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MUNDO

O significado da ofensiva diplomática de Nanci Pelosi em Taiwan

Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP
REUTERS

O mundo esteve em suspenso durante a visita de Nancy Pelosi, Presidenta do Congresso dos EUA, a Taiwan, aonde chegou em um avião militar americano C-40C na noite da terça-feira, 02 de agosto (no horário da Ilha), em meio a sua visita a vários países do Leste da Ásia. Desaconselhada por Biden, tratou-se da mais importante visita de uma alta autoridade do estado americano desde 1997, quando outro presidente do Congresso, Newt Gingrich visitou a Ilha. Sua viagem se deu no marco de crescentes embates verbais entre ambas as potências e de um aumento qualitativo nas manobras militares no Mar do Sul da China e no estreito de Taiwan entre a Ilha e o continente, que tem cerca de 180 km.  

A escalada da disputa geopolítica dá o contexto

A questão é certamente complexa e o contexto explica sua gravidade. Faz parte de uma escalada sem precedentes na disputa pela hegemonia do mundo entre os EUA e a China, que se estabeleceu de forma mais direta há cerca de uma década. Os EUA ainda são a potência imperialista hegemônica no mundo, apesar de terem perdido parte de seu poder econômico nas últimas décadas, passando de ter 40% do PIB mundial ao final da II Guerra Mundial para cerca de 24% em 2019, antes da pandemia. E mantém sua ascendência como a principal potência econômica e financeira mundial e, fato fundamental, a que detém uma incomparável força militar. 

Por seu lado, a China teve uma ascensão meteórica no cenário mundial desde 1980, quando sua economia representava apenas cerca 1,7% do PIB mundial, para alcançar cerca de 16,45% do total em 2019. Mesmo tendo diminuído seu ritmo de crescimento na última década, a China segue disputando com os EUA a hegemonia mundial em todos os terrenos. Por exemplo, já é a segunda investidora no mundo, com um total até agora de pouco mais de 2 trilhões de dólares, comparados aos mais de 6 trilhões dos EUA. O detalhe é que este valor por parte da China se multiplicou por oito na década que precedeu 2020, ao passo que os EUA começaram seus investimentos em grande escala desde pelo menos a II Guerra Mundial.

Como em outras disputas anteriores pela predominância no cenário mundial, a dimensão bélica é fundamental. A supremacia americana nesse terreno é qualitativa, o que tende a se manter pela diferença entre os respectivos investimentos militares: enquanto os EUA despendem atualmente mais de 800 bilhões de dólares, a China, com o segundo orçamento militar do planeta, gasta pouco menos de U$300 bilhões, tendo um arsenal nuclear menor que o americano, mas também suficiente para ameaçar, em caso de guerra, a destruição da civilização. Apesar dessa distância entre ambas, a China já construiu uma sólida presença militar nas regiões de seu entorno. Uma delas é o Mar do Sul da China, que deixou de ser um território dominado totalmente pela Marinha americana para ter uma extensa rede de bases e naves chinesas (1).

A partir da crise econômica de 2008, ainda na presidência de Barak Obama, a China tem sido assinalada como o principal adversário americano. O que subiu muito de tom durante o governo Trump e depois com Biden. A partir da pandemia – e muito especialmente com a guerra da Ucrânia, as tensões entre EUA e China escalaram. E o tema de Taiwan voltou à cena. Desde o começo da guerra da Ucrânia, a China tem reiterado suas ameaças de invadir a Ilha, ao que Biden respondeu que defenderia militarmente Taiwan, mesmo que tenha suavizado posteriormente suas declarações. 

A importância de Taiwan

A Ilha é pequena e tem uma população minúscula em relação à China continental (somente 23 milhões de habitantes). Durante sua história, foi por longo tempo uma região autoadministrada, tendo sido colônia espanhola e holandesa no século XVII. Ainda nesse mesmo século, foi dominada pelo império Qing que reinava na China. Em 1895, o império japonês em expansão, conquistou Taiwan e ali se manteve por meio século até a derrota na II Guerra em 1945. Quando ocorre a Revolução Chinesa em 1949, os derrotados exércitos nacionalistas do Kuomintang de Chiang Kai-shek fogem para Taiwan onde estabelecem um governo ditatorial que duraria até os anos 1990, abolido depois de mobilizações na Ilha. 

