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BRASIL

A população brasileira é realmente tão conservadora quanto a direita quer nos fazer acreditar? As opiniões sobre a educação mostram que não

Fernanda Moura* e Renata Aquino**
Contra o escola sem partido, tomar partido da Escola
Pedro Ladeira/Folhapress

Na última 4a feira, 24 de agosto, ocorreu uma live de apresentação pública dos resultados da Pesquisa Educação, Valores e Direitos. Esta pesquisa foi coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC em parceria com instituições e coletivos de todo o Brasil que fazem parte da articulação em defesa do direito à educação contra a censura. Nesta coalização participam organizações não governamentais e redes que atuam pelo direito humano à educação, entidades sindicais, associações científicas, redes de pesquisa, organizações vinculadas ao movimento feminista, negro e LGBTQI+, setores religiosos progressistas defensores da laicidade do Estado, coletivos políticos e órgãos públicos comprometidos com a defesa dos direitos humanos.

A pesquisa dividiu-se em duas etapas. Na primeira, qualitativa, sob responsabilidade da Plano CDE, foram realizadas entrevistas em profundidade com pessoas oriundas da classe C, os 50% de brasileiros que estão entre os 25% mais pobres e os 25% mais ricos. Na segunda etapa, sob responsabilidade do CESOP – Centro de Estudos de Opinião Pública da UNICAMP – e do Datafolha, foi feita uma pesquisa de opinião pública em março deste ano, em que 2.090 pessoas de 16 anos ou mais responderam uma série de perguntas, por sua vez elaboradas com base nas entrevistas da primeira etapa que indagaram sobre temas representativos do ultraconservadorismo na educação. Além de medir a sua informação sobre esses temas, essa pesquisa buscou também captar o apoio a essas pautas. Foram ouvidas pessoas de regiões metropolitanas e cidades do interior de todas as regiões do país, e o resultado tem uma margem de erro de dois pontos percentuais.

Nosso objetivo, enquanto articulação, era investigar algumas hipóteses. A primeira delas era: o ultraconservadorismo que arrasta essas pautas educacionais extremamente chamativas, como militarização de escolas e o ensino domiciliar, realmente se capilarizou? Essa era uma pergunta importante para nós porque esperávamos que ela pudesse revelar a existência, presumida por nós, de um grande abismo entre o que dizem as referências conservadoras e a sua base social. Afinal de contas, é difícil acreditar que, por exemplo, para famílias chefiadas e sustentadas por mulheres racializadas e pobres, o “ensino domiciliar” seja visto como um direito dos pais e não como uma perda de um direito essencial para famílias pobres: o direito à educação. E, como tem sido bastante discutido, são justamente essas mulheres o principal público alvo da campanha de reeleição do genocida já que essas mulheres, pretas e pobres, base das igrejas evangélicas pentecostais, o público cuja adesão a  primeira-dama Michele Bolsonaro tem tentado conquistar para o marido. 

Primeiramente, buscou-se medir o grau de conhecimento sobre as principais pautas conservadoras para a Educação. Nesse item, 86% das pessoas que ganham entre 5 e 10 salários mínimos já ouviram falar de ensino domiciliar/homeschooling e 93% entre os mais escolarizados já ouviram sobre ideologia de gênero, percentual que cai para 68% na população em geral. E, mesmo assim, só 22% dos brasileiros se consideram bem informados sobre esse assunto. Sobre a militarização da escola pública, 78% entre quem ganha mais de 10 salários mínimos já ouviu falar. E, em um dos resultados mais surpreendentes da pesquisa para nós, 73% das pessoas nunca tinham ouvido falar do Escola sem Partido! Mas se num primeiro momento isso poderia indicar então que a pauta desse movimento não encontra eco na sociedade, um outro dado da pesquisa nos chama para a realidade: 56% das pessoas concordam que professores devem evitar falar de política em sala de aula e 54% acham que pais podem proibir as escolas de ensinar temas que não aprovam. Nos parece, então, que apesar do movimento criado em 2004 (e que virou projeto de lei em 2014 a pedido da família Bolsonaro) ter caído no esquecimento – em grande medida devido às sucessivas derrotas jurídicas que o movimento vem sofrendo no STF – suas idéias continuam ecoando, seja por serem uma estratégia eleitoral de sucesso, seja por apelarem a diversos afetos em alta no país (defesa ultraconservadora da família, eu-pistemologia, deslegitimação da educação formal enquanto “doutrinação”). Afetos estes, diligentemente cultivados pela ultradireita.

