Onde erramos
A primeira lição, óbvia, mas ainda assim de difícil apreensão é: o otimismo da vontade não pode substituir jamais o realismo da análise. A força social do neofascismo bolsonarista (assim como a votação de Bolsonaro em relação ao primeiro turno de 2018) cresceu e se solidificou. A impressionante estabilidade de um apoio eleitoral de cerca de um terço do eleitorado, apesar das oscilações, captada em pesquisas ao longo de todo o seu mandato, apesar de todo o nauseabundo rastro de destruição e morte desses quatro anos, é o maior sinal disso. Além disso, subestimou-se – como se tivesse sido amplamente superado depois da anulação dos processos e subida de Lula nas pesquisas (a partir de abril de 2021) – a força do antipetismo, que se manifesta em amplas camadas da sociedade, especialmente no Centro-Sul do país. Um antipetismo ainda capaz de mover um “voto útil” em Bolsonaro, como ficou evidente pela votação muito maior de Bolsonaro em São Paulo no Rio de Janeiro do que haviam captado as pesquisas eleitorais.
A segunda lição é a de que pesquisas eleitorais precisam ser lidas não apenas matematicamente, mas à luz das dinâmicas políticas e sociais mais profundas do que o retrato de um dado momento com uma dada amostragem de eleitores. Numa análise superficial, as pesquisas acertaram (dentro da margem de erro) a votação de Lula e a ultrapassagem de Simone Tebet sobre Ciro Gomes. E erraram, apontando para muito menos, a votação de Bolsonaro, além de terem errado para mais a votação de Ciro. É claro que houve uma migração dos votos de Ciro, majoritariamente, para Bolsonaro – o que nossa ilusão otimista anteriormente citada não captava, pois insistia em caracterizar que esse voto iria para Lula, movido mais por uma perspectiva de centro-esquerda, quando o antipetismo era seu mote principal. Mas, só isso não explicaria a votação de Bolsonaro.
É facilmente constatável que a extrema direita, ao redor do mundo, tem tido muitas vezes votação efetiva maior do que a captada pelas pesquisas eleitorais. Pode-se especular que um misto de voto “envergonhado” com “profecia auto realizada” (se eu acredito que as pesquisas são mentirosas, não vou falar a verdade para elas) explique esse dado. Mas, ao menos no caso específico do Brasil (e nos Estados Unidos estudos mostraram algo similar com a votação de Trump), é fato que as pesquisas captaram uma maioria de votos em Lula nos estratos de renda mais baixa da população e o inverso em relação a Bolsonaro. Os estratos de renda mais baixa são, historicamente, os que mais se abstém nas eleições. São migrantes internos que nunca regularizaram seu domicílio eleitoral, pessoas que não tem recursos para custear sequer o transporte até a seção eleitoral (que nas grandes cidades, especialmente as megalópoles do Sudeste, pode ficar bem distante, em razão das mudanças de moradia ao longo da vida) e setores em que a luta diária para conseguir sobreviver pode ser tão dura que torna o calendário político nacional e o exercício da cidadania política processos dos quais se desconectaram completamente. A abstenção neste primeiro turno foi de 20,95% dos votos, a maior dos últimos 20 anos. As pesquisas não podem ponderar adequadamente esse fator.
Assim como não podem captar aquele impulso – positivo pelo convencimento, ou negativo pela intimidação – de última hora, movido pela pressão familiar, na vizinhança, no trabalho, etc. O fato de que, à exceção do Nordeste (e mesmo nessa região com muitas mediações), o crescimento molecular das intenções de voto em Lula nas últimas semanas não tenha ganhado a visibilidade pública de uma onda de camisas, bandeiras e multidões das ruas, enquanto o verdeamarelismo bolsonarista é ostensivamente visível e intimidador, teve um peso na reta final que escapou ao registro das pesquisas. O medo e intimidação da violência política, imposto pela face mais abertamente neofascista do bolsonarismo, teve como efeito uma visibilidade limitada do apoio a Lula, particularmente no Sudeste. Muitas pessoas fizessem do voto em Lula, uma resistência silenciosa. A resistência silenciosa não é suficiente para dar força aos que sofrem coações maiores, ou para dar a certeza de que está no barco certo para os indecisos que, pasmem, ainda existem.
