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O significado do protesto negro e as eleições de 2022

Jovem negro com punho levantado
MAURO PIMENTEL/AFP

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

A aventura colonial que chamamos de Brasil tem diversos mitos fundadores. O “grito do Ipiranga” e a independência, a Proclamação da República feita pelos marechais, a abolição vinda das mãos da princesa, o martírio de Tiradentes, os dois gols do então menino Edson Arantes do Nascimento contra a Suécia, entre outras histórias que ao longo de duzentos anos são contadas e recontadas para se criar o sentimento do ser brasileiro e de pertencer ao Brasil.

Porém, para além de histórias, narrativas, e construção de uma linha do tempo, um Estado Nação (1), como o Brasil, surge junto de uma ideologia que o afirma em contraposto aos demais países. No nosso caso, do Brasil e da brasilidade, surgem ao longo das primeiras décadas do século passado, se afirmando como o país da mestiçagem. Diferente dos Estados Unidos, onde se existia uma “linha de cor” (2) que separava o negro do branco, e diferentes dos demais países da América Latina, onde a opressão contra indígenas era um centro do tema nacional, em nosso país, as raças supostamente conviviam em harmonia. O Brasil era um Paraíso das raças, no qual afrodescendentes, povos originários e eurodescendentes, conviviam de forma pacífica, não tendo lugar para o racismo, pois aqui, se conformou uma miscigenação e o povo brasileiro nascido da mistura era um povo feliz.

O mito da democracia racial

Os autores dessas ideias definem que o Brasil é uma “Democracia Racial”, e esse pensamento organiza praticamente toda nossa história oficial, nossa linha do tempo como país, e determina nossos mitos fundadores. No lugar do negro quilombola que pegou em armas pela sua liberdade, surge então a princesa com uma caneta na mão. No lugar do povo pobre em luta pela independência, aparece um descendente do trono português em seu cavalo. Os negros, os indígenas, são apagados em suas histórias, suas narrativas, sua visão de mundo, para construção de uma visão supostamente harmônica, onde o branco seria a cor universal.

O sociólogo, Gilberto Freyre (3), foi um dos pensadores que ajudou a organizar a ideologia da democracia racial em nosso país. Em um de seus famosos escritos, ele diz: “Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se construiu mais harmoniosamente quanto às relações raciais: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo aproveitamento dos valores e experiências dos povos mais atrasados pelo adiantado; da do conquistador com o conquistado”.

A ideologia da Democracia Racial foi combatida pelo movimento negro desde seu surgimento, sendo apontada como uma farsa, um mito que é base fundamental da reformulação do racismo no Brasil após a abolição. 

O mito da existência da democracia racial permite aquilo que o saudoso Abdias Nascimento, um dos maiores líderes negros de nosso país, chamou de “racismo silencioso”, que seria uma dissimulação do racismo. Onde a suposta harmonia entre as raças, serve para encobrir o Genocídio que o Estado brasileiro efetua sobre negros e indígenas (4).

O movimento negritude e os tempos atuais

Hoje, ao falarmos sobre a luta negra no Brasil, vemos que as pautas raciais têm assumido centralidade no debate público. A popularização de expressões e conceitos como “racismo estrutural”, o crescimento no interesse de editoras na publicação de autores e pensadores negros como Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Neusa Santos, entre outros, assim como o destaque dado pela própria mídia burguesa a casos de racismo, o conceito de Genocídio da juventude negra usado no programa eleitoral do Presidente Lula, mostra que existe algo de diferente no ar. Nas palavras de  Hélio Santos “a roda das relações raciais girou no Brasil”.

As conquistas do movimento negro nas últimas décadas geraram que cada vez mais negras e negros assumissem sua identidade como pessoas negras, racializadas, tomam pra si essa identidade, e a constroem positivamente. Em outras palavras, elas assumem sua negritude e se tornam racialmente e politicamente negras (5).

Em um país que foi construído no apagamento físico e cultural de tudo que não é branco, o processo de autoafirmação da negritude é um baque no mito da democracia racial, uma ideologia de sustentação do Poder branco e burguês no país.

Vale aqui abrir uma aspa e apontar que as classes sociais não existem como entidades isoladas e separadas. Os sujeitos descobrem a si mesmo como classe, ao descobrirem sua consciência de classes, e esta descoberta é o último degrau de um processo histórico real, que envolve identificar interesses antagônicos aos seus, ver aqueles que podem se articular para melhorias coletivas e individuais, e é no meio desse processo de luta que a consciência nasce. É aquilo que Marx definiu de transformar o “classe em si” em “classe para si” (6).

