Em um momento tão saturado de opiniões, críticas e análises deste cenário político pós-eleições, resgatar uma antiga elaboração que me pareceu frutífera, a marcação do antropólogo Sylvain Lazarus, que constrói sua tese antropológica em torno do seguinte axioma: “As pessoas pensam”. O que Lazarus faz ao centralizar esse ponto é prover dignidade ao pensamento das pessoas, criticando a presunção automática destes que se posicionam pensando pelos outros e se declarando sobre os outros, um antídoto pertinente contra a soberba daquelas análises apressadas, cheias de máximas heterogêneas que buscam as mais estapafúrdias justificativas para explicar o que se viu no último domingo nas eleições. Essa soberba é usual em muitos acadêmicos, influencers e analistas, que tranquilamente colocam-se em condições de dizerem pela coletividade, que de maneira sossegada assumem que as pessoas não são capazes de pensar por elas mesmas, gerando análises vergonhosas que acabam expondo mais de suas próprias falências e fragilidades do que algum pensamento genuinamente interessante à situação em questão.
Os resultados de domingo vinham se anunciando há algum tempo, mas poucos foram capazes de notar. O que as eleições de domingo mostraram é que não estamos mais lidando com o Brasil que uma parcela significativa da esquerda desavisada segue enxergando por aí em suas análises, trata-se sim, de um outro Brasil. E quanto antes encararmos isso, antes encontraremos melhores condições de enxergarmos verdadeiras alternativas aos impasses postos no cenário político. Isso quer dizer que não se deve celebrar as conquistas de lideranças importantes em relação à luta? Não. No entanto, se satisfazer com a ínfima vitória eleitoral na festa da democracia burguesa é um equívoco estratégico formidável. Por quê? Basicamente porque “as pessoas pensam” e a ladainha narrativa otimista não engaja as pessoas a se mobilizarem, não subjetiviza as pessoas a se radicalizarem, muito pelo contrário, produz lodo ideológico de imobilismo às pessoas. Lamento pelos esperançosos de plantão e pelos caçadores do “copo meio cheio”, mas torcer a realidade em narrativas foi um dos pontos centrais da esquerda que abriu mão da materialidade de suas pautas e então, se viu no atoleiro da derrota em que está hoje, persistir nisso, não pode ser a solução. Um tanto como a piada que Žižek conta, aos esperançosos com a luz no final do túnel, lembrem-se, pode muito bem ser um trem vindo diretamente em sua direção…
Isso significa que devemos então pular para o lado do derrotismo, para o lado do “copo meio vazio”? Novamente, “as pessoas pensam”. Persistir no binarismo tacanho é infantilizar as pessoas em relação ao que estão testemunhando socialmente e politicamente. As últimas eleições demonstraram um movimento de consolidação e crescimento do bolsonarismo de maneira expressiva com anuência democrática de uma parcela significativa da população, especialmente, quando comparado às eleições anteriores. Faz mesmo sentido ignorar isso? Olhar para isso é admissão de um pessimismo? Saber contar que uma bancada aumentou em relação a outra é mesmo uma questão de pessimismo? Entender que para um Boulos, há 3 deputados do PL com votação expressiva logo atrás? Isso é pessimismo ou é contar os resultados? Parece presumir muito pouco das pessoas e de suas condições de pensabilidade, persistir numa narrativa que precisa desvirtuar o cenário posto para encampar as emoções, os corações. O que os resultados das urnas demonstraram, me remeteram a Paulo Arantes, que em uma ‘live’ (prévia às eleições) enuncia o epitáfio da esquerda atual, que cai vítima da desmoralização que ela mesma produziu para si, essa esquerda que “não conhece esse povão” e que, justamente por isso, não tem absolutamente nada a dizer para essas pessoas. Ou então, não se tem o que dizer para essas pessoas, por não se permitir nem mesmo escutá-las. Há um ponto ético importante aí, o filósofo Badiou comenta que se precisamos transformar o outro em algo mais parecido conosco para então aceitá-lo, obviamente, não estamos aceitando a alteridade em sua radicalidade. Tanto persistir na não escuta ativa de uma camada significativa da população, camada massiva e crescente dos últimos anos, quanto esperar transformá-la em outra coisa, para aí então lhe prover dignidade, além de serem táticas morais e não éticas, parecem descolar-se das pessoas que hoje estão decidindo as eleições. Há uma vasta parte da população brasileira evangelizada, empobrecida e organizada sob uma narrativa crescente de país. Será que faz sentido persistir em defender que essas pessoas não pensam?
