar também uma forma de continuar sob as novas condições. Situações políticas não se repetem perfeitamente. O tempo só corre em uma direção. Mas o que quer que aconteça, os ensinamentos dessa grandiosa experiência estarão conosco.

Trinta e um anos depois de seu desaparecimento, a União Soviética continua sendo um farol. Essa expressão nunca foi um exagero. Faróis existem para ajudar aqueles que navegam “o mar agitado da história”, como disse Maiakovski, aliás, cujo sobrenome também se traduz como “farol”. Faróis lembram os navegantes que a terra está lá, dão-lhe sentido das proporções e segurança. E também alertam sobre a fragilidade dos navios que construímos.

Sabemos que o socialismo é possível não porque Marx escreveu sobre ele em livros de filosofia, mas porque um dia existiu um país chamado União Soviética, porque milhões de homens e mulheres começaram a construí-lo e foram tão longe! Mais longe do que jamais fomos! Mas não tão longe. Porque um dia iremos além.