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Colunas

Como a saúde pública vai influenciar as eleições de 2022?

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Por Jorge Henrique e Lígia Maria, do DF

Em outubro de 2022, brasileiros e brasileiras irão novamente às urnas para eleger representantes para as assembleias legislativas dos estados, câmara dos deputados, senado e presidência da república. Pelo contexto de acirramento de variadas crises, certamente estaremos diante das eleições mais importantes do período pós redemocratização. Nessa atual situação, passada a fase mais crítica da pandemia de COVID19 e considerando a relação social de forças, é importante uma leitura sobre os elementos da conjuntura que darão a dinâmica política do período eleitoral no Brasil, entre eles a saúde pública.

Nos últimos dois anos, o Brasil sofreu a perda de 678 mil vidas, provocada pelo novo coronavírus. Em números absolutos, o país só fica atrás dos EUA, que passou de um milhão de mortos pela doença (1). Ao menos 60% dos brasileiros conhecem alguém que morreu vítima da Covid-19 (2). Aliado à situação de desemprego, insegurança alimentar e violência urbana, que estão em alta e guardam relações íntimas com a crise sanitária, isso expressa, sem exagero semântico, uma verdadeira hecatombe social.   

Hoje, o país passa por um momento de arrefecimento dessa crise sanitária, principalmente por conta da vacinação, que tem reduzido o número de mortes. É possível, por conta da estabilidade da transmissão do vírus, que a pandemia não seja um elemento central de mobilização dos eleitores até outubro. Em condições normais de temperatura e pressão, um organismo tende a permanecer sem muitas reações. Mas se isso é verdade para o atual momento, é fato também que a (falta de) gestão de Bolsonaro, na pandemia, fez aumentar sua rejeição entre a população.

Bolsonaro negou a pandemia, menosprezou as mortes, substituiu a cooperação e a pactuação solidária entre os governos e os poderes da federação pelo confronto político aberto, sabotou o isolamento social ao criar uma dicotomia entre vidas e a economia, estimulou a imunidade de rebanho, criticou o uso de máscaras, promoveu – deliberadamente – aglomerações, defendeu o uso de medicamentos sem eficácia e, ainda, desestimulou e atrasou a vacinação – motivo da instalação CPI da Pandemia no Senado.

A combinação destes elementos com o aumento vertiginoso do número de mortes, em 2020 e 2021, expressou-se com a perda de popularidade de Bolsonaro. Antes do anúncio do fim da pandemia pelo governo federal, em abril, o presidente chegou a atingir o índice de 54% de rejeição, na fase mais aguda de transmissão da Covid19. Este fato demonstra o peso da pandemia na avaliação do governo federal e, também, na cristalização de uma oposição expressiva a Jair Messias.

Além das mortes, a condução desastrosa de Bolsonaro levou o país a uma recessão econômica. Assolam o Brasil o desemprego, a perda da renda e a fome – que atinge 33 milhões de brasileiros e brasileiras. Esta situação influencia sobremaneira o quadro de saúde de uma sociedade. Os determinantes sociais se evisceram de forma negativa para populações em situação de vulnerabilidade, principalmente na ocasião de uma emergência sanitária, onde as estratégias de mitigação da crise sanitária e social não chegam para os grupos sem proteção social, sem emprego e renda. O exemplo disso é o número de óbitos por COVID19 entre a população negra (250/ 100 mil hab), maior do que na população branca (157/ 100 mil hab), como demonstra o relatório da CPI da Pandemia do Senado (3).

Os problemas sanitários gerados pela pandemia são parte dos problemas econômicos e sociais do País. As 678 mil mortes por COVID19, o desemprego, a inflação alta e a fome compõem o mesmo cenário político no Brasil e são corolários da gestão desastrosa do governo federal. Foi Bolsonaro que assumiu, desde o início de seu governo, uma política econômica de austeridade, com redução dos investimentos em políticas públicas, em ciência e tecnologia, em educação e em saúde.

O Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, mesmo após ter sofrido um duro golpe com a Emenda Constitucional 95 de 2016, a qual institucionaliza o desfinanciamento da saúde pública no Brasil, vem passando por um processo intenso de sucateamento. Há um processo de desabastecimento de tecnologias, insumos e medicamentos na área da saúde e, além disso, programas estão sendo interrompidos. Enquanto o governo Bolsonaro desmonta a Rede Cegonha, referência na assistência à saúde das mulheres, de parturientes e de crianças, e a substitui pela Rami (Rede de Assistência Materna e Infantil), normatizando o incentivo à violência obstétrica e à assistência hospitalocêntrica e médico-centrada em detrimento da atenção multiprofissional em rede, a mortalidade materna aumentou – razão de 57/ 100 mil hab em 2019 para 107/ 100 mil hab em 2021 – (4), e a mortalidade infantil segue como desafio – o País registra anualmente 20 mil mortes evitáveis em crianças menores de 1 ano, como revela o Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz/ Unifase (5).

A mortalidade por doenças expressa a realidade social do desemprego, da falta de renda e de habitação, e da fome. O déficit de produtos estratégicos para a saúde revela a dependência do Brasil e do SUS dos produtos fabricados pelos países centrais, principalmente dos insumos farmacêuticos, dos componentes tecnológicos e dos produtos acabados. Expressa, também, os sucessivos cortes nas áreas de educação, ciência, tecnologia, e a redução do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), responsável pela produção de medicamentos, vacinas e equipamentos para assistência hospitalar.

De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), faltam mais de 40 tipos de medicamentos – entre antibióticos, analgésicos, anti-inflamatórios – em 14 estados brasileiros. Além disso, o governo vem desmontando o Programa Farmácia Popular, que disponibiliza medicamentos gratuitos para o tratamento de diabetes, asma e hipertensão, e complementa a compra de medicamentos para doença de Parkinson, osteoporose, glaucoma, anticoncepção e fraldas geriátricas. A população está sendo afetada, também, com a redução de exames de rastreamento e diagnóstico – como mamografia, importante na prevenção ao câncer de mama -, de cirurgias oncológicas e de acesso a tratamento quimioterápico.

Bolsonaro também ataca a atenção básica à saúde e a área da saúde mental. Além de ter revogado parte substancial da normatização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) – conquista pela luta do movimento popular antimanicomial – e reduzido o financiamento para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Residências Terapêuticas, o atual presidente da república extinguiu a Coordenação de Saúde Mental e das Pessoas com Deficiência. Esse movimento consolida o abandono a uma área extremamente sensível para este momento de pandemia e crise econômica, no qual a saúde mental das pessoas é bastante afetada, pois a redução de direitos sociais e de ofertas de serviços de saúde significa o aumento do sofrimento psíquico da população.

É nos territórios que a supressão de direitos se expressa como ausência de saúde e é lá, também, onde a assistência, a promoção e a prevenção foram destituídas do seu espaço de ser e de criar condições de bem-estar através do nível de atenção que tem esse cenário como foco de sua atuação. Bolsonaro golpeou centralmente a atenção básica à saúde, potencializando os prejuízos impostos pelo desfinanciamento à saúde pública, pelas reformas na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e pela mudança na carteira de serviços e no modelo de financiamento do setor. É na gestão da atenção básica à saúde onde foram alocados bolsonaristas que afirmaram que o objetivo do atual governo é “criar um sistema de saúde totalmente liberal” e, hoje, onde está Raphael Parente, incentivador do desmonte da atenção à saúde materna e infantil, da violência obstétrica e da desestruturação do acesso ao aborto legal no País.

Apesar da sanha de morte de Bolsonaro e mesmo com todos os problemas financeiros, administrativos e assistenciais, a saúde pública brasileira ainda é imprescindível para a população. Após 30 anos de existência, durante a pior crise sanitária pela qual o País passou, o SUS mobilizou todas as suas forças para garantir atendimento à população. Além disso, conquistou a simpatia de grande parcela da sociedade, que passou a vê-lo de outra forma, contrariando a narrativa histórica disseminada pela grande mídia de que o SUS era espaço de concentração de sofrimento, desassistência e falta de qualidade em serviço. Infelizmente, a saúde pública só não se vê livre dos neoliberais de plantão e dos empresários da saúde. Estes não descansam em suas tentativas de destruir o SUS ou de, pelo menos, abocanhar parcelas cada vez maiores de seu orçamento.

