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Não foi um gatilho solitário: a campanha de ódio contra Cristina Fernández na Argentina

Cristina Kirchner
Bol Uol

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

“Nem Cristina, nem Milei”. Esse era o mote político que Fernando André Sabag Montiel gostava de repetir em frente às câmeras. Embora ainda não tenhamos um perfil completo e confiável do autor do atentado contra a vida de Cristina Fernández de Kirchner, na última quinta-feira, 1º de setembro, um fato irrefutável é que ele deu pelo menos duas entrevistas ao canal Crónica HD. Ele buscava aparecer em entrevistas com pessoas aleatórias nas ruas e repetia uma posição política fortemente contrária à política de benefícios sociais criada nos governos Néstor e Cristina Kirchner. Em uma dessas entrevistas, trouxe uma pessoa a quem apresentou como sua namorada, que vendia algodão-doce próxima a ele, e que perguntada sobre os auxílios sociais, disse que “preferia trabalhar” do que recebe-los (como se quem recebesse tais auxílios pudesse simplesmente deixar de trabalhar). Fernando Sabag postou em uma rede social que os jornalistas o elogiaram e disseram que ele “sabia muito de política”. 

É significativo que enquanto o mundo todo condenava o atentado, Patricia Bullrich e Javier Milei, dois dos principais nomes da extrema-direita argentina, permanecem em um silêncio ensurdecedor. Por sua vez, os governadores de oposição de Jujuy e Mendoza, de oposição ao governo, não aderiram ao feriado nacional. Até mesmo Bolsonaro deu uma declaração tardia e a contragosto, onde dizia burocraticamente “lamentar” por dois segundos antes de entrar em sua egotrip habitual, comparando o acontecimento à facada que recebeu na campanha de 2018. 

Uma das hipóteses mais fortes no momento é a de que Fernando Sabag agiu sozinho, naquilo que se costuma chamar de uma ação de um “Lobo solitário”. Sabe-se porém, que discursos de ódio como o trumpismo e o bolsonarismo buscam justamente despertar esses “lobos solitários”, ou seja, mesmo não havendo uma conexão entre os seguidores capazes de colocar em prática o que clamam seus líderes (“fuzilar a petralhada…”) entre si, existe uma correlação direta com essas “convocatórias” ou mesmo “anistias prévias” (“Eu autorizo”…).

Se não se pode diminuir a importância do ocorrido, constrói-se uma “interpretação” segundo a qual Cristina acaba culpada pelo próprio atentado contra ela mesma. Se não existe um vínculo direto com nenhum grupo político, logo, seriam descabidas as declarações do presidente Alberto Fernández, quem colocou a questão da imprensa e de setores políticos que buscam eliminar Cristina Fernández da vida política do país, via judicial. Esse é o argumento do grupo Clarín. Por muitas diferenças políticas que podem e devem ser colocadas com o governo de Alberto Fernández, com o kirchnerismo etc, nesse ponto é difícil provar uma afirmação contrária àquela expressa de imediato pelo presidente. 

Tal como ocorreu no Brasil, setores cada vez mais amplos tanto em termos eleitorais como de espaço político, em grande parte proporcionado pelos conglomerados midiáticos, desempenham uma performance que estimula o “faça você mesmo” e, ao mesmo tempo, o armamentismo. Milei, por exemplo, defende a existência de um mercado livre de armas. Não é, portanto, nenhum absurdo dizer que havia mais de uma mão naquele gatilho. 

Elitismo, misoginia, racismo e xenofobia

Segundo a socióloga Bárbara Ester, embora seja difícil localizar precisamente como e quando se inicia a campanha de ódio contra Néstor e Cristina Kirchner, seria certo que ganha visibilidade primeiro a partir de comentários ofensivos nos portais dos periódicos Clarín e La Nación, pertencentes a grupos empresariais oposicionistas ao governo. Depois, a campanha teria encontrado um momentum nos cacerolazos nos quais se erguiam cartazes comparando Cristina a uma égua, chamando-a de “histérica”, “conchuda”, entre outras ofensas misóginas. 

A virulência midiática contra Cristina teria se acentuado com a Ley de Medios, que pretendia regulamentar as comunicações nacionais e que, apesar de tímida em comparação ao que foi a reforma das comunicações de Rafael Correa no Equador, por exemplo, representava uma ameaça à intensa concentração de propriedade nessa indústria. A defesa da “liberdade de expressão” suscita a acusação política de que o kirchnerismo seria uma espécie de ditadura bolivariana (“Argenzuela”). Outro dos principais temas em comum desses grupos empresariais e a extrema-direita é a aversão à política de imigração dos governos Kirchner – segundo ambos, muito frouxa, permitindo a entrada indevida de imigrantes em sua maioria bolivianos e venezuelanos. Em um cenário de crise econômica, sabe-se que essa se torna uma questão cada vez mais sensível, e o terreno se torna fértil para discursos xenófobos e racistas. 