Essencialmente, há uma outra gramática da realidade que precisa ser escutada e aprendida, antes de se tentar falar. Levar a sério o fato de que “as pessoas pensam” é precisamente conseguir escutar que há uma camada população que optou democraticamente pela guinada à extrema direita (salvo a pequena burguesia conservadora) e o fizeram em nome de uma insatisfação e vontade por transformação, em grande parte, por consequência das negligências, inabilidades da própria “esquerda” que pouquíssimo transformou estruturalmente quando estava no poder. Quem sabe isso explique porque movimentos sociais por moradia da atualidade (que são essencialmente reformistas em sua natureza), em suas décadas de trabalhos, construíram algo raro no nosso cenário anêmico de criatividade política, ao privilegiarem radicalmente o fato de que “as pessoas pensam”, conseguiram de maneira inédita estabelecer um engajamento de diálogo íntimo entre as perspectivas neopentecostais das pessoas e a importância da mudança por meio da luta, sustentando uma crítica em gesto à propriedade privada enquanto causa comum que nos toca a todos. E assim, colocando em circulação formas concretas em nome de outra sociedade.
Finalmente, será apenas arriscando o impossível que sairemos do lamaçal ideológico que estamos postos. O próximo mês será populado por discursos e propostas com apelos aos afetos e aos sentimentos das pessoas, mas será que é mergulhando fundo neste mesmo pântano que sairemos dele? Será afundando às tampas nas irrigações pequeno burguesas, nas narrativas emotivas, na persistência por posturas individualizante, empreendedorismo de si mesmo ou de culto à imagem ao líder, que encontraremos uma corda para sairmos disso? Me parece que foi sem escutar as pessoas que se afundou mais e mais em tudo isso… e uma corda que escape a esse lodo, me parece estar em arriscar juntar os trapos para inventarmos uma corda, arriscando consolidar tensões em nome do que é hoje impossível à nossa imaginação política, é atrever-se dar um passo além, um passo não eleitoreiro, mas sim, um passo que nutra tanto o “estômago quanto a imaginação” (1) das pessoas, um passo que só pode ser escutado, antes de ser dado, não persistindo de maneira heterogênea, de fora para dentro em mais outro blá-blá-blá, e sim, de maneira homogênea à gramática que compõe simbolicamente a realidade material das pessoas. Em suma, será apenas com propostas concretas para as “pessoas que pensam”, que algo para além do resultado das eleições poderá ser inventado. Lembrando que não se trata de limitar a escuta a um culto ao povo como razão máxima, única e absoluta nas elaborações de pautas políticas, ou então, não se trata de fazer populismo, mas sim, trata-se da finura de prover escuta ao que segue não sendo escutado, ao que segue não sendo reconhecido, aos não pertencentes e àquilo que conduz à falsas elaborações do pensamento (lembrando que isso cabe para todos nós, pois todos estamos sujeitos a isso…). Ou então, escutar viabilizando reconhecimento é permitir empoderamento pelo pertencimento comum à realidade, compreendendo que as causas materiais e objetivas postas pelas pessoas em seu sofrimento requerem uma dialetização em suas traduções subjetivas, e isso é algo que a guinada à extrema direita encampou diante dessas intempéries e algo que se perdeu de vista nas discussões da esquerda dos últimos tempos.
* Rodrigo Gonsalves é psicanalista, doutor em Filosofia pela European Graduate School (EGS/Suíça), doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (IPUSP), membro do Latesfip (USP), membro do Gpol/Laboratório de Psicanálise e Sociedade (IPUSP), membro do Centro de Formação e editor-membro da Editora Lavra Palavra.
Notas
1 Agradeço este ponto ao Felipe Demier e pela conversa na elaboração deste texto.
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