Não podemos mais errar
Diante desse quadro, a primeira lição que deveríamos tirar desse primeiro turno é a de despirmo-nos de qualquer otimismo autoenganatório, como o que já desde o fim da apuração vem circulando em nossa bolha, com mensagens sobre o crescimento das bancadas de esquerda na Câmara e em alguns legislativos estaduais. Um crescimento relativo a seu próprio estado de minoria, que está muito longe de ser superado. Do lado contrário, a bancada do Centrão se fortaleceu na Câmara, como era de se esperar pelo uso eleitoreiro pornográfico do chamado orçamento secreto. No Senado, turbinada pela eleição do atual vice-presidente e de ex-ministros arquireacionários, a bancada bolsonarista cresceu o suficiente para, caso Bolsonaro se reeleja, avançar até processos de impedimento de ministros do STF. Se alguma utilidade possuem os mandatos conquistados pela esquerda neste momento – e eles a possuem, sem dúvida – seu primeiro teste de fogo é manter a militância que fez campanha para as candidaturas proporcionais, nas ruas, para eleger Lula no segundo turno, sim ou sim.
Tão ou mais autoenganatório é o otimismo dos cálculos matemáticos que eludem a luta política e social – “Lula tem seis milhões de votos de vantagem”, “basta conquistar mais 2% dos eleitores” e outras frases de autoajuda similares. Bolsonaro teve de onde tirar votos na reta final do primeiro turno para se aproximar de Lula e pode ainda ter mais “fundo de reserva”, nos eleitores de Tebet, Ciro e nos votos brancos e nulos. Ainda mais se aprendermos, de uma vez por todas, que a campanha de um neofascista não se move apenas pelos caminhos iluminados das “regras do jogo” dessa “festa da democracia”, na qual tanto insistem os comentaristas de plantão.
Por isso mesmo, o raciocínio institucionalista que, até aqui, tem dominado na cúpula da campanha petista, de que basta agregar mais apoios formais à frente ampla eleitoral, pode ser desastroso neste segundo turno. Uma eventual adesão formal do PDT (contra a vontade de Ciro) e do MDB não garante nada. Esses partidos já elegeram seus parlamentares, o MDB disputa apenas dois governos estaduais no segundo turno (o PDT nem isso) e, numa disputa tão polarizada, dificilmente abraçarão entusiasticamente Lula. Ainda que o façam, nada garantirá que esses votos sejam herdados pelo petista. O sinal dado no primeiro turno em relação à desidratação de Ciro foi, aliás, o inverso. Também não adiantarão mais reuniões com os “campeões do PIB” do andar de cima. Eles não têm veto, mas também não têm voto a oferecer a Lula. O partido mais orgânico que a burguesia brasileira construiu na Nova República, o PSDB, se ajoelhou ao bolsonarismo e ruiu. Com a derrota para governador em São Paulo, caiu sua última fortaleza institucional.
Derrotar eleitoralmente o bolsonarismo em 30 de outubro, essa é a lição principal que precisamos tirar do resultado do primeiro turno, demandará povo na rua, com Lula, para transformar a atual maioria eleitoral em uma onda de apoio popular, visível e expressiva o suficiente para arrastar parcelas dos que se abstiveram no primeiro turno, eleitores não corrompidos dos demais candidatos e para garantir a confiança aos constrangidos e ameaçados pela truculência do neofascismo de que é possível tirar Bolsonaro do palácio.
Será preciso arrastar Lula no meio da multidão, como nas ladeiras de Salvador, fazê-lo quicar no meio da massa, como nas ruas de São Paulo, transformando as próximas quatro semanas no mais intenso processo de mobilização político-social dos últimos tempos. Mesmo que a coordenação de sua campanha continue a apostar nos acordos pelo alto com as direções partidárias e representações burguesas, é preciso empurrá-la na direção das ruas. Novos “Ele Não!” terão que brotar. O voto decisivo virá da ampliação da vantagem onde ela já existe: nas parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora, nas mulheres, no povo negro, na juventude, no Nordeste.
Porque disso depende nosso futuro e porque devemos isso à memória das quase 700 mil vítimas da pandemia; aos que tombam nas chacinas policiais cotidianas, transformadas em propaganda política de governadores milicianos; e às milhões de pessoas que estão passando fome.
“A única luta que se perde, é a que se abandona”. Não vamos abandonar mais essa.
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Brazilian Presidential Elections: Some Lessons from the First Round
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