Em meio a defensores e detratores, é fato que o período eleitoral irá cobrar uma posição sobre o SUS que se tornou popular na pandemia. Muitos darão um verniz publicitário, mas os debates não deixarão escapar o olhar mais técnico sobre a saúde pública. São muitos problemas que deterioram cada vez mais a vida dos brasileiros e brasileiras, por isso serão obrigatórias as discussões que apontem soluções para os problemas mais imediatos da população.

Concretizar o direito à saúde, hoje, ultrapassa a visão meramente formal do acesso a atendimentos em unidades básicas, prontos socorros e pronto atendimentos. Significa propor políticas públicas que tenham em seu escopo de atividades ações sobre a realidade das pessoas. Destarte, é preciso que haja investimento na Atenção Primária em Saúde (APS), considerando a Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo ordenador das ações de vigilância, prevenção e promoção da saúde nos territórios.

Frente às formas de produzir a realidade, somente esse modelo pode criar métodos, estratégias e iniciativas que possibilitem a solução de problemas e necessidades de forma participativa, democrática e cientificamente qualificada, considerando a visão daqueles que mais sofrem com a situação sanitária e econômica atual, pois é no nível básico de atenção que a saúde se enraiza territorialmente e dialoga com as necessidades mais urgentes de um coletivo que tem sido impactado cumulativamente pelos reflexos da crise. Do ponto de vista dos territórios e dos problemas que acometem as comunidades, é fundamental consolidar uma política de saúde como o SUS para as populações vulneráveis, como indígenas, quilombolas, pessoas ligadas à pesca artesanal e à agroecologia, as que habitam as favelas, etc. Para isso, é imprescindível que os candidatos e candidatas se atentem às lições da pandemia, pois as consequências sanitárias e econômicas se farão presentes por muito tempo e determinarão as necessidades financeiras, técnicas e assistenciais que concretizam o direito à assistência em saúde e, sobretudo, à saúde enquanto um estado integral de bem-estar.

Por fim, é preciso que candidatos e candidatas proponham políticas que apontem para o futuro e evitem que uma eventual nova crise sanitária tome as dimensões vividas no Brasil nos últimos anos. Isso só se concretizará com o compromisso, por parte daqueles que realmente se comprometem com o SUS: revogação da EC 95, que institucionalizou o desfinanciamento da saúde pública e que vem achatando o orçamento do SUS; restitução da normatização da RAPS e viabilidade técnica e financeira de sua consolidação nos municípios brasileiros; expansão da ESF por todo o País; recomposição das políticas de atenção às populações vulneráveis – política nacional de atenção à saúde da população negra, da população em situação de rua, das LGBT+, das pessoas com deficiência. 

Um compromisso factível com a saúde pública, que se expresse na correção dos caminhos do SUS com vistas à redução da mortalidade infantil e materna, dos surtos e epidemias não pode prescindir da ampliação do financiamento da saúde pública. O devido aporte financeiro faz parte de um movimento contínuo que integra a formação em saúde para a consolidação de profissionais preparados para assistir a população brasileira e a assistência em saúde para a estruturação de uma rede de prevenção, promoção e reabilitação que compreenda um modelo de saúde que abarca, definitivamente, a saúde pública como inseparável da adoção das políticas sociais que garantem emprego, renda e comida no prato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  1. Wordometers. Reported Cases and Deaths by Country or Territory. Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/. Acesso em 02 de Agosto de 2022. 
  2. Confederação Nacional da Indústria. Reorganização das cadeias de valor no pós covid 19: Estratégias empresariais. Portal da Indústria. Abril. 2022. Disponível em:https://www.portaldaindustria.com.br/publicacoes/2022/4/reorganizacao-das-cadeias-de-valor-no-pos-covid-19-estrategias-empresariais/.
  3. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia: Relatório Final. Ourubro. 2021. 
  4. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância das Doenças Não Transmissíveis.  Nacional. Painel de monitoramento de mortalidade materna. Disponível em: http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/
  5. Levy, B. Observa Infância reúne dados sobre mortes evitáveis de crianças brasileiras. [Acesso em 03 Ago 2022]. Disponível em: https://www.icict.fiocruz.br/node/6939