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Suja e cínica: a campanha da direita contra a Nova Constituição no Chile

População vai às urnas neste domingo, 04 de setembro, para decidir se aprova ou rechaça o texto redigido pela Convenção Constitucional para substituir a atual carta, herança da ditadura de Pinochet

Nova Constituição Chile
Getty Images/ BBC

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

A poucos dias da decisiva votação acerca da Nova Constituição, o Plebiscito para aprovação (Apruebo) ou rechaço (Rechazo) da proposta de Carta formalizada em 04 de julho por Convenção Constitucional eleita exclusivamente para esta finalidade, são chocantes as ações – públicas e clandestinas – das forças retrógradas do continente para evitar a qualquer custo uma ameaça a seus privilégios históricos. 

Trata-se da conclusão do Processo Constituinte iniciado após a vitória retumbante do “Sí” no Plebiscito de novembro de 2020, no qual, por 80% a 20%, o povo chileno demonstrou seu repúdio à Constituição de 1980 e a vontade amplamente majoritária pela redação de uma nova Carta Magna para o país, através de uma Convenção Constitucional eleita exclusivamente para tal. Em maio de 2021, 155 delegados (Convencionales ou Constituintes), com paridade de gênero e vagas reservadas para os povos originários, forte inclinação progressista e à esquerda foram eleitos. Depois de intensos trabalhos e árduos debates, depois de um ano, chegou-se a uma Proposta de Constituição a qual foi entregue no dia 04 de julho de 2022. É importante observar que também foram eleitos delegados de direita e até de extrema-direita, como Teresa Marinovic, cujo canal Fundación Nueva Mente é um dos principais disseminadores de fake News e teorias conspiratórias acerca da proposta constitucional.

A campanha contra o Processo Constituinte começou ao mesmo tempo que a reivindicação popular por uma nova Constituição para o país; isto é, a rigor, ela se inicia ainda antes da retumbante vitória favorável a uma Nova Constituição e também a uma Convenção Constitucional exclusiva. Após o Plebiscito de novembro de 2020 e mais ainda após a eleição dos Constituintes (Convencionales), as ações da direita para sabotar o processo e desqualificar o órgão e desmoralizar seus componentes escalou. Uma das ideias era manipular cenas de debates na Convenção e classificá-las como exemplos de “vandalismo” e “barbárie” – discurso comparável ao da grande mídia chilena naqueles primeiros dias do estalido de 2019, quando se dizia isso dos estudantes. O objetivo é apenas um: deturpar e desacreditar todo o processo de mobilização popular das últimas décadas, especialmente aquilo que dele resultou de mais profundo, até o momento –  enterrar finalmente as leis da ditadura de Pinochet, junto com seu laboratório neoliberal. 

O cinismo (no conteúdo e na forma) e o patrocínio do capital, investido em um conjunto multifacetado de ações, da captura de lideranças à disseminação de mentiras (Fake News) sobre a Convenção, o texto proposto e todos os personagens políticos envolvidos. Acontece que, devido ao amplo repúdio aos partidos e forças tradicionais da direita, se fazia imperativo ocultar os verdadeiros dirigentes da campanha do Rechaço.  

O cinismo (ou: “na volta a gente compra”) 

A campanha pelo Rechaço tem se pautado na ideia de que votar contra o texto proposto pela Convenção não significa necessariamente manter a Constituição de 1980. Entretanto, como não é muito certo o que pode acontecer no caso de uma derrota do texto proposto, o mais seguro é que, pelo menos até a convocatória de uma nova Convenção (que muito provavelmente seria muito mais recuada politicamente), mantenha-se a anterior. Ou seja, a idéia de “Rechaçar por uma [Constituição] melhor”, um dos principais slogans do Rechazo, é o famoso “na volta a gente compra”.

A verdadeira cara da campanha pelo Rechazo é sobejamente conhecida pelos chilenos. Em sua maioria, são personagens conhecidos por sua participação, direta ou indireta, no governo de Sebastián Piñera – quem, graças ao Acordo de Paz firmado em novembro de 2019, depois de a Polícia cegar centenas de jovens, pôde terminar seu mandato sem maiores danos e segue exercendo livremente atividade política e empresarial (inclusive após o Panama Papers). 

