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Colunas

Um diálogo com a enfermagem brasileira: é possível querer o piso salarial e votar em Bolsonaro ao mesmo tempo?

Scarlett Rocha

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Somos a maior categoria da saúde brasileira e materializamos um importantíssimo avanço de consciência na luta unificada que ganhou as redes, as galerias do Congresso Nacional e, principalmente e com muita força, as ruas, reunindo estudantes técnicos e de graduação, técnicas e auxiliares de enfermagem, parteiras e enfermeiras.

O “quase” revolta a todas nós, enfermagem brasileira. Ter conquistado a aprovação do PL nº 2.564/2020 nas duas casas do Congresso, pressionado pela sanção presidencial, e começado a fazer frente contra os patrões que se recusavam a adequar o pagamento à nova lei nº 14.434/2022 deixou nossa categoria indignada ao se deparar com a suspensão do piso salarial pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Desde então, é frequente ouvir em qualquer espaço onde colegas estão reunidos uma variedade de posicionamentos que revelam equívocos com potencial para atrapalhar substancialmente o progresso da conquista de um dos nossos direitos mais importantes. Desde notícias falsas, como “o PT fez o STF suspender o piso da enfermagem”, até subterfúgios que tentam isolar a luta por dignidade salarial da conjuntura política do País, como “não brigamos por política, queremos apenas o piso”, dentre variações destes, são o que expressa que nossas consciência e disposição de luta muito avançaram, mas ainda há muito no que progredir.

Beira o intolerável ver colegas que ainda somam ao saldo eleitoral do responsável direto por 700 mil mortes por COVID19, dentre elas mais de 700 colegas da enfermagem e inúmeros familiares de segmentos da categoria. Contudo, saber que em algum lugar existe outra enfermeira que partilha da consciência sobre a necessidade de combater a barbárie bolsonarista é fortalecedor. Por isso, estudante, colega, técnica/auxiliar de enfermagem e companheiras enfermeiras, é fundamental nossa organização coletiva até dia 30 de outubro, quando o Brasil decidirá em 2° turno entre a democracia e o neofascismo.

Será de todas nós a tarefa de virar os votos daqueles que são frágeis no apoio a Bolsonaro e temem a volta do PT após ser ganhos pela torrente de notícias falsas ou motivados pelo conservadorismo e pelo fundamentalismo religioso, tão presentes na enfermagem. Precisamos concentrar energia naquelas pessoas que se abstém, em quem evita o embate por querer se distanciar da “polarização”, em quem se sensibiliza com o que vivemos no último período, mas é levado, por razões diversas, a se distanciar de um posicionamento contundente contra o bolsonarismo. Um pouco de paciência, frieza, firmeza e força será necessário, com a dose cavalar da coletividade que nos proporcionará renová-las umas nas outras durante este processo. Sei que dialogar com os colegas tem sido difícil, mas é uma necessidade que deverá ser constante e balizada pelo que há de mais importante sobre a pauta:

1. O PISO SALARIAL É SOBRE POLÍTICA:

Projetos de lei que dispõem sobre o piso salarial e as 30 horas da enfermagem estão engavetados nas casas legislativas há décadas, passando por diversos governos, inclusive do PT, sem um olhar sensível. Além de desejo político por parte dos representantes eleitos ao Congresso Nacional e ao Palácio do Planalto, mostrando que quem elegemos é parte importante dessa batalha, durante as últimas décadas a força catalisadora de qualquer conquista dos trabalhadores ainda não havia tomado a proporção dos últimos dois anos para a enfermagem – tomar as ruas e nos posicionar categoricamente pela pauta, em um cenário de protagonismo para a categoria que mais salvou vidas, mas que mais morreu na pandemia, foi o que impulsionou o progresso do PL 2.564/2020. É sobre política!

2. O STF SERVE AOS MESMOS SENHORES QUE BOLSONARO:

É verdade que, atualmente, sete dos 11 ministros do STF foram indicados nos mandatos de Lula e Dilma, do PT; contudo, o partido não é independente nesta escolha, uma vez que cada ministro é sabatinado pelo Senado para que a indicação seja consolidada – o que aponta, novamente, a importância de uma escolha eleitoral acertada. Uma leitura rápida sobre a trajetória dos ministros leva às suas relações com uma linha política contrária aos direitos dos trabalhadores, o que se alia às decisões tomadas nos últimos anos. Não é o objetivo destas linhas a análise da correlação de forças no Congresso Nacional em relação aos presidentes do PT nos anos em que esteve à frente do País, mas vale salientar o peso dessa observação e a crítica às conciliações feitas pelo PT com o liberalismo brasileiro, cujo resultado foi, inclusive, o golpe institucional contra Dilma Rousseff, “com o supremo, com tudo”.

