Já existem elementos suficientes para afirmar que um hipotético segundo mandato de Bolsonaro não será a mera repetição ou continuação do primeiro. Se fosse apenas isso, já seria péssimo. Mas tudo indica que pode ser muito pior. Apesar de toda a destruição promovida ao longo desses últimos quatro anos, é necessário admitir que várias medidas pretendidas por Bolsonaro não puderam ser aplicadas porque esbarraram em algum tipo de barreira institucional que o atual presidente não conseguiu superar. Foi assim no caso da pandemia, quando o STF garantiu a autonomia de prefeitos e governadores na gestão da crise provocada pelo novo coronavirus, medida essa que impediu que o estrago causado fosse ainda maior. Ou quando o mesmo STF iniciou investigações, anulou atos ou determinou medidas que iam de encontro aos interesses do governo. Ou quando a ANVISA aprovou o uso de vacinas, mesmo contra a vontade de Bolsonaro. O mesmo ocorreu no congresso. A despeito do acordo com o centrão e de decisivas vitórias na Câmara de Deputados e Senado, o bolsonarismo não conseguiu passar uma série de leis que seriam do interesse de Bolsonaro, como o voto impresso, o distritão e muitas outras. Até agora, propostas como a privatização da Petrobrás e do Banco do Brasil permanecem estagnadas no congresso. Em geral, pode-se afirmar que Bolsonaro controla o governo e o parlamento, mas não o regime como um todo porque ainda existem muitas instituições fundamentais que permanecem autônomas e ainda funcionam segundo uma lógica republicana.
Mas as coisas tendem a ser diferentes caso Bolsonaro venha a conquistar um segundo mandato. E o modelo que ele (junto com toda a extrema-direita mundial) busca aplicar é o da Hungria. O que aconteceu nesse país?
O que é a Hungria e quem é Viktor Orbán?
A Hungria é um pequeno país, de cerca de 10 milhões de habitantes, sem saída para o mar, localizado no coração da Europa Oriental e com uma importância geopolítica muito maior do que aquela determinada unicamente por sua população e economia. Libertada da ocupação nazista pelo Exército Vermelho ao final da Segunda Guerra Mundial, a Hungria passou a compor o bloco pró-soviético materializado no Pacto de Varsóvia. A relação com a União Soviética, sempre foi conflituosa, o que se expressou no importante levante democrático de 1956, esmagado por tanques soviéticos que adentraram Budapeste e sufocaram as mobilizações. Com a dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991, a Hungria entrou para a órbita das grandes potências europeias, ingressando na OTAN em 1999 e na União Europeia em 2004.
Viktor Mihály Orbán (1963), é um político de extrema-direita oriundo da velha estrutura da Juventude Comunista Húngara e que se tornou primeiro-ministro da Hungria pela primeira vez em 1998. O caminho seguido por Orbán foi do comunismo para o liberalismo, deste para o conservadorismo e deste para a extrema-direita. Seu primeiro mandato foi marcado pela aproximação com as estruturas liberais europeias, como a UE e a OTAN. Em 2010, Orbán voltou ao poder e é aí que as coisas começam a ficar interessantes e também preocupantes. Viktor Orbán venceu todas as eleições gerais desde então (2010, 2014, 2018 e 2022), sendo o líder da União Europeia que há mais tempo se encontra no poder. Do ponto de vista político e ideológico, seus governos foram marcados por intensos ataques à comunidade LGBTQIA+ e imigrantes, considerados por Orbán como a raiz de todos os males enfrentados pela Hungria. Mas isso não é o que diferencia Orbán de outros líderes de extrema-direita. O mais importante é o que Orbán fez do ponto de vista do regime político do país e que permitiu a ele permanecer no poder até hoje.
Desde que assumiu o cargo, além do discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+ e imigrantes, destacados como os inimigos internos centrais (o que tem lhe garantido importante apoio popular entre uma população aterrorizada por fake news e campanhas permanentes de desinformação), Orbán realizou uma série de reformas que podem servir de modelo para Bolsonaro.
Uma vez conquistada uma maioria parlamentar sólida para seu partido de extrema-direita Fidesz, Orbán se concentrou no poder judiciário. A nova constituição do país, promulgada em 2011, reduziu de 70 para 62 anos a idade da aposentadoria compulsória para juízes, além de transmitir a função de nomeação de novos juízes para um órgão do Poder Executivo, o Departamento Judiciário Nacional. Esse órgão, além de nomear juízes, distribui os processos entre os magistrados disponíveis, garantindo assim ao Executivo o controle absoluto sobre todo e qualquer processo político, civil ou criminal no país.
Além disso (e provavelmente o mais importante), Orbán aumentou de 11 para 15 o número de juízes da Suprema Corte, o que lhe permitiu nomear a maioria de seus membros e lhe garantiu controle total sobre o Judiciário. Com o Judiciário sob seu comando, Orbán passou ao ataque em outros terrenos. Alterou as fronteiras dos distritos eleitorais, de tal maneira que seu partido, mesmo que não conquiste a maioria do voto popular, pode vencer as eleições. Na educação, fez aprovar uma lei que passou a administração das universidades públicas para organizações sociais privadas, todas elas ligadas a seu partido, o que acabou de fato com a autonomia universitária e a liberdade de cátedra em 11 das 16 universdidades públicas do país.