Após a revolução chinesa, os Estados Unidos apoiaram econômica e militarmente os governos de Taiwan como uma das bases para cercar a China revolucionária. Em 1971, começou a política de reaproximação do governo de Richard Nixon com a China, na chamada “diplomacia do ping-pong” e a República Popular da China foi admitida na ONU, de onde foi excluída Taiwan. Em 1979, os EUA reconheceram o governo da China continental no lugar do regime taiwanês. 

Mas a posição americana sobre o tema de Taiwan sempre teve uma importante dose de ambiguidade.

Vários textos compõem essa posição:

– os três comunicados conjuntos da China e dos Estados Unidos, entre 1972 e 1982, em que os EUA “reconhecem” a visão chinesa de que Taiwan é parte de seu território 

–  a Lei sobre as relações com Taiwan de 1979, que obriga os EUA a ajudar Taiwan a se defender e

– as Seis Garantias de 1982, que declaram que Washington “não deve reconhecer formalmente a soberania chinesa sobre Taiwan.” O reconhecimento do princípio de “uma só China” contida nos acordos do final dos anos 1970 entre EUA e China manteve essa dubiedade: enquanto a China sustenta esse princípio, segundo o qual o de Beijing seria o único governo chinês, a política de “Uma só China” mantida por Washington constata a posição de Beijing, mas vê o status de Taiwan como um tema não resolvido.

Assim, os EUA mantiveram uma forte relação não oficial com Taipei (capital de Taiwan), inclusive a venda de armas avançadas a ela. 

 Com o processo de restauração do capitalismo na China que começou em 1978, os laços econômicos entre a China e Taiwan foram muito incrementados. Os capitais taiwaneses investiram cerca de 190 bilhões de dólares desde então e o comércio entre ambas chegou a U$166 bilhões em 2020.

As tensões geopolíticas globais se refletem em uma escalada no Estreito de Taiwan, os 180 km que separam a Ilha do continente. Em 2016, assume o governo a atual presidente, Tsai Ing-wen, dirigente do Partido Democrático Progressista, favorável à independência da Ilha. Em resposta, Beijing tem ameaçado reunificar o país pela força e incrementado os exercícios militares no Mar do Sul da China e no estreito de Taiwan. Se essa política já era uma marca de Xi Jinping desde o começo de seu mandato, as tensões atuais, as dificuldades da China em superar os surtos de Covid e o fato de que o dirigente chinês buscará um terceiro mandato como dirigente no Congresso do PCCh dentro de poucos meses, pode-se estabelecer um contexto interno a essa maior agressividade.

A Rússia declarou que a visita de Pelosi é “uma clara provocação dentro do espírito da linha agressiva de contenção global”, acrescentando que “A China tem o direito de adotar medidas necessárias para proteger sua soberania e integridade territorial no tema de Taiwan” (2).

É preciso também compreender que, apesar das diminutas dimensões da Ilha, o tema de Taiwan é estratégico para o regime de Beijing, pela sua localização próxima ao continente, seu peso econômico em tecnologias de ponta e pelo simbolismo que significa a reunificação de todo o território chinês.

Um novo cenário

A visita provocativa de Nancy Pelosi a Taiwan, que durou um dia, só ampliou essas tensões. 

Para tentar demover a Presidente do Congresso de realizar a anunciada visita, a China fez ameaças de represálias e incrementou os sobrevoos de aviões militares sobre o espaço aéreo de Taiwan. 

A Marinha americana, por sua vez, deslocou uma frota comandada pelo porta-aviões Ronald Reagan para águas ao Leste de Taiwan.