Manifestação pela educação doméstica em frente ao Congresso: promessa bolsonarista (2021)
Manifestação pela educação doméstica em frente ao Congresso: promessa bolsonarista (2021)

Entretanto, para que continue a ser estratégia eleitoral de sucesso, é preciso que o pânico moral continue existindo. Isso explica por que apesar de ser tão mencionado nas falas públicas, e a despeito de termos tantos projetos de censura apresentados, temos tão poucos deles aprovados e ainda menos em vigência – se a ameaça representada pela doutrinação continua existindo, os auto-proclamados defensores da família continuam tendo razão de ser.

Uma vez apresentados, após gerar a devida atenção da imprensa e dos movimentos conservadores locais para os seus propositores, os projetos costumam ser esquecidos: eles tramitam a passos lentos ou são mesmo retirados pelos próprios parlamentares. Um projeto que foi votado e não foi aprovado, ou que foi aprovado e derrubado pela justiça, retira o poder de manobra do seu propositor e de todo o grupo que se beneficia do pânico moral. O próprio criador do movimento Escola Sem Partido (MESP), o procurador Miguel Nagib, já repetiu inúmeras vezes publicamente que o movimento foi utilizado por políticos que visavam se promover. O sucesso desse palanque eleitoral explica também porque sempre surgem novas supostas ameaças: esse movimento de censura mais recente começa em 2004 com o MESP falando de doutrinação comunista; cresce em 2011 com o MESP,  parlamentares e candidatos falando de “ideologia de gênero”, e hoje de maneira completamente independente do MESP parlamentares mobilizam o pânico moral contra pessoas trans apresentando projetos que visam impedir o uso dos banheiros de acordo com o gênero que a pessoa se identifica e impedem o uso da linguagem neutra nas escolas.    

Agora que relembramos desse trajeto que os projetos de censura fizeram nos anos recentes, vamos retomar o fio da meada sobre a pesquisa do Datafolha. Como olhar esses dados à luz dessa conjuntura? Aqui, apresentamos uma sugestão de interpretação: e se entendermos essa campanha pela censura como uma campanha de desinformação? Se nós usamos o conceito de desinformação, isso significa pensar que as próprias condições para um debate público estão prejudicadas por ações sistemáticas e deliberadas. Desinformação é um fenômeno de adoecimento de um ambiente informacional

Então, será que as pessoas realmente não querem que questões políticas sejam tratadas em sala de aula, ou será que apenas entenderam quando perguntadas sobre se os professores devem evitar falar de política em sala de aula que estaríamos falando de professores fazendo propaganda de determinado candidato? Aqui vale retornarmos a outra pesquisa também do Datafolha sobre o mesmo tema. O estudo, que foi realizado de 18 a 19 de dezembro de 2018, com 2.077 pessoas em 130 municípios de todo o país, chegou a conclusões bem mais favoráveis à discussão política na escola. Nela, 71% dos brasileiros concordaram com o debate de assuntos políticos nas escolas, enquanto apenas 28% dos entrevistados disseram discordar. Ainda segundo o Datafolha, o percentual de concordância com a frase cresceria de acordo com a escolaridade dos respondentes, chegando a 83% entre quem possui ensino superior. Então, será que as pessoas realmente acreditam que política não deve ser debatida na escola? Quando se entende que ao usarmos o termo política estamos falando de questões políticas, de questões socialmente relevantes e que dizem respeito à realidade brasileira, tudo indica que a resposta é não. Imaginando que haveria apoio à censura na escola quando usássemos a frase “política em sala de aula”, sabendo que o MESP e seus companheiros passaram anos desinformando a população sobre o que significa “falar de política”, elaboramos perguntas para testar as respostas quando usássemos exemplos de temas políticos clássicos do currículo escolar sem usar “política”. Nossa aposta foi que o MESP conseguiu demonizar o termo “política” assim, em abstrato, mas que na vida concreta da classe trabalhadora o apoio para que a escola fale de política, ou seja, da sua realidade material concreta, continuava. Esse caminho de pesquisa se mostrou acertado, como podemos perceber nos resultados.

