Por Karoline Souza e Lígia Maria, de Brasília, DF
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes.”
(Simone de Beauvoir)
O último mês foi assolado por casos de violência contra mulheres. Na noite do dia 8 de julho, uma estudante de 18 anos foi estuprada no campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília (UnB). Ao sair do Restaurante Universitário, a jovem foi abordada por um homem armado com uma faca, em um local com pouca iluminação, sem segurança, que já havia sido objeto da denúncia da comunidade acadêmica. Na semana seguinte, no Rio de Janeiro, o médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante após estuprar uma mulher grávida que estava sedada durante uma cesárea. O comportamento do criminoso já havia chamado atenção da equipe de enfermagem, o que leva a questionar quantas outras mulheres foram vítimas.
A atitude do médico se tornou suspeita à equipe de enfermagem pelo hábito de aplicar doses excessivas de sedativo nas gestantes e dificultar a visão da parte superior do corpo das vítimas. Dessa forma, a equipe de enfermagem decidiu filmar a atuação de Giovanni Quintella durante uma cesárea, o que possibilitou a prisão em flagrante. A Delegacia de Atendimento à Mulher investiga se há, pelo menos, mais cinco vítimas. Vale citar o depoimento do esposo da segunda vítima do criminoso, que revelou que o anestesista o mandou sair da sala na metade da cesariana, antes mesmo que o bebê nascesse. Ele relatou que três horas após o parto perguntou sobre a esposa e foi informado que ela continuava dormindo – o que não é normal, já que na cesárea é utilizada uma técnica anestésica onde habitualmente a pessoa parturiente não é sedada.
Dias depois, também foi noticiado o caso do médico Ricardo Teles Martins, preso por suspeita de estupro de, pelo menos, seis pacientes durante consultas em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Hidrolândia, no Ceará. Pacientes no período pós-parto, durante a amamentação, em consultas de rotina e em atendimentos a queixas respiratórias – comuns nesse período de pandemia -, eram vítimas das tentativas de Ricardo de tocar seios e genitálias de pacientes e da verbalização de conteúdo sexual por parte do médico. A constante nesses e em outros casos, que marcam ou não noticiários locais e nacionais, é a vulnerabilidade dessas mulheres e a negligência a direitos básicos que acentuam os riscos que correm.
Enquanto a jovem estudante da UnB foi privada do seu direito à segurança urbana e à circulação preservada no ambiente acadêmico, as parturientes violentadas por Quintella e as usuárias da atenção básica à saúde abusadas por Teles tiveram seu direito à saúde feridos em vários aspectos. Giovanni Quintella se julgou no direito de subjugar suas vítimas ao exclusivo controle permitido pela sua profissão e pela função por ele desempenhada nos procedimentos, enquanto Teles se utilizou da hierarquia culturalmente atribuída ao seu exercício profissional para vulnerabilizar suas vítimas.
O direito ao acompanhante durante o pré-parto, parto e pós-parto é previsto tanto na Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8080/1990) quanto na Lei do Acompanhante (Lei nº 11.108/2005), válida tanto para parto normal quanto para cesariana e não pode ser descumprida pelo hospital, médicos, enfermeiras ou qualquer outro membro da equipe assistencial. Além destas, a Portaria nº 1.820/2009, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários de saúde, prevê que todo paciente tem direito a um acompanhante de sua escolha em todos os serviços, consultas, procedimentos e exames. Esses direitos foram infringidos com frequência durante a pandemia, sob a justificativa da segurança sanitária, mediante um contexto em que as unidades públicas de saúde não possuíam equipamentos de proteção individual para ofertar a todos os trabalhadores e, tampouco, a pacientes e acompanhantes; nem espaço físico para acomodar com distanciamento, resultado do sucateamento da saúde pública. Passada a fase mais crítica da pandemia, a cultura conservadora e hierárquica – prevalente no centro da disputa entre um modelo de saúde que prioriza a atenção fragmentada e outro que preconiza a atenção integral e equitativa com relacionamentos horizontais em serviço – manteve as restrições à presença dos acompanhantes, acentuando a vulnerabilidade de grupos prioritários quando se avalia o risco de abusos e privação de direitos, como pessoas LGBT+, pessoas com transtornos mentais, idosos e, principalmente, mulheres.
Sob essa perspectiva, no que diz respeito, principalmente, ao caso Quintella, a compreensão de que a omissão da instituição de saúde e o corporativismo médico – que impediu o reconhecimento e denúncia, por outros médicos, da imprudência do estuprador que desenvolvia funções de anestesista durante os procedimentos – são o cenário de uma violência sexual que, antes de mais nada, foi subsidiada pela negligência ao direito à saúde e, sobretudo, pela violência obstétrica. A violência obstétrica inclui agressões físicas, psicológicas ou verbais, mas também pode ser entendida como a negligência, a discriminação ou uso de condutas excessivas e desnecessárias, que muitas vezes são prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas – como as sedações realizadas por Giovanni Quintella. O parto é um momento de vulnerabilidade extrema e estar acompanhada por uma pessoa de confiança traz benefícios imensuráveis para o processo de parir e para a pessoa gestante. Porém, para além disso, a presença do acompanhante cumpre papel importante no enfrentamento à violência obstétrica e na manutenção da integridade das pacientes.
