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Esquerda deve girar para o trabalho de base

O desafio de enfrentar o bolsonarismo exige unir a classe trabalhadora que se organiza, sindicalmente, com as massas populares mais oprimidas. Essa luta se fará a partir das instituições, governo e Parlamento, mas se decidirá na base da sociedade. Aí o PSOL pode fazer a diferença

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A ambição nunca descansa.
                                                                           A ambição não ouve a razão alheia.
                                                                                             Sabedoria popular portuguesa

O debate mais amargo de 2022, iniciado no Congresso do PSol de 2021, foi sobre a tática eleitoral. Estávamos ou não diante da necessidade de uma só candidatura unificada de todos os partidos de esquerda, através de Lula, para garantir a derrota de Bolsonaro? Finalmente, o PSol, hoje o segundo partido mais influente da esquerda brasileira, defendeu a necessidade da candidatura única, apoiando Lula desde o primeiro turno, apesar da escolha de Alckmin. Ela se apoiava em uma avaliação da relação social e política de forças. Essa decisão não foi fácil, afinal um pouco mais de 40% votaram contra, mas foi lúcida. Foi mais útil para o desafio central colocado, a necessidade de derrotar Bolsonaro, a agitação do PSol na campanha de Lula, do que a propaganda de um programa anticapitalista com candidatura própria.

Agora o PSol estará confrontado com outra decisão difícil. Deve aceitar um convite para integração ao governo Lula? Ou o seu lugar deve ser no fortalecimento do trabalho de base, na primeira linha da luta contra o bolsonarismo, para alimentar a mobilização popular? Como ensina a sabedoria popular, não se pode bater o escanteio e cabecear a bola. Uma escolha sobre o papel a ser ocupado é incontornável. Aonde o PSol pode fazer a diferença?

A vitória eleitoral foi gigante, mas o perigo fascista continua, infelizmente, presente, como confirmamos nos bloqueios de estradas e nas concentrações nas portas dos quartéis. Enganam-se aqueles que pensam que a extrema-direita vai se acomodar como um partido eleitoral. Não foi o que aconteceu nas últimas três semanas. Ao contrário, o bolsonarismo vai continuar com um pé na institucionalidade e outro no golpismo. A fascistização será alimentada por Bolsonaro, que não se deu por vencido, insistirá na radicalização extremista, e pretende voltar ao poder.

A decisão sobre o papel do PSol precisa repousar em uma apreciação da conjuntura que considere qual será a natureza do governo de coalizão, mas, também, do papel dos neofascistas. O bolsonarismo perdeu as eleições, mas permanece uma força social e política poderosa.

Vários critérios devem ser considerados na avaliação da relação de forças. Sem esquecer que a implantação do PSol ainda é limitada. Qual o lugar em que o PSol será mais útil? A partir de qual localização poderá ser um ponto de apoio para as reivindicações populares, e a mobilização social? Já estará diante do desafio de uma maior responsabilidade na intervenção parlamentar. Não pode descuidar da presença na base dos movimentos. Se os militantes mais experientes se deslocarem para as exigências dos mandatos e, ainda por cima, assumirem cargos de gestão no governo nacional ou nos estaduais, uma dinâmica de institucionalização dos quadros será inevitável. Excesso de ambição alimenta cegueira.

O tema tem consequências estratégicas. Se o PSol tivesse subestimado a força política e eleitoral do bolsonarismo, como outros fizeram na esquerda radical, ao ponto de lançar uma candidatura própria no primeiro turno, teria sido um erro grave. A vitória de Lula não dependeu, evidentemente, do apoio do PSol desde o primeiro turno. Mas a eleição dos deputados do PSol dependeu da relação de confiança que se estabeleceu com a parcela mais politizada da classe trabalhadora e da juventude que apoiou Lula. Claro que contrafactuais, mesmo quando são feitos com parâmetros equilibrados, são somente um exercício de imaginação.

Mas este debate existiu, porque a esquerda radical brasileira, em suas variadas componentes, é muito mais ampla do que a militância orgânica do PSol. Ela se expressa através dos ativistas nos sindicatos, no movimento estudantil, nos movimentos contra as opressões de mulheres, negros e LGBT’s, nas articulações ambientalistas e de direitos humanos e, claro, na importância da intelectualidade acadêmica, da comunicação, da cultura e das artes.

Uma imensa maioria da militância não teve dúvidas: compreendeu o perigo que Bolsonaro representava. Ainda assim, uma parte minoritária, porém, combativa se inclinou para a defesa de que o PSol levantasse um candidato próprio, porque apostava que a vitória de Lula seria mais que provável. Estavam errados. A eleição foi dificílima, e a vitória só veio no segundo turno, e por margem estreita: dois milhões de votos. Ainda que sempre haja, nas eleições, uma distorção que diminui a expressão da vontade popular, a verdade é que, entre os trabalhadores assalariados que ganham acima de dois salários mínimos, empatamos ou perdemos.

A experiência da luta política-eleitoral já tinha provado, por exemplo, em 2018, que não seria fácil. A candidatura Boulos foi um ponto de apoio para enfrentar Bolsonaro, não um obstáculo para que Haddad chegasse ao 2º turno. Ainda assim, perdemos e por grande diferença, em especial, na base social histórica da esquerda, a parcela dos trabalhadores com contrato no setor privado, e entre o funcionalismo público. O desafio de enfrentar o bolsonarismo exige unir a classe trabalhadora que se organiza, sindicalmente, com as massas populares mais oprimidas. Essa luta se fará a partir das instituições, governo e Parlamento, mas se decidirá na base da sociedade. Aí o Psol pode fazer a diferença.

A disputa já está colocada. A pressão burguesa pela responsabilidade fiscal depois de três anos de furo do teto de gastos é esdrúxula. A constitucionalização do ajuste fiscal no governo Temer com o “Teto de Gastos” foi uma medida preventiva drástica insustentável para “inglês ver”. A contenção do orçamento na PEC de transição é uma tentativa de tutela dos capitalistas sobre o governo Lula. A nota dos comandantes militares foi abuso de poder, e não adianta fingir que não aconteceu. A ala armada do partido bolsonarista está intacta. A preservação de Lira na presidência da Câmara sem luta seria uma concessão indesculpável. A luta por um governo de “maioria” no Congresso Nacional é uma “rendição”, por antecipação. A disputa pela desbolsonarização do Estado é inelutável. Bolsonaro julgado e preso é difícil, mas possível.

O PSol tem um projeto político diferente do PT. O PT é o partido com maior influência entre os trabalhadores, e Lula a maior liderança popular do Brasil, mas seu programa é a regulação do capitalismo através de reformas. O Psol é um partido anticapitalista. O PSol não participou dos governos do PT entre 2004/16. Mas o PSol nunca foi, tampouco, um obstáculo para o PT pudesse chegar ao governo. Mais importante até, o Psol se colocou do lado do PT na defesa da legitimidade do mandato de Dilma quando a armação do golpe saiu do terreno da agitação para a ação contrarrevolucionária nas ruas. Há uma dialética inteligente em lutar pela construção de um partido socialista que vai além dos limites do PT e, ao mesmo tempo, lutar ao lado do PT e do governo Lula contra Bolsonaro.

A ideia de que deve existir um só partido de esquerda parece atraente, mas não é progressiva. No século XXI é errada, porque impede que apresentem, publicamente, as diferenças entre a esquerda moderada e a anticapitalista. No tempo histórico do século XIX, no alvorecer do movimento socialista, ela foi progressiva. Mas não se passaram cento e cinquenta anos, desde a fundação do partido socialista alemão, a primeira organização independente de classe que adotou um vocabulário marxista, em vão.

A representação política dos interesses dos trabalhadores não pode ser feita por um só partido, como ficou evidente no século XX. Só em nível de abstração muito elevado é que faz sentido reconhecermos a existência de um “grande partido do trabalho” que se expressa através de diferentes frações públicas, das mais moderadas às mais radicais. Mas, sem mediações, ela é perigosa. Porque só seria possível silenciando as posições minoritárias, que tendem a ser as mais revolucionárias nas condições atuais.

Uma esquerda socialista para o século XXI deve lutar por um programa anticapitalista. Quem considera que essa luta passa pelo PT, e há marxistas sérios nesse partido que lutam de forma honrada pelo programa do socialismo, tem o nosso respeito. Mas nós apostamos que o projeto do PSol, com todos os riscos que existem, é mais animador.