O núcleo central da campanha do Rechazo está composto por velhas raposas políticas dos dois principais partidos históricos da direita chilena (União Democrática Independente, UDI; e Renovación Nacional, RN) somado ao Evópoli, partido fundado em 2011 como uma resposta do sistema político à juventude mobilizada. Entretanto, não é para nada insignificante a presença de integrantes da extrema-direita, especialmente o grupo em torno do clã Kast (Partido Republicano), quem, ainda que tenha perdido para Gabriel Boric, obteve, em 202, seu maior alcance político nacional. Colocado nos bastidores, Kast e seu grupo parecem ser os responsáveis pelo “Lado B” dessa campanha, organizando ações clandestinas junto à mídia e à polícia, como veremos no final deste artigo. 

Segundo o jornal El Mostrador, 

“é possível constatar que a maioria dos representantes e dirigentes estão estreitamente ligados a [coalizão] Chile Vamos, e em alguns casos, são ex-funcionários do governo de Sebastián Piñera”.

Agregou-se a esse campo o Partido de la Gente, força política que surpreendeu no primeiro turno da última eleição presidencial, com a considerável quantidade de votos dados a Franco Parisi, um empresário que sequer vive no Chile. A estética desse partido se assemelha muito com a do bolsonarismo, com programas “de debate” pseudo-humorísticos no Youtube, no melhor estilo “Terça Livre” de Allan dos Santos. É uma das vozes mais estridentes na campanha, com slogans como “Nem Allende nem Pinochet”; indo abertamente contra quaisquer propostas de serviços públicos universais; afirmando que a nova Constituição prejudicará “os empreendedores”, “afundará o país”, “implantará uma ditadura” etc.  

Quanto à Democracia Cristã, bem, não deveria surpreender o fato de que muitos dos que dentro dela votaram Sim no Plebiscito de 2020 agora estejam entre os rostos mais utilizados na Campanha do Rechaço. Figuras como Fuad Chahín, Matías Walker e Ximena Rincón parecem interpretar um remake da postura (no mínimo vacilante) de sua corrente política nos idos de 1973. “Amarillos por el Rechazo”, liderado pelo escritor Cristián Warnken, reúne vários membros da DC, membros da ex-Concertación e figuras que participaram nos governos Bachelet.

Como os partidos em geral não gozam de muita simpatia popular, a direita tratou de inventar, na casa de centenas, organizações da “sociedade civil” que se somaram à Campanha pelo Rechazo. Algumas delas, como Abogados por Chile e Apoderados Chile, já existiam e historicamente são aparelhos privados de hegemonia da direita. Entretanto, foram 377 as organizações “cidadãs” inscritas pelo Rechazo – número significativamente superior aos inscritos pelo Apruebo (252) – o qual reúne, sabidamente, os movimentos sociais propriamente ditos, como as Coordinadoras, as feministas, o No+AFP etc.

A multiplicação artificial de organizações sociais de “carimbo” serviu não apenas para inflar artificialmente o número de supostos representantes da “cidadania” pelo Rechazo, como também para multiplicar aportes financeiros (pelas normas legais, as organizações podem doar mais do que os partidos) (1). 

Ainda é cedo para distinguir quais, dentre esses “agrupamentos cidadãos”, são mesmo apenas de papel, e quais são de ocasião, mas que podem efetivamente possuir algum grau de organicidade e possivelmente conheçam continuidade após o Plebiscito. Estamos falando de um conjunto de “movimentos” todos criados nos últimos seis meses, conectados com a defesa de interesses econômico-corporativos do capital, ou com a defesa do Estado penal, como: Salud Libre (interesses do mercado da saúde), No Más Víctimas (Estado de exceção), “Mi Derecho a Educar” (interesses empresariais na educação somado a guerra contra a educação pública e a liberdade de ensino), “Mentoras” (mulheres de direita), “Cabilderos” (liderada por um advogado corporativo); “Con Mi Plata No” (fundos de pensão privados, AFPs) e a Apyme (Associação de pequenos e microempresários)

Há ainda, dentro da campanha do Rechaço, espaços como “Hagámosla en serio”, iniciativa encabeçada por Mario Desbordes, que estava à frente do Ministério do Interior quando do estallido social de 2019; e “Una que nos una”, agrupamento liderado pela atriz Javiera Parada, filha de históricos militantes comunistas perseguidos pela ditadura, ex-militante da RD (Revolucion Democratica, corrente do Frente Amplio), e que afinal deu um super giro à direita durante o governo de Sebastián Piñera. 