As respostas ao caso de Quintella, que ganhou mais repercussão, vão desde a nota do Hospital da Mulher Heloeida Studart, passam pelo escárnio de estudantes de medicina com o caso e se encontram em uma raiz misógina expressa no comentário de Bolsonaro. A nota do hospital reforça a ocorrência de violência obstétrica por descrever que o marido da paciente se ausentou da sala para acompanhar o recém-nascido, separado de sua mãe após o parto – conduta que, cientificamente, contraria as boas práticas de parto e nascimento e a segurança da família. A violência obstétrica cometida ao separar o acompanhante da gestante a tornou mais suscetível à violência sexual.
Durante a semana em que o caso foi noticiado, estudantes de medicina parafrasearam publicações de repúdio à violência, comparando o crime com ações cotidianas mal feitas, frequentemente atribuídas a mulheres de forma machista – como dirigir e consertar objetos. Além disso, as redes sociais trouxeram à tona uma antiga imagem que retrata formandos de medicina sinalizando uma vagina e de calças abaixadas, em apologia à violência sexual. Essa é uma expressão da falência de um modelo educacional na formação em saúde, que é exacerbadamente tecnicista e mercantilista, distanciando-se do debate social que deve atribuir à construção de profissionais preparados para lidar com a vida a crítica e a prática transformadora atravessada pelo combate a todo tipo de opressão e violência.
Devemos relembrar que a nova Lei de Improbidade Administrativa exclui dos processos na esfera cível casos de estupro e assédio sexual no serviço público, sob a justificativa de maior clareza e segurança jurídica para o assunto. A condenação por improbidade administrativa impede, dentre outras sanções, que o acusado ocupe cargos públicos e mantenha seus direitos políticos. Ou seja, Quintella e Teles, a depender da conduta de seu conselho profissional -, são beneficiados pelo retrocesso na proteção às vítimas de assédio sexual, tendo a possibilidade de vitimar mais mulheres no exercício da assistência à saúde.
Acompanhando a tratativa descabida, inadequada e desonesta, Jair Bolsonaro associou o crime à “ideologia das universidades”, citando em tom de rechaço os centros acadêmicos, além de acusar o médico de ter uma índole de esquerda. O presidente neofascista, que se elegeu em uma campanha de ódio às mulheres, apologia ao estupro e tem no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Damares reduto de seu escárnio à vida, é desonesto ao apontar a universidade como motivadora da condura criminosa de Quintella, sobretudo quando remontamos ao caso da jovem estuprada na UnB e apontamos a redução no orçamento das universidades, que teve recorde no atual governo, como parte da causa da insegurança de estudantes e docentes no ambiente universitário, em uma estrutura precarizada que favorece a violência.
Ao contrário da proposição de Bolsonaro, é no governo de extrema direita que a Rede Cegonha, que prevê instrumentos de proteção à gestação, parto, nascimento e pós parto, tem sido substituída por um programa que reforça a violência obstétrica e a atenção fragmentada ao parto e à infância, levando à desestruturação de uma política histórica de proteção à saúde das mulheres, pessoas que podem parir e crianças. Bolsonaro omite que durante o seu governo de extrema direita o corporativismo na saúde ganhou robustez, com vistas à lucratividade que desmonta unidades públicas em prol da rentabilidade de uma política de negociatas que vendem vidas a troco de apoio ao negacionismo e à execução de sua política de morte.
É indispensável enfatizar que foi a equipe de enfermagem que se mobilizou à denúncia do caso Quintella. A enfermagem é uma categoria majoritariamente feminina e negra, vítima histórica da desvalorização profissional que exprime as questões de gênero, raça e classe atravessadoras de sua construção e prática profissional. Não fosse a percepção clínica e o julgamento crítico dessa equipe, Quintella se manteria protegido pelo corporativismo médico, pois é muito duvidoso que seus colegas nunca tenham percebido os erros técnicos de sua conduta e se omitido em nome da misoginia que identifica sua formação. Refletindo sua identidade socio-histórica, a equipe de enfermagem do Hospital da Mulher Heloneida Studart desafiou o privilégio de classe conferido à categoria médica, mostrou um importante sentido de unidade e uma solidariedade de gênero indispensável à proteção das pacientes vítimas de um sistema de saúde desmontado e precarizado e de uma cultura de formação e socialização que faz dos corpos parturientes objeto de submissão e alvo da violência.
A coragem, a unidade e a assertividade dessa equipe de enfermagem refletem que a luta em defesa do SUS e pela transformação do modelo educacional tem como pilar central a luta feminista, sendo as mulheres – sobretudo as negras – maioria na população SUS dependente, nas estatísticas de negligência ao direito à saúde, mas, também, linha de frente da resistência que exige o fortalecimento da saúde pública em defesa da vida de todas as mulheres, desde o nascimento e em todas as fases da vida.
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