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CULTURA

Um Projeto para a Cultura no Estado do Rio de Janeiro: Resistência ao conservadorismo

Jailson dos Santos, do Rio de Janeiro (RJ)
Reprodução

Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário.E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence. (Bertolt Brecht)

Introdução

O presente artigo foi escrito a partir do debate sobre a política de cultura que vem sendo desenvolvida pelo atual governo do Estado do Rio de Janeiro (ERJ), realizado no final de agosto último, promovido pela Coletiva Feminista do PSOL-RJ a qual é constituída pelas candidatas Tatianny Araújo, Ivanilda Reis, Natália Russo e Kênia Miranda, que entram no processo eleitoral neste ano de 2022 visando ocuparem uma cadeira na Assembleia Legislativa do ERJ.

Ao sintetizar a campanha política na frase O futuro é feminista, antirracista e ecossocialista: Coletiva Feminista por um RJ para o povo, que, embora curta, apresenta uma grande profundidade, e neste sentido mostra o quanto será dura a luta no parlamento pela instituição de políticas no ERJ, que devem ser voltadas para a população, e dessa forma a Cultura é de grande importância para garantir a comunicação, de forma crítica, com os diversos grupos sociais.

Antes de entrar no tema central que vai nortear o presente texto, mais precisamente o debate sobre as políticas públicas de Cultura no Estado do Rio de Janeiro (ERJ), vou iniciar a exposição fazendo referência ao pensamento de Bertolt Brecht, que, embora escrito na primeira metade do século passado, é muito atual, na medida em que, na sua essência, preserva as questões relacionadas à privatização tão debatida na atual conjuntura. 

Em outras palavras, o sentido da privatização significa o sequestro, por parte do capital, de tudo que é produzido pelo trabalho das mulheres e dos homens, inclusive o sentimento individual do ser humano, o que se torna uma exploração sem limites, cujo objetivo central é o de obter lucros, que ao longo do tempo crescem em escala exponencial. Podemos dizer que a produção da riqueza por muitos se concentra nas mãos de um pequeno grupo de privilegiados, que habitam o paraíso dos detentores dos patrimônios avaliados em bilhões de dólares.

Só a genialidade de Bertolt Brecht seria capaz de estruturar um pensamento, talvez sem a intenção de interferir diretamente no processo econômico, mas que depois de setenta anos viria ser objeto de debate e de polarizações, quando se trata de estabelecer os fundamentos da economia política num programa voltado para administrar o Estado, que no caso brasileiro, vem sendo dominado pelo neoliberalismo, modelo que vem buscando tornar-se hegemônico no país ao longo destes trinta e cinco anos, se levarmos em conta que esta concepção vem conquistando corações e mentes na sociedade brasileira.

Espero que este preâmbulo não seja considerado uma simples digressão, já que a visão brechtiana muito se articula à uma contraposição ao tratamento secundarizado que os governos brasileiros, na sua grande maioria, têm dado à Cultura do país, que vem sendo destruída por iniciativas que a coloca no rol das mercadorias, através da tão difundida produção cultural, que é consumida no mercado, segundo os critérios definidos pela doutrina neoliberal. 

Esta forma de conceber a Cultura, por parte dos donos do poder, que, gramscianamente falando, estão presentes tanto na estrutura interna do Estado, ou seja, na sociedade política, quanto na sociedade civil, representada por um conjunto de instituições que se colocam na defesa intransigente dos interesses do capital, tem como fundamento elaborar programas que impõem uma cultura voltada exclusivamente para a realização do lucro.

Assim sendo, o que temos assistido são governos que, em nome da tão falada austeridade fiscal, responsável pela redução dos gastos públicos, se utilizarem destas falácias para retirar a Cultura do orçamento, e ao procederem desta forma, esvaziam determinadas tradições culturais que são a marca do nosso povo, e que ao longo da existência de várias gerações fazem parte da alma popular. É neste movimento que os donos do poder, em determinadas conjunturas, retiram o Estado da cena da organização da cultura popular, para dar lugar a uma outra cultura, que além de produzir lucros para o capital, se conforma às concepções de mundo da elite dominante, como é o caso, por exemplo, do carnaval.