Ao falarmos sobre o avanço da consciência racial e de negritude, vemos o ato de se superar o “ser negro em si” e alcançar o “negro para si” (7). Este processo, em um movimento dialético, permite que os indivíduos negros, ao se reconhecerem como tal, possam se organizar em comum para alcançar objetivos. No Brasil, onde classe e raça se misturam e se confundem (8), o avanço racial, leva, por consequência, um avanço social, e uma conexão entre a identidade do negro e pautas políticas imediatas. Este movimento atual, fruto do acúmulo político e cultural de décadas do movimento negro, termina por gerar um novo momento no protesto negro brasileiro (9).

Esse novo momento do protesto negro pela igualdade racial, no qual cada vez mais afro-brasileiros conectam suas demandas imediatas com sua identidade racial, gerando um aumento de consciência negra, traz três novos acontecimentos a sociedade brasileira. 

O primeiro, é a possibilidade de despertar a solidariedade inter-racial dos eurobrasileiros. O segundo, é a popularização de autores, termos, pensamentos, e teorias que dão embasamento à luta negra. E a terceira e mais emblemática consequência é a ampliação da representação negra na política.

Aqui trabalhamos com a hipótese de que o crescente protagonismo de negras e negros nas eleições legislativas é mais que um fenômeno eleitoral marcado pelo momento político que vivemos, mas sim fruto das mudanças estruturais causadas pelo reposicionamento da luta negra e do novo momento do protesto negro que tem na disputa político institucional das eleições sua expressão política da disputa de Poder.

Derrotar Bolsonaro, refundar o Brasil

Hoje, a agenda negra na luta por igualdade racial, faz com que surjam diversas táticas de luta dentro do próprio movimento negro, assim como uma reação de setores da elite econômica que tentam sequestrar essa luta por igualdade e se tornaram sujeitos do processo. Cada vez os debates sobre a estratégia final e rumo do movimento negro serão mais importantes, pois sem isso, a possibilidade de derrota é maior.

De fato, vemos um avanço na representatividade negra na política. Em 2020 tivemos o maior número de negras e negros eleitos em toda história. Por outro lado, a situação reacionária, limita os ditos e formas da luta de massas, assim como, é possível identificar que se de forma positiva o movimento negro conseguiu impor uma agenda pública que pauta a luta pela igualdade racial, ainda não foi possível avançar nos debates para a construção de um Poder Negro, ou seja, um Poder para a maioria da população.

Sou dos que acreditam que toda disputa política deve ter como fim a capacidade de levar ao tema de quem exerce o Poder político na sociedade (10). Poder é essencialmente a capacidade que um grupo social (uma classe social e seus aliados) têm de exercer sua influência e impor sua vontade sobre um outro grupo ou outra classe, seja tanto por meio da coesão quanto pela coerção.

Desde a invenção do Brasil o Poder político sempre foi exercido por uma minoria. Essa, com uma cor de pele muito bem definida: branca. Como classe e raça aqui se misturam, a nossa burguesia é alva. O Poder político dessa burguesia passa pela manutenção de ideologias de dominação, sendo o da democracia um dos mais importantes para toda a lógica do Poder burguês. Se o colonialismo é a expressão política e cultural do racismo, e o Poder branco sua forma de expressão acabada na sociedade de classes, é correto dizer que no Brasil o Poder Branco é o Poder político da burguesia.

O novo momento do protesto negro nacional e a elevação da consciência negra podem abrir espaço para com vontade e força política se construir um projeto de poder para o povo negro em nível nacional. Acredito que somente dessa forma o processo de mudança na luta por igualdade racial se torna algo sólido e seu caráter transformador fica assegurado. A derrubada do mito da democracia racial assume, portanto, caráter e dimensões que ainda não são previstas.

O racismo e a forma que ele se expressa, pode ser modificado. Se antes predominava um racismo velado, como disse Abdias Nascimento, agora, diante do crescimento da luta negra e dos ganhos sociais alcançados pela população negra, é possível enxergar uma reação da burguesia contra essas conquistas, ou seja, uma reação racista. Um racismo que diante de uma crise econômica busca diminuir os avanços sociais da população negra e de forma aberta busca atingir as políticas públicas que possibilitaram um avanço na luta por igualdade racial.

Bolsonaro e o bolsonarismo são a expressão máxima dessa reação da burguesia contra as conquistas sociais dos últimos anos. É a mais acabada demonstração de um projeto colonial de Poder Branco da burguesia brasileira e que tem no racismo um pilar fundamental de suas ideias.

Nestas eleições a derrota política de Bolsonaro é fundamental para avançarmos ainda mais na luta pela igualdade racial e pela construção de um projeto político de vida para as pessoas negras. Bolsonaro, têm um projeto de genocídio para os nossos, e por isso, sem sua derrota fica ainda mais complicado o desenvolvimento da luta negra no nosso país. Ele é o inimigo principal e imediato.