Quando usamos exemplos concretos do que significa falar de política,pobreza” e “desigualdade social, 93,3% da população concorda que a escola precisa tratar disso. Assim, os dados da pesquisa Datafolha deste ano, e aqueles de final de 2018, deixam claro que os movimentos pró-censura na educação, como o Escola sem Partido, e aqueles que buscam entrincheirar os direitos dos pais no meio do direito à educação clamando que professores “doutrinam”, como os pró-ensino domiciliar/homeschooling, realizam uma campanha de desinformação e manipulação do debate público. Podemos dizer sem meias palavras que a população brasileira é alvo de uma campanha de desinformação para perder sua capacidade de defender que a escola trate dos temas que essa população considera importantes. 

A foto da favela de Paraisópolis ao lado de um condomínio do Morumbi realizada pelo fotógrafo Tuca Vieira em 2004 passou a ser uma das mais claras imagens da desigualdade social no Brasil.Tuca Vieira
A foto da favela de Paraisópolis ao lado de um condomínio do Morumbi realizada pelo fotógrafo Tuca Vieira em 2004 passou a ser uma das mais claras imagens da desigualdade social no Brasil.

Nos chamaram muito a atenção também as respostas relativas a gênero e sexualidade na escola. Estamos desde 2011, mais ou menos, tendo que lidar com o pânico moral criado em torno da ideologia de gênero. Já inventaram que o PT enviou um “kit gay para as escolas e até uma mamadeira fálica. Entretanto, as questões sobre sexualidade, mesmo de caráter mais gerais, revelaram um posicionamento bastante progressista: para 71% das pessoas a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade, número que sobe para 84% entre os respondentes LGBTQs que provavelmente encontraram ainda mais dificuldade que o público cis-hétero para dialogar sobre esses temas com a própria familia. E para 73% dos brasileiros, a educação sexual deve estar presente nas escolas, números ainda melhores do que na última vez que o Datafolha fez a mesma pergunta no final de 2018; naquela ocasião, a pesquisa obteve 54% a favor e 44% contrários. Quando vamos para perguntas específicas os números são ainda mais impressionantes: 96% dos entrevistados concordam que a escola deve fornecer informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e formas de prevenção; 93% concordam que estudantes devem receber orientações para evitar gestações indesejadas; e 91% concordam que educação sexual nas escolas ajuda crianças e adolescentes a prevenirem o abuso sexual. Mais uma vez, assim como nas perguntas sobre política na escola, quando tratamos dos objetivos concretos da educação sexual nas escolas (prevenção de abuso e gravidez, dentre outros), fica claro que a população apoia esse tema no currículo, e que quando diz que não o apoia é porque está sendo desinformada sobre o que significa fazer esse debate. 

Com relação às questões de gênero o padrão de respostas se mantém. 96% das pessoas acreditam que devem receber, nas escolas, informações sobre as leis que punem a violência contra mulheres, o que inclusive está previsto na própria lei Maria da Penha. Quando falamos de reprodução social, 93% acreditam que as escolas precisam ensinar meninos a dividirem com meninas e mulheres as tarefas de casa. E 88% acreditam que é importante discutir as desigualdades entre homens e mulheres. Ou seja, por mais que a população em geral possa não saber o significado da palavra gênero, e mesmo que uma parcela desse público possa ter medo do fantasma da “ideologia de gênero”, ela percebe nitidamente que existem desigualdade sociais entre homens e mulheres, que essa desigualdade é um problema e que é papel da escola ajudar a resolver o problema.

