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Os próximos dias

Fernando Frazão/Agência Brasil

Calçadas perto de seções eleitorais no Rio de Janeiro, no 1º turno.

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

A grande burguesia brasileira é a legítima, embora desgostosa, mãe de criação do neofascismo bolsonarista. Sem ela, seu Golpe e seu antipetismo atávico, Bolsonaro jamais teria deixado de ser um mero e ordinário deputado do “Centrão”. Ainda tal qual uma mãe diante de um rebento rebelde, a nossa classe dominante se portou ao longo do governo neofascista muito mais como uma aliada envergonhada do que como uma oposição declarada; “este não é um bom caminho, meu filho, pare com isso, tome jeito”, dizia a mãe, que do filho recebia grosserias, alguns presentes e muito dinheiro. Essa conduta politicamente timorata agora cobra seu preço, e o fracasso vergonhoso de uma terceira via democrático-neoliberal, assim como a derruição do PSDB, são as mais clarividentes expressões desse débito em conta na representação política burguesa. A “crise orgânica” se aprofunda.

Contudo, não seria verdadeiro afirmar que a grande burguesia e seus tradicionais aparelhos privados de hegemonia midiáticos tiveram diante de Bolsonaro a mesma postura que apresentaram ao longo do processo eleitoral de 2018. Embora a teoria dos “dois demônios populistas” tenha permanecido, não houve, desta vez, a instilação diuturna e insidiosa de que o demônio vermelho era pior do que o verde-amarelo, e que era aquele, e não este, o que deveria ser evitado de qualquer jeito pelas urnas. Na esfera da representação política propriamente dita, também se verificaram mudanças não desprezíveis. Se há quatro anos o candidato petista, Haddad, não logrou obter praticamente nenhum apoio para além da próprio esquerda reformista (PT-PCdoB-PROS), Lula, este ano, saiu como candidato de uma coligação de dez partidos, sendo o nome de Geraldo Alckmin a melhor ilustração do caráter amplíssimo da aliança constituída pelo ex-presidente. Almejando um futuro governo de “todos contra o bolsonarismo”, como numa espécie de reconstrução do país no estilo das antigas frentes de “unidade nacional contra os restos do fascismo”, Lula procurou, desde já, aproximar, praticamente sem restrições, todas as forças políticas que não seguissem alinhadas ao bolsonarismo. Se não obteve êxito pleno nessa empresa, também não se pode dizer que ela foi totalmente fracassada; além de vários partidos e lideranças políticas da direita e centro-direita (Fernando Henrique Cardoso, Meirelles e Temer, por exemplo), Lula conseguiu o apoio público de inúmeros representantes da burguesia nos meios “profissionais” (mercado) e na dita “sociedade civil” (como Miguel Reale jr. e Delfim Neto), e tudo indica que nos próximos dias terá o apoio de Tebet, do MDB e do PDT (apesar de Ciro Gomes – ou até com ele, talvez).

Ocorre que, justamente por se tratar de uma situação de “crise orgânica”, tais partidos, lideranças e representações burguesas já não representam bem seus representados como outrora, e uma enorme “massa da burguesia extra-parlamentar” (Marx) apoiou e financiou o voto em Bolsonaro. Assim, uma ingente base eleitoral da direita tradicional burguesa, em especial os setores médios conservadores, as frações desorganizadas de um proletariado com piso salarial acima de dois ou três salários mínimos, uma parcela da “aristocracia trabalhadora” dos escritórios, os “empreendedores de si mesmo” e o vultoso lumpesinato de um país destroçado socialmente sufragaram o nome do neofascista nas urnas no dia de ontem. Em uma palavra: não obstante toda a ampliação do arco de alianças da parte de Lula, não obstante a formação de um bloco eleitoral que representou a defesa do que resta do regime de 1988 contra as pretensões bonapartistas e cruentas de Bolsonaro, este último mostrou que ainda é muito forte, e que logrou ampliar sua capilaridade social nesses últimos quatro anos em que teve boa parte do aparelho estatal nas mãos.

Desse modo, como bem alertou Marcelo Badaró Mattos em excelente texto publicado neste portal, a simples ampliação do arco de alianças à direita por meio de acordos com forças e nomes do “mundo da política” dificilmente se traduzirá automaticamente aumento de votos em Lula no segundo turno. Em momentos de “crise orgânica”, a tal transferência de votos é ainda mais difícil apenas por meio da declaração de seus detentores.

É necessária uma mobilização de rua urgente em busca do voto em Lula no segundo turno, tanto daqueles que já o fizeram e terão que o fazer de novo faça chuva, fila ou sol, quanto daqueles que anularam, votaram em Ciro ou em Tebet, além dos muitos e muitos que se abstiveram neste primeiro turno. Comitês populares pró-Lula devem ser criados e se multiplicar a partir de agora, e não há nada mais importante a ser feito nos próximos dias para que estes não sejam vistos, depois, como os últimos dias de uma secular e problemática civilização brasileira.