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MUNDO

2022: Itália num beco com difícil saída

Tiago Castelhano*
Giorgia Meloni
AP Photo

Queda do Governo liderado por Mario Draghi

O Governo italiano, liderado por Mario Draghi, que era apoiado por quase todo o espectro político italiano, desde o partido Liga de Matteo Salvini até ao Partido Democrático (PD), passando pelo movimento 5 Estrelas (M5s) e a Força Itália (FI) de Sílvio Berlusconi, caiu no final de julho.

Convém antes relembrar que Mario Draghi chegou ao poder, há cerca de um ano e meio, como o homem que iria salvar Itália da profunda desorganização que se vivia do ponto de vista económico e sobretudo sanitário devido à crise pandémica. Nesse contexto, Draghi seria o técnico que iria colocar de lado a política e “fazer o que precisa ser feito”. É óbvio que se olharmos para a base de apoio do seu governo era fácil perceber que, mais cedo ou mais tarde, iriam existir contradições entre os partidos. Ainda mais sendo Draghi conhecido como alguém que não dá grande importância a ideias diferentes das suas e tendo o capital político, em Itália e na Europa, de ser um “super técnico” que está cá “para resolver todos os problemas”. Sabemos bem que essa aura de Draghi foi insuflada e patrocinada pelos tecnocratas de Bruxelas, banqueiros e poderosos pelo papel que desempenhou na liderança do Banco Central Europeu (BCE) e da forma como abordou a “crise do euro”.

A crise governamental italiana surgiu inicialmente com a ameaça da retirada de apoio do M5s e passado uma semana caiu definitivamente com a retirada de apoio também da Liga e da Força Itália. Além do Presidente da República, da maioria da imprensa, dos banqueiros, dos donos das grandes empresas e de alguns pequenos partidos centristas formados recentemente, só o PD, partido de centro-esquerda, ficou até ao fim a tentar que Draghi não saísse.

Na sequência da queda do Governo foram marcadas novas eleições para o dia 25 de setembro e as perspetivas que se colocam para a classe trabalhadora que vive em Itália não são as mais animadoras.

Perspectivas Eleitorais

Quase todas as sondagens que saíram até hoje, colocam em primeiro lugar, com 23% a 25%, o partido Irmãos de Itália (IdI) liderado por Giorgia Meloni, embora em disputa com o PD. O IdI é um partido neo-fascista que descende do Movimento Social Italiano, fundado por ex-membros do regime fascista italiano, e da sua sucessora Aliança Nacional. Há 4 anos obteve cerca de 5% dos votos, aparecendo agora como a ponta de lança do bloco da direita e extrema-direita apresentando-se estes coligados nestas eleições.

A decisão do IdI de não integrar o governo de unidade nacional de Draghi (que tomou posse em fevereiro de 2021) não lhe podia ter corrido melhor. O crescimento exponencial do IdI fez com que Salvini e Berlusconi tivessem que aceitar a possibilidade, muito real, de Meloni se tornar a próxima primeira-ministra de Itália. Esta possibilidade já lhe dá o protagonismo na campanha eleitoral e na coligação estando, hoje, em todos os meios de comunicação italianos e internacionais.

Liga de Salvini surge nas sondagens em 3ºlugar com cerca de 13-14%, a sua proximidade com Putin custou-lhe caro e tem vindo a ser penalizado em benefício do IdI que tem uma posição próxima da NATO. Além da guerra na Ucrânia, a Liga perdeu com a sua participação no Governo de Draghi e com o recuo em algumas das suas posições iniciais sobre a União Europeia e o Euro. O desgaste da Liga ao longo dos anos e a sua dificuldade em se implementar a nível nacional, sobretudo no sul de Itália, ajudam também a explicar a sua queda em relação a eleições anteriores em que chegou a atingir cerca de 34% dos votos. Contudo, Salvini aposta que na campanha consiga aumentar os números e até passar o IdI.

A terceira força do bloco liderado por Meloni e que se encontra em 5º lugar nas sondagens é o Força Itália do conhecido Sílvio Berlusconi, perspetivando-se que obtenha cerca de 8% a 10%. O partido de Berlusconi cumpre o papel de normalização da coligação da extrema-direita e tenta passar a imagem que é a força política da coligação em quem se pode confiar.

Nas sondagens, em segundo lugar, aparece o PD liderado por Enrico Letta com cerca de 22%. Contudo, esta votação é insuficiente para ganhar as eleições de setembro e mais ainda para chegar aos 46% (ou mais) que a direita e a extrema-direita apresentam em conjunto nas sondagens.