E qual a posição da população frente a outras questões que o ultraconservadorismo tenta interditar? No que se trata de racismo, 90% concordam que a discriminação racial tem que ser discutida pelos professores na escola, o que nos faz perceber que apesar de toda a dificuldade de implantar as leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008, que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura afrobrasileira e indígena nas escolas, temos conseguido derrubar o mito da democracia racial no país. A pesquisa mostrou ainda que 50% da população brasileira é a favor das cotas raciais em universidades públicas e apenas 34% contra, o que curiosamente bate de maneira muito próxima com o percentual de intenção de votos em Bolsonaro segundo o Datafolha de 18/08 e dos indices de aprovação de seu governo ao longo do mandato. Esse dado é fundamental neste momento em que se discute a revisão da lei de cotas – o que, vale lembrar, é um momento de avaliação dos resultados dessa lei de sucesso, não um prazo para seu fim. 

 

Com relação à questão religiosa, mais de 90% concordam que a escola pública deve respeitar todas as crenças religiosas, inclusive o candomblé, a umbanda e as pessoas que não têm religião. Importante lembrar que a escola é justamente o lugar em que as crianças de terreiro mais se sentem discriminadas. Essa fenda entre a realidade das escolas e a opinião da população sobre a escola ideal nos abre brechas para discutir a importância do Estado laico e para voltarmos a discutir o absurdo que é a existência de um ensino religioso nas escolas públicas, principalmente quando este é confessional, ou seja, ligado a uma determinada religião específica – geralmente católica ou evangélica – e, mesmo assim, financiado com dinheiro público. Será que os responsáveis acham que esta é realmente a melhor forma de empregar as verbas destinadas à educação? Provavelmente não.   

A pesquisa deixa claro que a população brasileira acredita que a escola é um espaço onde as crianças e adolescentes devem aprender a conviver com a diferença, e que a escola não só deve preparar para o convívio democrático como é fundamental para uma sociedade democrática. Quando perguntados sobre o ensino domiciliar/homeschooling, a grande prioridade do governo Bolsonaro, 99% da população julga que frequentar a escola é importante para as crianças e 78% discordam que pais tenham o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. Quando perguntados sobre a inclusão de alunos com deficiência, 80% dos brasileiros são a favor da inclusão de crianças e adolescentes com deficiência em colégios convencionais. Na pesquisa qualitativa ficou claro que havia uma motivação bastante concreta: as crianças sem deficiência já estudam com crianças com deficiência e já não se pode mais pensar nas escolas sem estas crianças já que todas são amigas. Fica muito claro que a população brasileira não acredita apenas que é benéfico para as crianças e adolescentes com deficiência estar em meio a crianças sem deficiências, mas que as crianças e adolescentes sem deficiência se beneficiam do convívio com crianças e adolescentes com deficiência. Uma opinião muito diferente da emitida pelo pastor, e então ministro da educação, Milton Ribeiro, de que alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos outros alunos. Fica nítido, assim, que diagnosticar a necessidade de mais recursos para equipar as escolas e contratar profissionais para crianças com deficiências é completamente diferente de querer excluir essas crianças das escolas regulares.

Usamos o termo “campanha de desinformação” para destacar a atualidade e a gravidade do que estamos discutindo: obviamente, não é novo um grupo social manipular um problema para poder sugerir as soluções que lhes são mais convenientes; mas estamos falando, neste caso, de uma ação coordenada, amplificada pelas tecnologias digitais, para atacar professores e enganar os cidadãos brasileiros. Pode-se dizer, então, que o Movimento Escola sem Partido, o MBL, o bolsonarismo, enfim, os grupos que se organizaram digitalmente pela pauta da censura, promoveram uma campanha de desinformação focada na educação brasileira. E agora caminhamos sobre os escombros dessa campanha: para dar um exemplo só, vide o MEC, desorganizado e transformado em um balcão de negócios religiosos, que quase não conseguiu realizar o ENEM no ano anterior

Marcha do MBL pelo Escola sem Partido em agosto de 2017.Facebook
Marcha do MBL pelo Escola sem Partido em agosto de 2017.