Cabe aqui ressaltar que neste movimento os homens de negócio, em associação com o Poder Público, utilizam a Cultura para construir um consenso na população, com o objetivo de tornar hegemônico o pensamento no qual torna a imagem do grande empresário como o símbolo do bom moço, que só pratica o bem. 

O caso do agronegócio é emblemático, pois no objetivo de se tornarem pop impõem o seu poder cultural, e se apropriam da música sertaneja, antes apresentada por artistas que buscavam produzir canções cujas letras mostravam o duro sofrimento do homem do campo, agora com o agro pop o que estamos assistindo são produções musicais cujo conteúdo, muitas vezes machistas, procuram difundir a vida de riqueza e de poder dos grandes empresários que vivem da agropecuária.

Neste caso a produção cultural, que serve ao capitalista do campo para limpar a sua imagem junto ao público, se converte em grandes eventos populares ocupando as praças espalhadas pelo interior do país ao promover shows musicais, pagos com o dinheiro público, na medida em que saem dos cofres das prefeituras para o pagamento de contratos de prestação de serviços, além do patrocínio do agronegócio.

Portanto, ao utilizar citação que abre esse texto, o faço com o objetivo de ressaltar o papel icônico que Bertold Brecht exerceu ao longo da sua trajetória de vida, que muito contribuiu na luta pela preservação e pela difusão das mais diferentes expressões culturais construídas pelos povos, e que fazem parte do patrimônio das sociedades, que, em nome da economia de mercado vem sendo sequestradas, com o objetivo de fazer com que prevaleça os valores do capital.

1. As Constituições Federal e Estadual: a viabilidade do Plano Estadual de Cultura

O nosso foco aqui está restrito ao ERJ, e para uma análise mais genérica daquilo que vem sendo a execução de políticas de cultura no estado, consideramos o período 2019-2022, que compreende o mandato de Wilson Witzel e que está sendo completado por Claudio Castro, por força do impeachment do primeiro.

Optamos por considerar dois instrumentos legais, que são: a Constituição Federal de 1988 e a Constituição do Estado do Rio de Janeiro promulgada em 1989. Justificamos esta iniciativa, tendo em vista que por se tratarem, respectivamente da lei máxima do país e do ERJ, ambas servem de parâmetro para a definição das políticas públicas que são definidas para a Cultura, bem como contemplam, de modo geral, a forma de financiá-las.

No âmbito da Constituição Federal de 1988 (CF-1988) a Emenda Constitucional número 42 aprovada em 19 de dezembro de 2003, dentre outras medidas, acrescentou o parágrafo 6º ao artigo 216 que faculta aos estados e ao Distrito Federal vincular 0,5% da receita tributária líquida para o financiamento exclusivo de programas e projetos culturais.

A Emenda Constitucional nº 48 aprovada em 10 de agosto de 2005 incluiu no artigo 215 o parágrafo 3º que estabelece o Plano Nacional da Cultura, de duração plurianual, cujo objetivo era desenvolver a Cultura no país e a integração do Poder Público, que conduzem à

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

V – valorização da diversidade étnica e regional.

No que se refere à Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989 (CERJ-1989), esta contemplou no capítulo da Cultura, em seu artigo 322 o parágrafo único, que prevê a criação do Plano Estadual de Cultura, obedecendo o que dispõe a CF-1988 em sua Emenda Constitucional nº 48, acima referida. 

Entretanto, a mudança que se efetivou na CERJ-1989 não disciplina o modo pelo qual deve ser financiada a Cultura no Estado, significando, portanto, que o legislativo e o executivo do ERJ, ao procederem desta forma, se basearam na condição de ser facultativa a vinculação de recursos para a Cultura, conforme está estabelecido na Emenda Constitucional 42/2003 da CF-1988, acima referida, para omitir, e dessa forma se desobrigarem a estabelecer recursos mínimos no orçamento público, provenientes da arrecadação de impostos pagos pela sociedade, com o objetivo de desenvolver as políticas de Cultura no Estado do Rio de Janeiro.

A tabela 1 a seguir mostra a diferença entre os valores empenhados na função Cultura, no período 2015 a 2021,e os recursos que deveriam ser alocados na área da Cultura, caso o orçamento da Cultura do ERJ pudesse contar com recursos vinculados à arrecadação de impostos, obviamente se a EC-42/2003 definisse tal vinculação como sendo obrigatória.