Esses meios hegemônicos também destilavam ódio principalmente contra mulheres que passaram a ter direito a um benefício social pela quantidade de filhos. Eram classificadas como “vagabundas”, “preguiçosas”, “fábricas de filhos” (leia-se: pobres) para poder gozar daquele auxílio; e que participavam das manifestações sociais “pelo choripán  [popular sanduíche de linguiça] e a coca-cola”. Sim, é o correspondente argentino do “pão com mortadela” que se dizia tanto das caravanas de Lula quanto para todas as manifestações da esquerda nos idos de 2013/2014 no Brasil. Não faltou nem mesmo o boneco inflável com a figura de Cristina vestida de presidiária, idêntico ao de Lula em 2005, na falta de criatividade. 

Em todos os canais de televisão é banal deparar-se com personagens como a apresentadora Viviana Canosa, a qual no melhor estilo “barbie fascista” associa o ódio à Cristina a uma fobia misógina, classista e racista contra os pobres. Não por acaso, nesses círculos,o termo historicamente mais ofensivo sempre foi “negro” ou “Negra” – e se refere ao mesmo tempo à cor da pele e à condição social do indivíduo, como ironizou Caetano Veloso em sua expressão “pretos de tão pobres e pobres de tão pretos” na canção “Haiti”. 

Em junho de 2022, Canosa afirmou em seu programa que Cristina, com a defesa dos benefícios sociais (que, segundo ela, servia para dar “dinheirinho” para “seus” militantes) havia “despertado a ira de Deus”. A mesma apresentadora, no início da pandemia, afirmava que dióxido de cloro evitava a Covid-19. “Os benefícios sociais estimulam a vagabundagem”, afirmara Fernando Sabag em sua entrevista ao Crónica.

O conhecido apresentador Eduardo Feinmann, no dia 30 de agosto de 2022, havia postado um vídeo no qual afirmava que “ela” [Cristina] é violenta” e que “convoca a violência para se defender”. De algum modo difícil de entender, a vítima se torna culpada pela própria violência que sofre. 

Eliminação do adversário e antipolítica

Ainda segundo a socióloga Barbara Ester, o movimento que leva Macri ao poder em 2015 é marcado pelo crescimento de uma subjetividade extremamente individualista e consumista, consolidando para um setor da população que o “direito de ir e vir” (individual) se sobrepõe ao direito coletivo de manifestação, por exemplo. Soma-se a isso um mar de manchetes anti-protesto social, ressaltando o caos no trânsito. Sobre esse tema, o vídeo-esquete do humorista Guille Aquino é genial e hilário. 

Todo esse caldo de cultura serviu para justificar a política repressiva do governo Macri, quem, ainda em campanha, prometeu acabar com o “negócio” dos direitos humanos, então passou a existir um apoio governamental direto para aumentar a ressonância desse pensamento intolerante contra os movimentos sociais, sempre de mãos dadas com um amplo leque de ofensas misóginas contra Cristina Fernández, mal disfarçando o incômodo de que a liderança política mais forte do país ser uma mulher. Parafraseando Marx, parece que um espectro de Eva Perón ronda a terra de Gardel. 

Em fevereiro de 2021, no contexto de denúncias de que determinados grupos teriam sido privilegiados na vacinação contra a Covid-19, um agrupamento chamado “Jovens Republicanos” realizou seu “protesto” tétrico em frente à Casa Rosada depositando sacos mortuários representando a figuras como Estela Carlotto, presidenta das Avós da Praça de Maio, e também grupos, como “os pirralhos de La Campora” (organização da juventude peronista/kirchnerista), Martín Guzmán (então ministro da Economia), entre outros. Essa talvez seja a melhor representação de uma direita mórbida que sonha com decretar o fim jurídico e social de seu adversário político. O elogio da necropolítica se alastra. 

Não se trata apenas de uma disputa política corriqueira, e sim da proliferação de uma ideia fundamentalmente malthusiana de eliminação de tudo aquilo que é entendido como uma doença social: partidos políticos, movimentos sociais, pobres protestando nas ruas. Aqueles tiros estavam destinados a uma personagem política que, no imaginário da direita, representa tudo isso. 

Ora, será esse um dos resultados práticos que ocorrerão se o promotor Diego Luciani, que classifica o novo caso contra Cristina Fernández por suposto esquema de corrupção em grandes obras (a “Causa Vialidad”), como “o maior escândalo de corrupção da História da Argentina”, conseguir seu objetivo – doze anos de prisão para Cristina e a proibição perpétua de ocupar qualquer cargo público. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Começaram então vigílias cada vez maiores em frente à casa da vice-presidenta, começando a atrair, também, numerosos agentes provocadores. 

“Nem Cristina, nem Milei”? A dupla negativa não gera uma proposição ativa, o que curiosamente pode torná-la compatível tanto para um imaginado “centro” político quanto para um neonazista.  A antipolítica tem lado político – não é casual que foi a desqualificação da política um dos elementos fundamentais para a ascensão das extremas-direitas em todo o mundo. As balas eram apenas para um dos dois lados.