Neste 17 de dezembro, faz 50 anos que cheguei com uma mala e uma mochila ao Chile presidido por Allende após 3 dias de viagem por terra desde Porto Alegre. Tinha então 19 anos e todos os sonhos de participar de um grande processo social. Mal sabia com o que me ia deparar. Os que me conhecem já leram ou ouviram minhas afirmações de que os dez meses que passei no país até o tenebroso golpe de Pinochet me proporcionaram lições políticas que nunca esqueci.
É claro que a história não se repete. Cada grande processo histórico é único, tem suas particularidades ligadas à realidade nacional, continental e mundial. O mundo não é o mesmo dos anos 1970. Mas, então, para que servem as lições da história? A resposta mais simples é que, assim como em outros campos da ciência, elas servem para nos dar parâmetros para compreender as novas realidades, que não são um espelho do passado, e que não dispensam a “análise concreta da situação concreta”. A história não se repete mecanicamente, mas ensina e quem ignora as lições do passado pode terminar cometendo erros análogos.
Em que se parecem a experiência da Unidade Popular chilena e o processo que estamos à beira de começar, com o novo governo Lula?
Fundamentalmente, que ambos têm um norte comum: a confiança em alianças com setores dissidentes da classe dominante e um programa político adaptado a esta escolha. Não é necessário dizer que isso não significa que seu destino seja necessariamente o mesmo. Muitas coalizões desse tipo na história terminaram sem o elemento trágico da experiência chilena, mas com duras derrotas políticas. Aliás, o anterior ciclo de governos petistas terminou com um golpe parlamentar. A única experiência com resultado distinto em um século de experiências de governos de colaboração de classes foi a da Rússia de 1917. A diferença residiu na existência do partido de Lenin, uma organização com tradição e forte implantação entre os operários das grandes cidades e que teve uma atitude de oposição clara frente ao governo de colaboração de classes com mencheviques e socialistas-revolucionários. Quando o governo de Kerensky foi ameaçado, em setembro de 1917, por um golpe militar liderado pelo general Kornilov, o partido de Lenin esteve na linha de frente no enfrentamento decidido ao golpe. Como Lenin explicou durante a resistência ao golpe, nem mesmo neste momento deram apoio político a Kerensky.
Claro, no Brasil não há um processo revolucionário, aliás, nem processos avançados de levantes sociais como no Chile de 2019. No entanto, olhar para além da Cordilheira dos Andes permite vislumbrar os resultados da política de conciliação do governo Boric com o grande capital. Abstraindo-se as outras diferenças com o processo atual brasileiro, o governo antecessor a Boric, Sebastian Piñera, era muito de direita e a disputa presidencial foi realizada contra um político da extrema-direita, José Antonio Kast, que foi vencida por Boric por 55 a 44%. Desde o começo de seu governo, Boric deu as costas ao movimento que o tinha elegido, optando por se apoiar em conhecidos personagens da concertación (coalizões que governaram o país durante os anos 1990 e 2000, constituídas entre membros do Partido Socialista e da Democracia Cristã) e por aplicar a política repressiva consagrada pelo estado chileno, mesmo depois do final da ditadura de Pinochet. Mesmo assim, em um sinal dos tempos atuais, a burguesia chilena tem sido implacável. A cada recuo de Boric, exige mais e a pressão é constante para que renegue completamente seu programa. A derrota fragorosa no plebiscito constitucional de 4 de setembro, com o rechaço amplo a um projeto de Constituição que tinha vários pontos muito positivos, foi o resultado dessas escolhas.
Este debate tem uma limitação óbvia: o processo de instalação do governo Lula ainda não foi concluído, não sendo menor o problema da oposição de direita já anunciada a ele, que se manifestou em arruaças como as perpetradas pelos bandos neofascistas em Brasília.