Enrico Letta tem andado numa roda-viva em busca da solução aritmética que possa permitir governar Itália. Neste sentido, fechou um acordo com o partido Acção, liberal e europeísta, que, entretanto, já foi quebrado devido à entrada de partidos de esquerda para a coligação. Carlo Calenda, líder do partido Acção e ex-ministro da economia e do desenvolvimento do Governo de Renzi (PD), colocava como condição para estar coligado com PD, bloquear a entrada de partidos de esquerda, com o intuito de afunilar a coligação ao centro para dar continuidade ao programa de Draghi. No passado fim de semana, ao se efetivar a entrada da coligação Nova Energia, formada pela Esquerda Italiana e a Europa Verde, no bloco liderado pelo PD, o partido Acção rompeu o acordo.

Desta forma, o bloco do PD encontra-se numa crise a dias de ter que entregar as siglas das coligações em quem se vai votar. Mas o mais grave ou mesmo trágico é a ausência de uma saída pela esquerda nestas eleições, fazendo lembrar o filme Abril, do italiano Nanni Moretti, em que uma das personagens assiste a um debate televisivo entre Berlusconi e o socialista Massimo d”Alema e dispara aos gritos “diz qualquer coisa de esquerda”.

A verdade é que o PD se restringe a procurar acordos com partidos para que de forma aritmética possa chegar ao governo e não em construir uma resposta programática e ideológica de esquerda. Enquanto Meloni, Salvini e Berlusconi se encontram já em campanha a promover o seu programa, o PD tenta entender-se com tudo e todos sem qualquer tipo de saída pela esquerda, o que não surpreende dado a ideologia neoliberal ter dominado a agenda do partido. O receio de um governo de Meloni tem pressionado Enrico Letta inclusive a tentar um acordo com o M5s mas este, até hoje, parece fora de hipótese.

M5s vive mais uma crise, embora esta pareça ser mais profunda que as anteriores. O anterior líder, Luigi di Maio, cindiu com o M5s em junho e já formou um novo partido, o Juntos pelo Futuro, que se situa no centro direita. A indefinição ideológica do M5s, “não somos de esquerda nem de direita”, que persiste desde a sua fundação gerou ao longo do tempo várias ruturas e contradições internas. A participação em anteriores Governos, inclusive com a Liga de Salvini e o impacto da decisão de Giuseppe Conte, líder do M5s, de ameaçar Draghi com a retirada de apoio caso não aceitasse as suas condições, fez com que esteja em queda nas sondagens, não chegando a ter mais de 11%.

A Esquerda em Itália

A esquerda italiana sofre uma profunda crise há mais de uma década. Desde 2008 que a representação parlamentar praticamente desapareceu e abriu-se uma forte crise, que já vinha de antes, no principal partido da esquerda, a Refundação Comunista (RC) que o levou à marginalidade. Pensar e debater o que se passou em Itália é um exercício que pode ser útil, mas não é o objetivo deste artigo. Porém, importa assinalá-lo para se entender que hoje em Itália a classe trabalhadora na sua diversidade, mulheres, LGBT’S, pessoas racializadas e imigrantes se encontram órfãs de um instrumento político que dê voz às suas reivindicações e chegue às massas.

A esquerda em Itália vive assim na marginalidade e profundamente fragmentada em pequenos partidos e infelizmente as próximas eleições não parecem alterar de forma qualitativa esse panorama, o que é dramático dado a disputa eleitoral estar a ser polarizada entre a saída da extrema-direita e a saída mainstream e centrista anteriormente preconizada por Draghi e que o PD afincadamente defende.

Nas próximas eleições, à esquerda, apresenta-se a já mencionada coligação Nova Energia (NE) que pressionada pelo receio da extrema-direita decidiu coligar-se com o PD, embora tenha sido oposição ao governo de união nacional de que PD fez parte. A NE aparece nas sondagens com cerca de 3%. E a par desta vai apresentar-se também a eleições pela esquerda, a União Popular (UP), uma tentativa recente da formação de um partido entre a RC e o Poder ao Povo (PP). Todavia, esta organização sendo recente terá dificuldades em se fazer ver nestas eleições.

Mas a necessidade de apresentação de uma candidatura de esquerda, com um programa de combate à extrema-direita, mas também de resposta programática aos problemas da classe trabalhadora é uma necessidade, dado o longo deserto que a esquerda italiana tem vivido. Infelizmente, e admitindo que não existem soluções mágicas para esta situação difícil, a máxima unidade na esquerda anticapitalista para derrotar a fragmentação e sair da marginalidade podiam ser passos iniciais no sentido de ultrapassar os problemas.

O fracasso da apresentação de uma candidatura que juntasse a União Popular e a Nova Energia é um sinal de que o caminho será mais difícil.

* Texto originalmente na Semear o Futuro.