No terreno da liberdade de imprensa, criou a Autoridade Nacional de Mídia e Infocomunicação, responsável pela liberação ou cassação de concessões públicas de rádio e TV, o que colocou quase 90% da mídia do país sob controle direto do governo.
Em uma palavra, Orbán instalou uma ditadura sem a necessidade de um golpe violento, com tanques ou soldados nas ruas. Tudo passou por reformas do próprio sistema.
O Brasil sob um segundo governo Bolsonaro
Apesar da complexidade do Brasil, deve-se admitir que Bolsonaro, caso vença, se encontrará em uma situação altamente favorável para aplicar algo por esse estilo.
Bolsonaro elegeu uma maioria na Câmara dos Deputados que, a depender do comportamento de alguns partidos, pode lhe garantir maioria absoluta (3/5), o suficiente para mudanças constitucionais. O mesmo ocorre no Senado, com 17 dos 27 novos senadores sendo ligados ao bolsonarismo.
No âmbito do Poder Judicário, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski se aposentam em 2023, o que já somaria 4 indicações de ministros do Supremo para Bolsonaro (lembremos as indicações de Nunes Marques e André Mendonça). Como se isso não bastasse, na última semana, em mais de uma oportunidade, Bolsonaro e sua tropa de choque passaram a ameaçar o país com o aumento do número de juízes do STF de 11 para 16, medida que só encontra paralelo no Ato Institucional Nº 2, decretado pela ditadura militar em 1965.
Por fim, Bolsonaro elegeu inúmeros governadores próximos e certamente elegerá outros neste segundo turno. Soma-se a isso a montanha de prefeitos bolsonaristas eleitos em 2020 e que permanecerão em seus cargos até 2024.
Ou seja, caso vença o segundo turno, Bolsonaro pode se encontrar em uma situação que incluiria, mas não se resumiria a: 1) controle do Poder Executivo e todo o aparato de Estado, incluindo a Polícia Federal e as Forças Armadas; 2) controle do Congresso Nacional, com probabilidade de maioria constitucional; 3) Controle do Poder Judicário; 4) maioria entre governadores e prefeitos; 5) retomada do crescimento econômico, diminuição da inflação e do desemprego; 6) pânico moral entre a população; 7) fortalecimento do discurso do “inimigo interno”, materializado no PT e na esquerda, na população LGBTQIA+ e nos pobres e oprimidos em geral; 8) controle bolsonarista sobre as Polícias Militares nos estados; 9) apoio entre o agronegócio, o mercado financeiro e a maioria da burguesia nacional; 10) apoio entre a classe média; 11) armamento de milícias ilegais, “clubes de tiro” e “colecionadores”.
Quais seriam os alvos de Bolsonaro? Estes incluiriam, mas não se resumiriam a: 1) universidades públicas e o sistema educacional como um todo (fim da autonomia universitária, fim da liberdade de cátedra, retomada do projeto “Escola sem Partido”, precarização do trabalho docente, fim da política de cotas, fim do ENEM e do SISU, militarização das escolas); 2) imprensa; 3) instituições de Estado que ainda mantém autonomia em relação às nomeações políticas (agências e institutos científicos e de regulação); 4) meio ambiente, com desregulamentação total de toda a legislação protetora; 5) povos originários e tradicionais; 6) a esquerda; direitos trabalhistas e funcionalismo público; 7) SUS e direitos reprodutivos; 8) direitos da infância (maioridade penal).
Além disso, Bolsonaro promoveria cada vez mais a fusão entre o Estado e as igrejas neopentecostais, tranformando o Brasil em uma teocracia de fato, com perseguição mais ou menos aberta contra as religiões de matriz africana e mesmo contra o catolicismo progressista.
Bolsonaro promoveria a privatização do Estado em um sentido qualitativamente distinto daquele pensado pelo neoliberalismo tradicional, com apropriação direta da riqueza nacional por seu clã de apoiadores, rumo à construção de uma nova classe social dominante que lhe seja totalmente fiel (vide Rússia e os novos oligarcas criados por Putin).
De uma maneira geral, o que nos aguarda caso Bolsonaro vença é um retrocesso ou destruição civilizacional, a falência completa do Brasil como nação e sua transformação em uma república pessoal bárbara e medieval com valores pré-iluministas, dirigida por uma elite canalha e ignorante.
Como resultado, uma geração inteira de ativistas, de artistas progressistas, de cientistas sérios, de pessoas oriundas da pobreza que conquistaram um título universitário se desmoralizaria e se perderia para sempre como força política e social. O país adentraria em um longo e profundo período de decadência, que ameaçaria a própria civilização e a cultura. O Brasil como o conhecemos deixaria de existir e ninguém sabe o que surgiria em seu lugar. De um governo passageiro, o bolsonarismo se transformaria em um tipo de regime, com profunda penetração nas instituições de Estado. O fascismo criaria raízes estatais, legais, políticas, sociais e econômicas que o transformariam em um movimento social com um poder muito superior ao que vemos hoje.
É isso que está em jogo. E para tanto, não serão necessários tanques e soldados nas ruas. Basta que Bolsonaro vença este segundo turno.
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