Mas há pistas concretas dadas por Lula e seus indicados sobre a orientação do futuro governo, mais além do que apontam as lições da história. Haddad, o futuro ministro da Fazenda, já se pronunciou pelo cumprimento da responsabilidade fiscal e indicou auxiliares diretos com trajetória no mercado financeiro; o ministro indicado para a Defesa já declarou respeitar a antiguidade das 3 armas e sinalizou o apoio como novos comandantes das 3 armas aos oficiais generais mais veteranos, que permaneceram no mínimo calados durante os 4 anos de desgoverno bolsonarista. São maus sinais e que são contraditórios com o fundamental do programa apresentado por Lula nas eleições.
O PSOL apresentou nas eleições um programa que vai além desses limites e há agora um debate partidário para definir a posição perante o novo governo que terá uma primeira definição exatamente hoje na reunião do seu Diretório Nacional.
É evidente que o PSOL não pode se confundir com a oposição de direita. E neste – e só neste sentido- cabe falar em garantir governabilidade para Lula. Seu direito consagrado pelo voto popular de exercer o governo é inegociável e é correto que o PSOL se oponha nas ruas a isso (buscando um movimento amplo contra a tentativa de impedir o governo de sequer começar a governar). Por isso, uma cerimônia de posse que seja um verdadeiro mar humano é uma resposta necessária. No dia 1º, em Brasília, os movimentos sociais e populares devem levantar bem alto suas bandeiras de luta, que expressam necessidades e esperanças. Além disso, deve-se exigir medidas contra os implicados com os anos de bolsonarismo e para que não se atrevam a tentar paralisar Brasília com ações como as dos últimos dias. Corretamente, há uma unanimidade em relação a isso. Mas é uma definição curta. A definição inicial de independência política avança corretamente, e ela significa que o PSOL não apoiaria politicamente a gestão, mas que estaria disposto a defendê-lo contra os ataques bolsonaristas. O que não é absolutamente a mesma coisa que dar apoio político ao governo, mesmo estando fora de suas instâncias. Entrar no governo significaria uma mudança abrupta da trajetória do PSOL em sua existência. O partido deveria seguir lutando, a partir das ações independentes dos movimentos sociais e das organizações da classe trabalhadora, para que as reivindicações centrais se tornem realidade.
Outra proposta que surgiu seria a de apoiar somente as medidas assim denominadas como “progressivas” dispostas pelo governo, que poderiam contemplar, de certa forma, aspectos reivindicados pelo movimento. Devemos estar alertas porque o próprio caráter do governo, de coalizão com setores importantes da burguesia como Alckmin, limitará ou mesmo impedirá que elas sejam sequer propostas e/ou aplicadas. Mas essas medidas certamente deverão ser analisadas concretamente. Por exemplo, o aumento no salário-mínimo, segundo o que transpirou na imprensa como intenção do novo governo (sem tomar isso como a realidade), será bem pequeno em relação às necessidades urgentes das grandes massas da população que o têm como referência em seus rendimentos. Ao contrário do que dizem vozes importantes no PSOL, não deve haver nenhum compromisso com apoio a meias-medidas como a mencionada. No debate concreto do salário-mínimo, a ideia de uma imensa campanha de massas pela imposição de impostos sobre os super ricos é uma forma de dar outra perspectiva, nas ruas, frente à esperada chantagem de que “não há dinheiro” e que “a responsabilidade fiscal não permite”. Ou seja, a grande burguesia e sua mídia pressionam desde agora o governo a reduzir seu programa e o governo busca pressionar a esquerda a “compreender isso e apoiar os recuos do governo”. É o mecanismo que já se desenha neste interminável processo de transição para o novo governo, o que não é absolutamente uma originalidade brasileira e será uma constante no mandato de Lula. Em governos de colaboração de classes como o que se iniciará em 1º de janeiro, os partidos de governo atuam fortemente sobre os demais partidos próximos no espectro político para que abdiquem de sua independência relativa e sejam cooptados ao governo. Utilizam-se da chantagem política e, se não funcionar, também da distribuição de cargos nos vários escalões. Reduzir o debate sobre o relacionamento do PSOL ao apoio automático a qualquer medida “progressiva” do governo é um erro porque assume um alinhamento antecipado e automático a medidas cujas propostas concretas e alcances reais nem são conhecidas.