O discurso pelo Rechazo deste grupo explora a ideia nacionalóide tacanha de que os chilenos devem “se unir” e que é a Nova Constituição que “divide” o país. Interessante notar ainda que seu nome apareceu na imprensa em 2021 porque Piñera, preocupado com a possível radicalidade do processo constituinte, tentou armar uma campanha publicitária para “esclarecer” o povo sobre dito processo. Contratou-se uma ONG de fachada criada pela atriz, denominada “Libertad y comunicación”, a qual recebeu em tempo record e sem licitação 25 milhões de pesos do Estado. 

Assim que se deu conta que não contaria sequer com um terço dos votos na Convenção, e que, portanto, não conseguiria reverter as votações, a direita redobra a aposta na deslegitimação da Convenção, de dentro e de fora da mesma, pintando os Constituintes como um bando de aloprados, rançosos e mal-intencionados. Daí nascem os motes de que a nova Constituição teria sido escrita com “raiva” e “ressentimento”: aquilo que expressa rebeldia é violência, e a violência da ordem é a paz sem voz. 

O capital: Transformismos, capturas e infiltrados

Nos segmentos televisivos (equivalente ao nosso horário político-partidário), da Franja Eleitoral do Rechazo, conta-se com o melhor que o dinheiro pode comprar em termos de publicidade e marketing. Entretanto, como a crise também é estética, também estão lá cenas como a bandeira do Chile sendo engolida pela bandeira da Venezuela (remontando à “Chilezuela”) ou uma na qual o artista e ativista “libertarian” argentino Emmanuel Danann aparece dando um “testemunho” sobre o “terrível” que é viver em um país que possui sistemas de saúde e de educação universais (2). Aliás, o PDG é pródigo de reunir figuras se apresentam pelo Rechazo com as credenciais de perseguidos pela ditadura pinochetista, como o respeitado acadêmico Mario Waissbluth ou o cantor Óscar Andrade – que afirma que a nova Constituição instalaria uma “ditadura ainda pior” que a de Pinochet no país. Nos spots publicitários do Partido de la Gente, o condutor da propaganda parece inspirado no estilo e formato Jovem Klan.  

O roteiro mais recorrente nas propagandas é o da pessoa que sofre algum tipo de opressão, que foi aos protestos de 2019, votou por uma nova Constituição em 2020, mas que agora se “deu conta” de que o resultado não é o esperado. Em um dos comerciais, por exemplo, aparece uma pessoa com nanismo dizendo que começou a sofrer bullying quando entrou na Universidade, e de algum modo muito difícil de entender, no final, os Constituintes terminam comparados aos que praticam bulliyng. Em outro, este sabidamente realizado por uma atriz, mostrava uma jovem líder estudantil decididamente convencida de que todo movimento tinha que ter “limites”. 

Em todas as inserções da Franja do Rechazo aparece um grupo mapuche (!) chamando o Rechaço. Trata-se de uma tal “Corporación de desarollo integral Mapuche Enama”, entidade de origens opacas, liderada por um ex-oficial das Forças Aéreas que serviu à ditadura de Pinochet, Hugo Alcamán – e que jamais foi uma liderança política mapuche. Este não é um “transformista” (político), como Javiera Parada, e sim o contrário: um infiltrado, que em algum momento após sua saída das Forças Armadas percebe que reivindicar seu sobrenome original e postular-se como representante crível dos mapuches poderia ser útil. 

Alcamán é a estirpe perfeita à ação política do capital, na medida em que este último tem a possibilidade de forjar seu próprio “adversário” – um com o qual se pode “negociar” sem nada ceder. Ao mesmo tempo em que diz defender um Estado plurinacional, o Convênio 169 da ONU, a consulta indígena, entre outras reivindicações reais desses povos, ele “denuncia” um suposto “etnomarxismo” nas organizações dos povos originários, a começar por Elisa Loncón, presidenta da Convenção Constitucional. Não importa que as famílias mapuche Alcamán o tenham desmentido muitas vezes, e que possua zero reconhecimento em sua comunidade: semeada a dúvida e a confusão, o balanço já é positivo. 