Tabela 1: Valor empenhado na função cultura, e o orçamento do setor de vinculação se tornasse obrigatória. Rio de Janeiro. 2015 – 2018*

Valor empenhado na função cultura, e o orçamento do setor de vinculação se tornasse obrigatória Rio de Janeiro 2015-2018

¹Valores corrigidos pelo IPCA, a preços de maio de 2022.
² Os valores representam os recursos orçamentários para a Cultura, caso não fosse facultativa a vinculação de 0,5% da receita líquida para as despesas na função.
*Elaboração própria a partir dos dados orçamentários do ERJ.

Um outro aspecto que não devemos deixar de levar em conta, e que é de vital importância para se estabelecer o planejamento para o setor, está no fato de que a Constituição do ERJ, como vimos anteriormente estabelece o Plano Estadual de Cultua de periodicidade plurianual, o que nos leva ficar atentos ao Plano Plurianual (1) a ser elaborado pelo próximo governo, com o objetivo de inserir os programas que irão nortear as políticas públicas definidas para a Cultura, bem como os recursos que irão garantir no orçamento público a viabilidade de execução dos programas voltados para o setor, durante quatro anos.

Evidentemente, que estruturar um Plano Estadual de Cultura, devido à forma secundarizada com que o setor é tratado requer uma luta política na mudança dos marcos legais aqui citados, no caso as constituições federal e estadual. Mais precisamente, devemos organizar o conjunto da sociedade, principalmente os setores envolvidos com a Cultura para mudar o parágrafo 6º do artigo 216 da EC-42/2003, transformando o facultativo em obrigatório, no que se refere à aplicação de recursos na função Cultura. Na sequência, a luta vai em direção da inclusão da vinculação dos recursos com base na arrecadação da receita líquida de impostos, no sentido de garantir o mínimo de recursos orçamentários para a função Cultura.

2. O impacto do neoliberalismo no desenvolvimento da cultura: um breve comentário

No Brasil, ao longo destes últimos trinta anos, o que temos presenciado é a adoção do modelo de economia política, baseado nas concepções definidas pela doutrina neoliberal, em que um dos principais postulados é esvaziar as funções do Estado e entregar os serviços que ele presta à população para o mercado.

Esta forma de gestão do Estado faz com que as promessas que levam um governante obter vitória nas urnas, fiquem apenas nos discursos de campanha, na medida em que a concretização das propostas esbarrem, na prática, com adoção de medidas que se articulam aos pressupostos neoliberais que se resumem à austeridade fiscal, cujo principal objetivo é o de travar os gastos estatais via execução orçamentária.

É nesta perspectiva que os governos assumem poder e buscam racionalizar ao máximo os gastos públicos, e nesta perspectiva buscam acabar com aquilo que chamam de engessamento das despesas. Nesta perspectiva, a vinculação de recursos financeiros com base na arrecadação de impostos torna-se o grande vilão do orçamento público, tese que motivou a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, conhecida como “teto de gastos”.

É nesta forma de conceber a trilha pela qual deve caminhar o orçamento público, que explica o famoso ganha, mas não leva e isto fica claro quando da aprovação da EC-42/2003, voltada para desenvolver a Cultura no país. Observa-se que ali houve a vinculação, mas o fato de estabelecer que a sua aplicação seria facultativa, desobrigou os governos dos estados e do Distrito Federal utilizarem este mecanismo de obtenção de recursos para a Cultura, como vimos na seção anterior.

No caso do ERJ, além das questões até aqui apontadas, em 2019, o Governo Wilson Witzel ao efetivar mudanças na Secretaria de Estado de Cultura, incorporando no órgão o setor de Economia Criativa, colocou a Cultura do ERJ na direção das leis do mercado.

Para justificar esta afirmação, primeiramente temos que entender o conceito da categoria Economia Criativa, definida pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como setores nos quais o valor do que é produzido está fundamentado na propriedade intelectual e em aspectos criativos, significando, portanto, que a criatividade é o elemento central na geração de valor para um dado produto, e se constitui na base da geração de renda, emprego e lucratividade das empresas que compõem o setor da economia criativa. Em resumo, quanto maior a criatividade incorporada em determinado produto, maior será o seu valor.