Embora a entrada no governo (mesmo que em cargos secundários) seria um comprometimento político muito maior com uma política que não é a do PSOL, a garantia de apoio em casos ainda nem conhecidos é uma sinalização de perda importante da independência e da autonomia na relação com o governo Lula. Votar de forma sistemática em propostas que sejam consideradas como “progressivas” (o que também depende de uma análise concreta), de fato torna o PSOL parte do apoio ao governo. Recordemos que em 1936, quando da grande Frente Popular na França, o PCF não entrou no governo para não se queimar com a radicalização de suas bases, mas teve um papel decisivo na sustentação do governo de Leon Blum.
O PSOL pode e deve lutar junto com as organizações da classe trabalhadora e os movimentos sociais para apresentar outras opções. Se a força da mobilização não conseguir uma abertura mais favorável para aprovar os projetos ou as emendas feitas pelo PSOL aos projetos de iniciativa parlamentar do governo que sejam relativamente progressivos, os parlamentares do PSOL, tendo feito sua ação independente e colada em suas bases sociais, poderão votar criticamente nos projetos do governo frente aos projetos da direita e da extrema-direita, com declarações de voto nesse sentido, método tradicional de diferenciação no meio parlamentar.
Outro argumento mais ideológico nesse sentido é que há uma tradição distinta dentro da esquerda marxista quanto ao apoio crítico a um governo como o de Lula: desde o partido de Lenin com relação ao governo de colaboração de classes na Rússia que foi explicado de forma tão minuciosa por Leon Trotsky em suas obras sobre a revolução russa. Em 1937, Leon Trotsky explicou didaticamente a seus partidários nos EUA que não recomendaria o voto nas propostas do governo da República espanhola, mesmo durante a guerra civil. A falta de referência a essa tradição inclusive em correntes de esquerda com origem no trotskismo só pode ser lamentada. Em termos da referência política criada em toda a existência do PSOL, vai contra toda a sua atuação perante os anteriores governos petistas.
A incerteza se Lula irá começar o governo com medidas de impacto relevantes poderá cobrar um preço amargo se comprovada na realidade. O início de qualquer governo, ainda mais depois dos sombrios anos do bolsonarismo, seria o grande momento para ampliar suas bases de apoio. A ideia da autolimitação de medidas como a revogação em massa dos decretos e determinações do Executivo, se vencedora, seria uma escolha desastrosa. A história brasileira relativamente recente deveria servir para ensinar sobre os efeitos disso. Por exemplo, a aceitação da anistia aos torturadores foi um dos maiores erros da redemocratização. Ao contrário de todos os demais países que passaram por governos do mesmo tipo na América Latina, no Brasil, ninguém foi processado nem muito menos punido pelas atrocidades documentadas. Isso explica em parte como aberrações como Bolsonaro puderam prosperar.
O PSOL depois de muitos anos lançando candidatos desde o primeiro turno, acabou apoiando Lula por entender a polarização eleitoral antecipada no primeiro turno. No entanto, o PSOL seguiu expressando que tinha um programa distinto do da coalizão que elegeu Lula. Por isso, seria um erro grave renunciar a ser totalmente independente do governo de coalizão ampla, cujo símbolo mais importante é o próprio vice Alckmin. Sem deixar por um minuto o combate nas ruas e no Parlamento para evitar que posições “destituintes” impulsionadas pela extrema-direita, mesmo que precoces, progridam.
Mas até para essa luta fundamental é preciso manter independência do governo. Recordo uma cena que talvez tenha selado o destino do governo Allende: em 29 de junho de 1973, houve uma tentativa de golpe frustrada que desencadeou uma imensa mobilização à noite à frente do Palácio La Moneda. Os manifestantes pediam a punição dos golpistas e o fechamento do congresso totalmente tomado pelos partidos favoráveis ao golpe. Allende interrompeu o curso de seu discurso para negar essas reivindicações, como se pode ver parcialmente no famoso documentário La Batalla de Chile. Até hoje penso que o destino poderia ter sido distinto se fossem ouvidas aquelas vozes naquela noite em Santiago.
Enfim, teremos um verão bastante cheio de eventos políticos. E os partidos e correntes de esquerda certamente dedicarão grande espaço ao debate sobre esses temas.
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