Patrocinada por empresas e agências estatais como CORFO (Estado), JAC (transportes), San José Farms (agro) e VTR (comunicações), a Corporación Enama tem relações orgânicas com a CPC (Camara de Comercio y Producción, uma das maiores entidades empresariais do país), a SOFOFA (Sociedade de Fomento Fabril), a CORCIN (Centro de Capacitação) e a ASEXMA (Associação Exportadora), como se pode observar em seu próprio sítio eletrônico [https://enama.cl/]. Vale lembrar que a patronal também costuma pressionar seus trabalhadores em seus votos dentro mesmo das empresas.

Voltando ao autodeclarado líder mapuche, este justifica seu voto contrário à Constituição porque ela “dividirá o país”, colaborando com o terrorismo psicológico segundo o qual os indígenas, a partir da nova Constituição, passariam a ser “privilegiados” e os não-indígenas recairiam em uma categoria inferior de cidadania. O pseudoargumento se repete acerca das mulheres, por conta da paridade de gênero – afinal, seria antinatural que nunca mais as mulheres ficassem em minoria, não é mesmo? 

O caso desta entidade, a qual também “treina” ativistas “voluntários” para “trabalho social” em territórios pobres mapuche, pode ser uma evidência de que além da violência crua, o Estado e o capital procuram atuar dentro mesmo das resistências mais radicais do país. Trata-se de, através da violência estatal e privada, eliminar as resistências antissistêmicas (coerção) e ao mesmo tempo delimitar e disciplinar pela positiva as atividades da maioria (consenso). 

Em outro spot da campanha, o cinismo se eleva a uma violência simbólica deliberada contra a comunidade LGBTQIA+. Neste, o personagem central é uma travesti (muito provavelmente um ator/atriz) cuja história infelizmente constitui uma realidade cruel para essa comunidade. Forçada a viver da prostituição, é atacada por um ex-cliente e sofre uma tentativa de assassinato. Entretanto, questionando-se “porque [os chilenos] não nos amamos mais”, a personagem chega à conclusão de que “seu primeiro ato de amor” teria sido “não denunciar” e “perdoar” seu agressor. “Rechaçar com amor”…um enorme desserviço à população!

A campanha do Rechazo vive, portanto, de disseminar a confusão sobre temas que não estão colocados, como a de que os próprios povos originários estariam divididos sobre o tema do Plebiscito; o mesmo com o movimento de mulheres, o movimento LGBTQIA+ e até mesmo o movimento anticapacitista. É assim, disfarçando-se de meras “organizações sociais cidadãs”, isentas de interesses particulares, infiltrando seus agentes nas resistências e mentindo deliberadamente, que a direita tenta fissurar o campo do Apruebo.

Cabe ainda mencionar o spot no qual se cometeu uma paródia de uma histórica composição de imagem e som criada para a campanha do “No” [à ditadura de Pinochet] em 1988. Os criadores da campanha original foram à imprensa repudiar o uso de sua criação artística para intenções políticas diametralmente opostas àquelas defendidas pela campanha do “No” no Plebiscito de 1988. Em uma outra jogada, um spot utiliza um formato estético mimetizando aqueles dos informes públicos do Serviço Eleitoral (SERVEL): o narrador lê orientações neutras sobre urnas, canetas e transportes – tipicamente dadas pela SERVEL – mas o que se vê na imagem é uma pessoa votando Rechazo

Dispositivos midiático-militares, ameaças e chantagens 

No dia 21 de julho, Pedro Pool, amigo e aliado de José Antonio Kast, dono de uma rede de supermercados do sul do país, afirmou em um canal do Youtube que caso ganhe o Apruebo, ele se dedicará a “organizar grupos de resistência de defesa da liberdade, da propriedade privada e das família, e vamos fazê-lo por bem ou por mal, que a esquerda não se engane”; e ainda ameaçou de morte diretamente pelo menos dois importantes Constituintes Fernando Átria e Jaime Bassa, além de pregar abertamente a “eliminação”, “extermínio” e  “fuzilamento” dos Convencionais. O caso ganhou repercussão internacional. Certamente, ainda que seja um personagem já muito chamuscado por um histórico de homenagens ao nazismo e violência intrafamiliar, entre outras, Pedro Pool externalizou aquilo que muitos dentro das classes dominantes pensam; e ganhou mais adeptos após o vídeo, num roteiro já bastante conhecido pelos brasileiros. 