A curta visita de Pelosi foi muito intensa: sua mensagem foi de claro (“estridente”, segundo o New York Times) apoio ao regime em oposição à China: “Hoje, o mundo se defronta com uma escolha entre a democracia e o autoritarismo”, assinalando que “a determinação da América (os Estados Unidos) de preservar a democracia aqui em Taiwan e ao redor do mundo permanece robusta”. Pediu também que os dirigentes mundiais sigam visitando a Ilha. 

Não poderiam faltar também as promessas no terreno da economia, que seriam materializadas por negociações econômicas, dizendo na conversa com a Presidente que era felizmente iminente um acordo comercial entre os EUA e Taiwan. Além disso, reuniu-se com o dirigente da principal companhia produtora de chips do mundo, a T.S.M.C (3).

Após a partida de Pelosi, a China anunciou a execução de exercícios militares entre 4 e 7 de agosto em 6 áreas muito próximas de Taiwan, todas dentro da Zona de identificação de defesa aérea da Ilha e duas delas inclusive dentro de suas águas territoriais, como detalhado no mapa abaixo, produzido pela agência de notícias chinesa Xinhua. Se executada como planejada, significará de fato um bloqueio naval e aéreo temporário à Ilha. 

Trata-se de uma operação militar sem precedentes e que estabelece, segundo alguns analistas militares, um novo normal na atuação militar chinesa, tornando maior a possibilidade de choques acidentais próximos a Taiwan. Possivelmente, a frota comandada pelo porta-aviões americano (inclusive reforçada) deverá permanecer na região. 

Localização do exército militar chinêsFonte: https://focustaiwan.tw/cross-strait/202208030018

Localização do exército militar chinês. Fonte: https://focustaiwan.tw/cross-strait/202208030018

Por outro lado, a China impôs sanções econômicas a Taiwan, centrada na proibição de importações de produtos agrícolas, como cítricos e peixes, além de areia. Essas medidas são mais simbólicas, pois não atingiram a indústria de chips, que tem seu principal centro mundial justamente na Ilha. Os Estados Unidos, a União Europeia e a China estão investindo pesadamente para diminuir essa liderança, mas isso demanda tempo. Daí o cuidado da China em não estender as sanções a esse setor por enquanto. Além disso, os produtos atingidos seriam produzidos em regiões da Ilha em que a atual presidente pró-independentista teria mais apoio, pensando nas eleições municipais a serem realizadas em novembro próximo.

Uma política internacionalista

Como internacionalistas, estamos contra as guerras de conquista e/ou entre impérios e assinalamos o perigo desse episódio. Não reconhecemos nenhuma autoridade no regime americano em dar lições democráticas a quem quer que seja, por serem a principal potência econômica imperialista do mundo e o fato de apoiar regimes sanguinários como o israelense, saudita, as ditaduras árabes, além do trágico massacre de milhões de vietnamitas, o apoio aos golpes e ditaduras pela América Latina, etc.

Isso não nos leva a apoiar o regime chinês, que participa com bilhões de dólares na exploração de riquezas e de trabalhadores pelo mundo. Bastam os exemplos da empresa estatal chinesa que adquiriu o porto do Pireu privatizado na Grécia nos anos 2000 ou suas empresas mineradoras na América Latina.

Por outro lado, nos opomos à brutal repressão imposta ao povo de Hong Kong e de Xijiang. Reconhecemos que Taiwan, por sua história desde o século XVII, faz parte da China, mas seu destino deve ser decidido de forma democrática pela população que lá habita e não pela força ordenada pelo regime de Beijing.

 

Notas

1 http://esquerdaonline.com.br/2016/09/19/aumenta-a-tensao-no-mar-do-sul-da-china
2 https://asia.nikkei.com/Politics/International-relations/US-China-tensions/Pelosi-lands-in-Taiwan-China-to-launch-targeted-military-operations
3 Em resposta aos pedidos americanos, a TSMC está investindo 12 bilhões de dólares em uma nova fábrica de chips em Arizona, sua primeira planta de produtos avançados a ser construída nos EUA nas últimas duas décadas.