A conivência do STF diante da tragédia política que representou o impeachment de Dilma e a omissão sobre o retrocesso nos direitos da classe trabalhadora – Emenda Constitucional 95 (EC 95), reforma trabalhista, reforma da previdência – evidencia o alinhamento da instituição àqueles que detém a máquina de lucros que se fortalece com a precarização das condições de vida das trabalhadoras brasileiras; a mesma máquina que apoiou Bolsonaro e acrescentou bilionários à lista da Forbes, incluindo empresários da saúde que enriqueceram enquanto a enfermagem morria sem proteção na linha de frente do combate à COVID19.

Independente do PT e coadunando com as escolhas de Bolsonaro – que aprofundou as contrarreformas oriundas do golpe de 2016 -, por ser um instrumento daqueles que lucram com a morte e a miséria, o STF tem sido legitimador do retrocesso pelo qual passa o País. A mudança deste cenário não passa, contudo, pelo fechamento do STF em uma materialização das aspirações golpistas de Bolsonaro, mas sim pelo fortalecimento da representação das trabalhadoras nas casas legislativas e no poder executivo, o que repercute na garantia institucional de importantes direitos que levam à dignidade da população.

3. BOLSONARO NÃO DEU NADA À ENFERMAGEM:

Durante a fase mais crítica da pandemia, quando estivemos na Praça dos Três Poderes e fomos agredidas por bolsonaristas, o Presidente da República menosprezou o fato e deu razão aos agressores. No dia 5 de agosto de 2021, quando organizamos um ato nacional em Brasília para a aprovação do PL 2.564/2020, uma comissão de colegas buscou diálogo com Bolsonaro, ao que ele respondeu que “não poderia se comprometer com a categoria”. Bolsonaro esteve ao lado da Confederação Nacional de Municípios e dos empresários da saúde, que enviaram cartas ao Senado solicitando a retirada do PL 2.564/2020.

Enquanto a enfermagem perdia centenas por falta da vacina; sobrecarga de trabalho; adoecimento físico e mental; luto pelos familiares mortos, Bolsonaro negociava propina de um dólar por cada dose e recusava e-mails de farmacêuticas para a distribuição de vacina no Brasil. As mortes na enfermagem só diminuíram mediante a ampliação da imunização. Ao passo que nos contaminávamos sem equipamentos de proteção individual, Bolsonaro apostava em medicamentos comprovadamente ineficazes contra a COVID19 e desestimulava o distanciamento social como medida de prevenção. Bolsonaro desdenhou de todas nós da enfermagem brasileira.

A conquista da aprovação do piso salarial não é de mais ninguém além das profissionais que se dispuseram às ruas, mesmo exaustas dos plantões estafantes em unidades de saúde sucateadas ou nos hospitais privados onde não há a dignidade de um espaço de descanso. Foi o protagonismo da enfermagem que impulsionou o poder legislativo ao reconhecimento da necessidade de ofertar dignidade à categoria que se mostrou, definitivamente, como pilar da saúde brasileira. Assim, o senador Fabiano Contarato, do PT, deu os primeiros passos para que o PL 2.564/2020 se tornasse a realidade da dignidade salarial da enfermagem; bem como outros partidos de esquerda, como o PSOL, estiveram na linha de frente na Câmara dos Deputados, batalhando por indenização aos familiares de profissionais mortos pela COVID19, por orçamento suficiente ao SUS para que aportasse as unidades de saúde com EPIs, por vacina no braço e comida no prato para todas as brasileiras. Por outro lado, concordando com o pai e seus aliados, os filhos de Bolsonaro foram contrários ao nosso piso salarial nas casas legislativas e contribuem para a disseminação de notícias falsas sobre o apoio dos partidos de esquerda à enfermagem e sobre a viabilidade financeira do piso salarial – provada nas devidas comissões do Congresso Nacional.

Sancionar o nosso piso salarial não passou de um cálculo eleitoral de Bolsonaro, pois sabe que negar um direito tão essencial à maior categoria da saúde brasileira lhe renderia rechaço e perda de apoio. Não podemos cair na ingenuidade de achar que Bolsonaro, o ministro que indicou ao STF ou seu Procurador Geral são apoiadores da enfermagem; não podemos ceder à armadilha de ignorar a memória. Sabemos bem pelo que passamos em razão das escolhas de Bolsonaro durante a pandemia e não é justo dar a ele nova chance para continuar piorando as condições de vida do povo e, consequentemente, o nosso contexto de vida e trabalho, pois ele já mostrou a que veio.