Segundo este conceito, podemos afirmar que a Cultura nas suas diversas dimensões se constitui em uma mercadoria, que, segundo a lógica que preside a Economia Criativa, pode ser  comercializada, segundo os critérios utilizados para medir o grau de criatividade incorporada ao produto a ser exposto, cuja centralidade está na possibilidade de atingir a lucratividade das empresas.

Assim é que, ao participar, por exemplo, de um edital lançado pelo setor público, com o apoio da iniciativa privada, no sentido de promover a seleção de uma peça teatral, uma apresentação musical, ou um filme, os autores devem estar articulados à lógica da Economia Criativa, que, traduzindo, significa obedecer aos pressupostos de uma dada criatividade, cujos critérios são definidos pelo mercado.

Considerações Finais 

Ao longo desta breve análise, buscamos refletir sobre o modo pelo qual os pressupostos do neoliberalismo, como é o caso daqueles que estão articulados aos princípios do Estado mínimo, da austeridade fiscal, dos cortes indiscriminados de gastos, da transferência da oferta de serviços, que estão sob a administração do Estado, para a iniciativa privada, cujos critérios para desenvolver tais serviços obedecem à lógica do mercado, o que constatamos foi a forte presença da desregulamentação, por parte do Estado, com o objetivo claro de se desobrigar de financiar políticas públicas.

Poderíamos elencar aqui diversos setores de atividade do Estado que têm sido esvaziados e sucateados, e na contrapartida o mercado se apresenta na figura de empresas privadas para promover a oferta, como se numa sociedade desigual como a brasileira, todos tivessem condições de acessar o mercado. 

O caso da Cultura, nesta perspectiva, é emblemático, pois se não houver ação estatal é impossível à população ter acesso regular aos espaços culturais, como é o caso dos teatros, museus, concertos musicais de todos os gêneros, salas de cinemas, bibliotecas, e demais equipamentos que possibilitam a sociedade estar em contato com as diversas formas de expressão cultural, que em última análise faz parte do patrimônio construído pela sociedade.

Diante do que foi analisado até aqui, destaco algumas propostas para serem debatidas e apresentadas para a sociedade, e à Coletiva Feminista do PSOL, sendo que algumas foram mencionadas nas seções anteriores, mas que aqui estão sistematizadas, que são:

  • Alteração no parágrafo 6º ao artigo 216, incluído pela Emenda 42 de 19 de dezembro de 2003, que, ao invés de facultar, obrigue os estados e o Distrito Federal aplicarem 0,5% da receita tributária líquida para financiar os programas culturais;
  • Inclusão no artigo 322 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro do que dispõe a EC 42-2003, uma vez modificada, com o objetivo de financiar a Cultura no Estado do Rio de Janeiro, incluindo o Plano Estadual de Cultura que possui periodicidade plurianual;
  • Elaborar com os grupos da sociedade o Plano Estadual de Cultura que atenda aos objetivos da população, principalmente para aqueles que não têm acesso aos espaços culturais do Estado. O Plano Estadual de Cultura deve ser articular aos objetivos propostos nas duas constituições, que são:

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

V – valorização da diversidade étnica e regional.

  • Retirar da estrutura da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro o setor de Economia Criativa, com o objetivo de propor políticas públicas de cultura desarticuladas da lógica do mercado.

Notas

O Plano Plurianual (PPA) é o principal instrumento de planejamento do Executivo, elaborado pelo Poder Executivo e enviado ao legislativo para aprovação no seu primeiro ano de mandato e tem vigência validade de quatro anos, a contar do ano subsequente à posse do governador, até o primeiro ano de mandato do seu sucessor. O PPA estabelece os parâmetros necessários à Lei de Diretrizes orçamentárias e à Lei Orçamentária Anual.

Referências

BRASIL. Presidência da República. Constituição Federal da República Federativa do Brasil 1988. Brasília/DF: Casa Civil. Disponível em Constituição (planalto.gov.br)Acesso na Internet em 24 de agosto de 2022.

ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Brasília/DF: Senado Federal, setor de legislação. Disponível em CE_RJ_EC_84-2020.pdf (senado.leg.br)Acesso na Internet em 24 de agosto de 2022.

* Jailson dos Santos é Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense.