O movimento de ocupação de escolas e faculdades dos últimos dias foi o acontecimento mais importante da luta de classes no nosso país, pelo menos, nos últimos meses. Uma lufada de ar fresco num momento de seca política e climática. As notas que aqui deixo nascem do entusiasmo que me transmitiu, mais do que da pretensão de dar lições a seja quem for. Pelo contrário: lições deram-me as estudantes e limito-me aqui a rever a matéria dada. Como humilde militante climático de base, deixo este contributo para o debate.
Muito mais que radicais
Este movimento foi radical. Escolas foram ocupadas, estudantes colaram-se, literalmente, a elas, resistiram à polícia, encurralaram um ministro, protagonizaram uma manifestação. Mais radical que isso: levantaram-se reivindicações conscientemente anticapitalistas ― ainda que fazendo a ponte, e isto é essencial, com a consciência política média dos seus pares, pais e da sociedade ― e apontaram-se baterias ao governo.
Não foi só radical. Porque não foi a radicalidade que distinguiu este movimento de outras ações climáticas que vimos em Portugal e no mundo, em regra tão ou mais «radicais» que esta (pelo menos na aparência). Fez-se política. Levantaram-se reivindicações, encetaram-se negociações, isolaram-se os adversários, estabeleceram-se alianças. Não se decretou que era necessário o fim do sistema. Antes, acumularam-se forças, enfrentando as contradições do sistema, abrindo brechas em diálogo com a opinião de quem estuda e trabalha e tem, cada vez mais, perceção (ainda que confusa) da crise que vivemos. E isso é política: é disputa de consciências, não a mera declaração de necessidades. Foi essa a diferença.
De dentro para fora
Sobretudo, o movimento teve como protagonistas centenas de jovens que se organizaram de dentro para fora: com base nos seus lugares de estudo, tendo em conta as necessidades climáticas globais, mas também as preocupações e necessidades da comunidade estudantil. Eram, ainda assim, uma minoria dos estudantes, mesmo nas escolas onde o movimento foi mais forte. Mas eram uma minoria ampla, que não hostilizou nem foi hostilizada pelos seus pares. Organizaram os mais conscientes, geraram simpatia na maioria dos restantes, obtiveram (e procuraram) o apoio dos professores, deixando pouca margem para os refratários. Foi o movimento de uma minoria, mas não foi marginal. Agiu como parte de uma comunidade e, com base nisso, disputou consciências bem para além dos muros da escola. A iniciativa partiu de uma pequena minoria ativista, mas alagou-se, apoiada na e em continuidade com a experiência recente das grandes manifestações e greves estudantis pré-pandemia despoletadas por Greta Thunberg.
Por isso, o diretor da FLUL, que enfrentou diretamente os estudantes, saiu enfraquecido e isolado, conferindo uma vitória moral ao movimento. Já o ministro Costa e Silva, de quem foi pedida a demissão (e, vindo ele da indústria petrolífera, talvez consciente de que pode ser a sua cabeça e os interesses que representa as próximas vítimas), cedeu em ouvir os estudantes. Até aqui, o governo nunca havia sido obrigado a dar esse passo face ao movimento climático. Sem ilusões do que possa sair de tal diálogo, o movimento faz bem em encetá-lo, pois reforça o seu papel protagonista e confere legitimidade política e moral às suas reivindicações ― não em si mesmas, pois elas estão legitimadas pela ciência, mas aos olhos de milhares de pessoas, isto é, politicamente.
A linha Greta e a linha Malm[1]
O Governo foi obrigado a admitir: o movimento climático existe e tem força. Foi o radicalismo que o conseguiu? Sem dúvida. Mas se fosse só isso, estas vitórias já teriam sido alcançadas antes. Porque, como já se disse, ações bem mais radicais já haviam sido encetadas. As ocupações foram vitoriosas porque se distinguiram, sobretudo, por terem arriscado o mais difícil: fazer disputa política de ampla escala. De dentro para fora, superando o voluntarismo vanguardista que supõe poder «escalar» a luta sem ter em conta as condições políticas concretas, a história e características do movimento, a consciência média dos milhares que não são ativistas, mas que podem ser ganhos para a causa. Por isso, não foram estanhos, não apareceram como hostis, perante os seus pares e a sociedade. Não se isolaram, antes isolaram os adversários. Brincando, podemos dizer que a linha Greta mostrou-se mais eficaz do que a linha Malm.
No fundo, retomou-se a experiência de outras ações bens sucedidas e vitoriosas. Já foi citado o exemplo das greves climáticas de 2019. Mas, na mesma linha e fora do âmbito estudantil, vemos nas ocupas traços semelhantes à bem-sucedida luta contra a exploração de gás na Bajouca, no centro do país. Também aqui, em 2019, teve lugar uma ação direta ― a ocupação de um terreno onde se preparava a exploração de gás fóssil ― que obteve uma grande vitória política: o fim dos contratos para a exploração de gás em todo o país. (Cito apenas essa ação, mais radicalizada, mas ela deu-se no contexto de uma luta mais ampla, com moldes semelhantes, contra diversas concessões para a exploração de gás, nomeadamente no Sul do país.) Também na Bajouca se trabalhou com a comunidade local, com as suas associações e representantes e se ligou a luta climática geral às preocupações específicas dos locais. Também aí a «ação direta», radical, se organizou de dentro para fora, como momento da disputa política ― e não como substituta dela.
As lições das ocupas são, assim, essenciais para pensar o alargamento da luta climática. Sobretudo, para avançar no desafio enorme, mas essencial, de fundir a luta climática com o protagonista social das grandes mudanças sistémicas exigidas pela luta que vivemos: aquelas e aqueles que tudo produzem, a classe trabalhadora. Se, ensinados pelas ocupas, também aqui virarmos a página do voluntarismo vanguardista e, sem excluir nenhuma tática, abraçarmos a estratégia da disputa política de larga escala, de dentro para fora, iremos vencer.
Sim, camaradas, a luta continua.
[1] Greta Thunberg é a conhecida jovem sueca que iniciou o movimento global de greves estudantis pelo clima e se tornou uma porta voz incontornável desta luta, enfrentando e desmascarando a inação dos governos e a voracidade dos grandes interesses da indústria fóssil. Andreas Malm, também sueco, é um investigador de ecologia humana e ativista climático. Um dos seus livros mais recentes, How to blow up a pipeline, que teve grande impacto em parte dos ativistas, critica de forma certeira a estratégia de resistência passiva, substituindo-a, no entanto, por uma nova panaceia: as ações diretas «disruptivas» de bloqueio e/ou sabotagem, nomeadamente a infraestruturas fósseis, por parte de uma minoria ativista que «escalava» o confronto independentemente do movimento popular e do contexto político.Naturalmente, o seu pensamento é mais complexo e matizado do que o que aqui se resume, mas essas foram as conclusões que em muitos casos resultaram do seu livro.
Originalmente publicado no portal de Semear o Futuro, de Portugal
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