4. A LUTA DAS TRABALHADORAS NOS PRÓXIMOS ANOS É SOBRE A ENFERMAGEM:

Os apontamentos sobre os retrocessos pelos quais passamos durante o governo Bolsonaro não se eximem da crítica ao que vivemos nos governos anteriores; contudo, vivendo em um cenário de sucessivos recordes de desemprego, com 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar, de falta de perspectivas para a juventude, do menor investimento em ciência e educação da história do País, de tentativas constantes de fatiar os recursos do SUS para a rede privada mesmo quando a saúde pública mostrava ser a única capaz de salvar vidas, de fragilização de programas e políticas de saúde referenciadas internacionalmente, é necessário abrirmos os olhos para o projeto de sociedade que estaremos escolhendo.

Não esperamos que Lula faça um governo perfeito, tampouco consideramos que as gestões anteriores são isentas de problemas; entretanto, prezamos pelas condições democráticas que permitem que façamos a disputa do Brasil que queremos com um governo que, quando viveu a pandemia de H1N1, providenciou o quanto antes os recursos de contenção; que ampliou o acesso às universidades; que aumentou os programas de saúde do SUS, dando autonomia à enfermagem na gestão e execução de suas ações; que tirou o Brasil do mapa da fome.

Bolsonaro mostrou nos últimos 4 anos seu objetivo de aprofundar a perda de direitos das trabalhadoras brasileiras e isso reflete no trabalho da enfermagem quando consultamos pessoas em situação de miséria nas unidades básicas de saúde, quando vemos o aumento da população em situação de rua em nossos territórios, quando vemos nossas pacientes morrerem pela falta de acesso aos tratamentos de câncer, quando fazemos malabarismo para que nossos usuários acessem as medicações que ficam escassas nas farmácias populares pelo corte de investimentos. Aguçar a percepção crítica sobre essa verdadeira catástrofe não é se render à polarização, mas fazer jus à ciência que exercemos como profissão, com respeito à nossa história e à nossa relevância na construção e execução da política pública de saúde. Ainda que a escolha possa parecer amarga, não há base de comparação entre a democracia e um projeto de morte que já rendeu resultados lamentáveis, vistos por cada uma de nós em inúmeras jornadas exaustivas de trabalho.

Só com Lula há possibilidade de batalharmos pela regularização e implantação de nosso piso salarial, assim como há espaço para a contestação dos retrocessos nos direitos da classe trabalhadora brasileira. Com Lula, é possível a exigência da revogação da EC95, para garantir o financiamento adequado às políticas públicas e, assim, a devida estrutura e adequação da demanda de trabalho da enfermagem; da derrubada da reforma trabalhista, a fim de assegurar os direitos das trabalhadoras brasileiras e, portanto, de todas nós, trabalhadoras da enfermagem, além de impactar epidemiologicamente, reduzindo o adoecimento laboral que repercute em nosso serviço como demanda de atendimento; da dissolução da reforma previdenciária, que desrespeita diretamente a enfermagem brasileira por desconsiderar suas especificidades e prevê um aumento colossal do adoecimento das trabalhadoras brasileiras, que permanecerão em atividade laboral em uma idade além daquela compatível com as condições de vida e trabalho, sem aporte de políticas sociais que viabilizem a saúde laborativa. Bolsonaro já afirmou e já demonstrou que seu intento é aprofundar cada um desses retrocessos e impor complementos ainda mais agressivos à vida e à saúde da população e da enfermagem.

Já não é sem tempo pensar e organizar os nossos próximos passos. Precisamos de todas com suas energias voltadas ao diálogo sensível com quem receia abandonar o apoio a Bolsonaro ou tomar lado nessa batalha histórica da nossa geração. Em cada plantão e nas unidades básicas de saúde, nas redes sociais, nos refeitórios, nos meios de transporte, nas banquinhas vira-voto, nas panfletagens, nos grupos de amigos e entre a família que se solidariza com a luta da enfermagem, na unidade às ruas: precisamos da enfermagem brasileira ao lado da democracia e da dignidade de todas as trabalhadoras, ajudando a eleger Lula no segundo turno das eleições mais importantes da história recente do Brasil.