Políticos de direita adoram falar sobre os supostos problemas da educação brasileira: doutrinação política e ideológica, doutrinação em gênero e sexualidade, doutrinação em umbanda e candomblé. Segundo esses grupos existir desigualdade, racismo e misoginia não são problemas, o problema é professor falar disso na escola. Importante lembrar que o Movimento Escola Sem Partido chegou a judicializar a redação do ENEM por ser contra o critério de correção que anulava a redação caso o candidato desrespeitasse os direitos humanos em seu texto. Segundo o movimento os candidatos não deveriam ser coagidos a responder o que o INEP quisesse ouvir e deveriam ter respeitada a sua “liberdade de expressão”. O grande exemplo de doutrinação na redação constantemente citado pelo movimento foi o tema da redação do ENEM de 2015: A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Após a judicialização o critério de respeito aos direitos humanos foi mantido mas deixou de invalidar a redação como um todo. Até hoje o movimento se orgulha de sua atuação no caso como é possível conferir no Tweet recente:

Tweet

É assim, se utilizando de um discurso de ódio contra professores é os verdadeiros problemas da educação brasileira são mascarados ao mesmo tempo em que cria um inimigo: o professor – que, devemos lembrar, também são, ou deveriam ser, defensores dos direitos humanos. Contra esse inimigo, ou melhor, essa inimiga – visto que o magistério de nivel básico no Brasil é majoritariamente feminino –, em uma verdadeira Caça às Bruxas, se insurgem as figuras de direita que se apresentam como defensores da família e das crianças e jovens. Se apresentarm, apenas, pois seu trabalho concreto vai sempre no sentido oposto ao dos direitos das crianças e da proteção de sua existência visto que, de maneira geral, defendem o liberalismo economico em sua forma mais brutal. E a hipocrisia não para por aí: vide, por exemplo, o caso do ex-vereador Gabriel Monteiro, eleito pelo PL e cria do MBL, que teve seu mandato de vereador recentemente cassado no Rio de Janeiro por quebra de decoro parlamentar devido às acusações de estupro, assédio sexual e vídeos forjados para a internet. O ex-vereador, que fazia sexo com menores de idade até na frente de seus assessores, inclusive filmando o ato, e que não teve pudor de declarar que gostava de “novinhas”, era um defensor comprometido do Escola Sem Partido que chegou a ir “inspecionar” escolas. E seu caso não foi o único: em Campo Grande, capital do Mato Grosso, o projeto Escola Sem Partido foi apresentado por um vereador, Alceu Bueno (então presidente estadual do PSL) que pouco depois foi condenado por exploração sexual de vulnerável. Se lembramos que o PL de Gabriel Monteiro divulgou a sua candidatura para deputado federal enquanto ele já era investigado por diversas acusações de violência, transparece que existe, sim, um apoio no mínimo tácito a violência (inclusive sexual) contra crianças e adolescentes por parte da direita que fica ainda mais evidente na atuação de figuras como a do deputado federal Delegado Waldir (PSL-GO) defensor do Escola Sem Partido e autor do projeto de lei 4275/2019 que revogaria a lei 13.010 de 2014, chamada pela direita de “lei da palmada” e pela esquerda de Lei menino Bernardo, e que estabelece que as crianças e os adolescentes tem o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Vale lembrar que o Movimento Escola Sem Partido também é contrário a essa lei.