Nos últimos dias anteriores ao Plebiscito, vimos acontecer uma verdadeira operação conjunta midiática e com, no mínimo, a conivência da PDI (Policía de Investigaciones), que acabou por derrubar uma ministra do governo de Gabriel Boric. Por certo, este governo tem se mostrado politicamente frágil e vacilante em questões políticas e sociais candentes, como o Estado de Exceção na região da Araucanía, ou mesmo a questão dos presos políticos (3). 

O que estamos a presenciar, entretanto, além disso, é uma direita muito articulada institucionalmente, dentro do Estado ampliado – tanto na sociedade civil quanto na sociedade política. A operação que tirou a ministra de Desenvolvimento Social, Jeanette Vega, do PPD (Partido por la Democracia) no último dia 25 de agosto, envolveu um vazamento de um arquivo investigativo da PDI diretamente para as mãos de Cristian Bofill, diretor do portal Ex-Ante o qual tem pautado alguns dos principais meios de comunicação do país, os quais reproduzem matérias publicadas no referido site, apresentado como mero Portal de Notícias, desde pelo menos meados de 2021. Segundo algumas análises, Bofill é o grande opositor do atual governo, e a divulgação da nota sobre a ministra foi um golpe de mestre. 

Tudo aconteceu em uma questão de dias, começando com a detenção de Héctor Llaitul, presidente de uma das mais importantes organizações mapuche, a CAM (Coordinadora Arauco Malleco). Essa é uma das poucas, talvez a única, organização mapuche que realiza não apenas a autodefesa, mas também ações diretas contra as madeireiras, naquilo que é legitimamente entendido como reparação histórica. A causa por roubo de madeira e violação da Lei de Segurança Nacional era de 2020, mas a ordem para sua prisão é muito coincidentemente realizada, com todo o circo midiático, a dias do Plebiscito, numa evidente provocação política. 

Algumas horas depois, sai uma nota no Ex-Ante sobre um telefonema – logo batizado pela mídia como “telefonaço” – de Jeanette Vega com Héctor Llaitul em junho deste ano. O ativista é seguido e grampeado pela Polícia desde 1997. Felipe Kast, um dos sobrinhos de José Antonio Kast, e o mais orgânico defensor dos interesses das madeireiras, aparece nos estúdios para celebrar a “justiça” e cobrar mais punição. O debate político nacional, na reta final da votação, é sequestrado pela agenda “violência” /“ódio” versus “paz”/“amor” – sendo, claro, violentos aqueles que resistem à invasão das suas terras e etnocídio de seu povo, e “pacifistas” aqueles que chegam até mesmo a organizar grupos de roubo de madeira com a participação de policiais (num semblante de milícia) para culpar os mapuches. Boric, preocupado com o pleito de 4 se setembro, aceita a demissão de Vega, e tem assim sua primeira perda ministerial no momento mais delicado. 

Não se sabe o grau de articulação dessas ações, e a que ponto ainda pode chegar a direita chilena diante de um resultado a ela desfavorável – afinal, a política e o conflito social não vão terminar no dia 4 de setembro, independentemente do resultado do Plebiscito. No melhor dos cenários, em uma vitória inconteste do Apruebo, os movimentos sociais e a esquerda chilena estarão diante de todas essas questões. Entretanto, poderão fazê-lo com uma nova arma nas mãos. Uma campanha suja e cínica merece uma derrota clara e transparente.

 

Notas


Voltaremos ao tema do financiamento visível e subterrâneo em outra oportunidade. Pelos dados até o momento disponíveis através da própria SERVEL, sabe-se que o volume de gastos declarados da campanha do Rechazo é pelo menos 3 vezes maior que a do Apruebo. Veículos independentes como Derechos Digitales e Fundación Sol vêm investigando as origens do dinheiro, ainda que seja muito difícil rastrar as doações não declaradas.
2 Podia ter sido algum brasileiro, entretanto não interessa à campanha vincular-se ao bolsonarismo.
3 O governo cumpriu a promessa de retirar as acusações, mas não se passou ao indulto, dividiram-se os casos, alguns foram julgados e outros ainda seguem em prisão preventiva.

 

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