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MUNDO

Gorbachev: o recado da História no velório do coveiro

Daniel Kraucher, de São Carlos, SP
Caixão de Mikhail Gorbachev em Moscou, em 3 de setembro de 2022
Alexander Nemenov/Reuters

“O futuro está no ar/ o sinto em qualquer lugar/ soprando com os ventos da mudança”
Scorpions

Aconteceu hoje (03/09) o velório público de Mikhail Gorbachev, figura central de um dos eventos geopolíticos mais trágicos e mais relevantes do século XX: a restauração capitalista da URSS. Foi pelas mãos de Gorbachev que o Estado Operário Soviético desmontou o planejamento econômico central e vieram abaixo os últimos tijolos que mantinham de pé a primeira grande experiência de transição pós-capitalista que a Humanidade realizou, que já vinha de derrotas e de um longo processo de enfraquecimento e desmonte por parte da burocracia do Partido Comunista. 

Pelos serviços prestados na restauração capitalista, Gorbachev foi celebrado como “grande estadista” pela burguesia triunfante, sendo então presença em muitos e muitos banquetes, festejado pelas lideranças mais proeminentes e recebedor de honrarias das mais diversas, sendo a mais notória o Prêmio Nobel da Paz de 1990. 

Já a população que sofria as consequências da restauração capitalista nos antigos estados soviéticos, mais especialmente a população russa, via Gorbachev de maneira bem diferente. O exemplo mais ilustrativo foram as eleições presidenciais russas de 1996, quando o ex-secretário Geral do Partido Comunista mais poderoso do mundo e ex-Presidente da União Soviética decidiu se candidatar e obteve pífios 0,52% dos votos, amargando uma sétima colocação.

Esquecido pela burguesia ocidental e desprezado pela população trabalhadora da Rússia, o “grande estadista pacificador” que havia ajudado a decretar o “fim da História”, passou os 25 anos seguintes no ostracismo quase absoluto, não escondendo sua frustração por “não desempenhar um papel maior no cenário internacional”.

Hoje foi seu ato final. O então celebrado coveiro teve seu enterro sem honras de Estado, como qualquer cidadão comum. Difícil saber se em condições normais algum líder internacional teria comparecido. Provavelmente não. Tendo, contudo, a guerra na Ucrânia enquanto um elemento agravante (ou desculpa perfeita), a cerimônia teve a presença de um único líder internacional: o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. As escolhas que se faz em política têm consequências. No curto, no médio e no longo prazo. Assim termina Mikhail Sergeevitch Gorbatchov. E só teve a desfaçatez de aparecer em seu velório o único líder mundial que ainda tem a desfaçatez de demonstrar simpatia pública por Jair Bolsonaro, o que está longe de ser uma coincidência. 

Vá em paz, Gorbachev. Para ser sincero, sequer lembrávamos que você estava vivo. E, aparentemente, não éramos os únicos.