Quando perguntados sobre os principais problemas da educação brasileira, só 3% das pessoas consideraram que o problema são os conteúdos ensinados em sala. A maioria aponta questões muito mais objetivas tais como a falta de investimento dos governos nas escolas públicas, indicada por 28% dos respondentes, os baixos salários e a desvalorização dos professores, escolhida por 17%, e a falta de infraestrutura das escolas, escolhida por 12% das respostas. O consenso sobre os problemas estruturais da escola pública provavelmente impacta na opinião sobre a militarização de escolas. A maioria da população concorda totalmente com a afirmação “se a escola for organizada e com boa estrutura, eu prefiro que não seja militar”. As escolas militares são vendidas pela direita e pela mídia em geral como sendo mais organizadas, mais seguras e mais bem estruturadas, o que lhes garantiria a possibilidade de proporcionar uma melhor educação. Ou seja, responderia aos anseios da população que deseja melhores escolas públicas. No entanto, novamente se trata apenas de propaganda enganosa. As escolas públicas municipais e estaduais militarizadas, para além da rigidez das regras de conduta, guardam muito poucas similaridades com os colégios militares federais e, mesmo ao compararmos estes com outros colégios semelhantes em termo de investimentos tais como o Colégio Pedro II e os colégios de aplicação das universidades públicas, nos quais há investimento em infraestrutura, valorização docente e seleção de alunos – tudo o que não há nas escolas públicas regulares das redes municipais e estaduais – vemos que o CPII e os CAp apresentam resultados superiores ao das escolas militares.  Além disso, 72% dos respondentes dizem confiar mais em professores do que em militares para trabalhar em instituições de ensino. E deveriam: a todo momento vemos notícias de violências sofridas por alunos em escolas militares, e em grande parte dos casos os agressores são os próprios militares, aqueles responsáveis por supostamente garantir a segurança dos alunos. Relatórios da própria PM do Distrito Federal dão conta que tais ocorrências dobraram nas escolas militarizadas do DF. E um estudante de 13 anos foi morto por colegas na porta da escola militarizada em que estudavam em Apucarana, município do Paraná.  

Vídeo revelado pela Revista Fórum na reportagem O uso eleitoral de crianças e jovens de escolas militares por Bolsonaro. Fonte

Fica claro que a população brasileira é muito menos conservadora do que a direita tenta nos fazer crer. Isso significa que a pauta conservadora sobre gênero, sexualidade, raça, religião e política na escola não têm relevância para a população? Não. Essas questões têm extrema relevância e podem ser mobilizadas para gerar pânicos morais. O importante aqui é saber que a forma para evitar essa instrumentalização não é deixando de falar sobre esses temas; nos submetermos à auto-censura cedendo à essa pressão só dá mais força aos conservadores ao fazer parecer que o “campo progressista” tem algo a esconder. Basta lembrar que em maio de 2011 a então presidenta Dilma cedeu à pressão e mandou suspender a distribuição do kit de combate à homofobia declarando que o governo não faria ‘propaganda de opção sexual’, e, no entanto, o fantasma da ideologia de gênero voltou para assombrá-la durante a campanha à reeleição de 2014 e durante o processo do golpe de 2016 no qual deputados justificaram seu voto na defesa da (sua própria) família e para evitar que “as crianças aprendam sexo nas escolas”.

2017, Congresso NacionalJosé Cruz/Agência Brasil
2017, Congresso Nacional

As pessoas temem por suas famílias e só vamos conseguir “furar a bolha” da esquerda quando conseguirmos estabelecer um diálogo franco e honesto sobre qual é o nosso projeto para educação e por que é assim que pensamos. É preciso que deixemos bem claro que se existe um lado que defende a infância, esse lado é o nosso. É o nosso lado que empodera as crianças para manterem sua sanidade mental em uma sociedade racista e machista que as sexualiza, as criminaliza e que não as trata como sujeitas de direitos, mas apenas como consumidoras e possível mão de obra ainda mais barata e precarizada. É o nosso lado que luta contra a violência obstétrica, que luta por licença maternidade e amamentação, por vagas em creches para dar suporte às mães trabalhadoras, por uma escola pública de qualidade, por comida farta e sem veneno, contra a diminuição da maioridade penal, por vacina, saúde pública e por emprego e renda. Somos nós que lutamos pelas crianças, seus pais e suas mães. Somos nós que lutamos pelo presente e pelo futuro. 

 

* Fernanda Moura é Professora, Doutoranda em Educação pela PUC-Rio e integrante do Observatório da Laicidade na Educação e do coletivo Professores contra o Escola Sem Partido

** Renata Aquino é Professora, Mestra em Ensino de História pela UERJ e Integrante do coletivo Professores contra o Escola Sem Partido