Contradições e limites do projeto Petista

Durante o governo do PT mesmo tempo que vivenciamos conquistas como as ações afirmativas nas universidades, o aumento do salário mínimo, melhoria na saúde e políticas públicas de redistribuição de renda. Assistimos também um imenso salto no encarceramento da juventude negra, o aumento do extermínio da nossa juventude, as UPP’s e uma crescente militarização das periferias.

O russo Vladimir Lênin (11), definiu como aristocracia operária setores da classe trabalhadora que tinham uma localização privilegiada no processo de distribuição do capital se comparado com outros setores dos trabalhadores. Por conta de sua localização privilegiada, essa aristocracia operária tinha mais tendência a fazer acordos com a burguesia. 

Lenin ao se referir a este setor privilegiado da classe trabalhadora fez suas análises em países centrais do modo de produção capitalismo. No Brasil, um país da periferia do sistema e com um capitalismo desigual e dependente, a aristocracia operária e sua política de conciliação entre classes opostas segue uma dinâmica racializada. 

O jornalista Hamilton Cardoso, uma das grandes lideranças do movimento negro no período da ditadura militar, escreveu de forma similar ao raciocínio de Lênin. Hamilton definiu que a política de conciliação de classes opostas era a conexão entre um setor privilegiada da classe trabalhadora brasileira, ou seja, sua minoria branca que por conta do racismo têm salários maiores empregos com maior estabilidade, grau de sindicalização maior que trabalhadores negros, com setores da classe dominante.

Essa formulação mostra os limites e as consequências trágicas da política de conciliação de classes opostas para o povo negro e para os povos indígenas. Pois, por ser uma representação da política estratégica deste setor privilegiado da classe, a aristocracia operária, ao mesmo tempo que se busca ter aumentos e melhorias para o conjunto da classe, vai ser preciso impor limites e garantir também avanços para as classes dominantes. 

A conciliação de classes no Brasil é uma conciliação entre projetos de poder racialmente e visão de mundo opostas. A lógica política da conciliação é a elaboração de arranjos políticos marcados pelo conservadorismo. 

Diante disso, a construção de uma bancada negra e uma bancada do cocar a nível nacional e a eleição de parlamentares negros e indigenas nas assembleias estaduais é fundamental para romper com esse modus operandi. A construção de um projeto político racializado, de vida para a população negra e indígenas, é a forma de romper com a marginalização que tentam impor sobre nossos corpos e pautas. Como disse Sueli Carneiro, é o movimento negro que empurra a esquerda verdadeiramente para a esquerda.

Quilombos nos Parlamentos

No atual cenário político o movimento negro tem assumido cada vez mais importância e mostrado sua vontade de ser mais que mero coadjuvante na história do tempo presente. Pelo contrário, queremos, podemos e devemos ser protagonistas da nova história do Brasil que queremos escrever. 

Sem o povo negro e os povos indígenas a frente não será possível as forças populares acharem caminho para a superação da barbárie e para a construção de uma Nação livre, soberana e verdadeiramente democrática. Com racismo não existe democracia. É pela demolição das estruturas de Poder Branco e do colonialismo que fundaram o Brasil que poderemos construir um novo país. Um país que seja como foi Quilombo dos Palmares, verdadeiramente democrático, igualitário e soberano.

Por isso, em 2022 lutamos para avançarmos mais na nossa representação parlamentar, lutemos para derrotar Bolsonaro e eleger Lula, e também para construímos um projeto de poder que seja para a maioria do nosso povo. Um projeto de valorização da vida em combate ao projeto de morte que tem nos governado.

Que Exu nos proteja, abra os caminhos e nos ilumine para o Brasil que queremos construir.

Pátria livre, venceremos!

Laroye

Notas

Etienne Balibar, Immanuel Wallerstein. “Raça, Nação, Classe”.

2 W.E.B Du Bois. “As Almas do Povo Negro”.

Gilberto Freyre. “Casa Grande e Senzala”

4 Abdias Nascimento. “O Genocídio do Negro brasileiro”

5 Stive Biko. “A definição de Consciência Negra”

6 Karl Marx. “A miséria da Filosofia”

7 Aimé Césaire “Discurso sobre a negritude”.

8 Frantz Fanon. “Condenados da Terra”.

9 Florestan Fernandes. “Significado do Protesto Negro”.

10 Stokely Carmichael/ Charles V. Hamilton Le Black Power: Por Une Politique de Libération Aux États-unis”

11  Vladimir Lênin. “Imperialismo, fase superior do capitalismo”