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BRASIL

A democracia liberal já não defende nem a si mesma

Bolsonaro avança no seu discurso golpista em um encontro com embaixadores, ameaçando mais uma vez as eleições de outubro. Entretanto, a reação das instituições segue sendo morna e insuficiente. É urgente entendermos a razão dessa inércia para também entender como enfrentar e derrotar o golpismo.

Matheus Hein*
Fabio Pozzebom/Agência Brasil
O proletariado apoia a democracia burguesa não com base em negociações com ela sobre não disseminar o terror, não com base na fé em sua confiabilidade, mas a apoiará quando e na medida que ela, na prática, lute contra a autocracia (Lênin, 1905) (1)

Observamos estarrecidos mais uma nítida declaração golpista de Bolsonaro, agora diante de um conjunto de embaixadores. A opção do público não é ao acaso: O neofascista que ocupa o cargo máximo do país está declarando para a comunidade internacional que uma tentativa golpista é quase inevitável no Brasil. É claro, o governo Bolsonaro é conhecido pelos constantes recuos nas suas ameaças, fazendo com que alguns considerem que as bravatas golpistas sejam isso mesmo: bravatas. De todo modo, não devemos levar de maneira leviana o que está ocorrendo. O bolsonarismo já se demonstrou explosivo e violento — vide o assassinato político de Marcelo Arruda. O bolsonarismo também já demonstrou seu potencial de mobilização, como no 7 de setembro do ano passado, ação que provavelmente será repetida com mais força esse ano, criando um clima de instabilidade para as eleições. Bolsonaro e o bolsonarismo, apesar de seu tom caricato e surreal, devem ser levados a sério. Apesar de enfraquecido, Bolsonaro não deve ser subestimado. Fascistas acuados e desesperados tornam-se mais perigosos.

É ainda mais preocupante constatar que essa nova ameaça é mais uma de um longo conjunto de declarações realizadas desde o momento em que assumiu a presidência. Bolsonaro constantemente coloca as instituições da democracia burguesa em questionamento. O STF, o TSE, os “ritos democráticos”,  na narrativa bolsonarista tudo e todos são farsas de um inimigo invisível que quer a todo custo impedir Bolsonaro de governar o país. Mais do que isto, são inimigos do país, da pátria, de todos os brasileiros. A cada declaração uma constante: as instituições burguesas não foram capazes de dar uma resposta à altura. Limitando-se a emitir notas vagas e recuadas, as instituições demonstram que há um abismo entre a posição do radicalismo golpista do bolsonarismo e da defesa da democracia liberal por parte dos seus representantes. É assustador ouvir um show de mentiras e ameaças sabendo que nada será feito para que ele seja impedido. De todo modo, não é possível entender essa covardia institucional apenas olhando para o caso do Bolsonaro e do bolsonarismo. É preciso entender o caminho que nos trouxe aqui.

A lenta agonia da democracia brasileira

Se podemos dizer algo sobre as primeiras duas décadas do século XXI, é que a história provou que Carlos Nelson Coutinho estava errado: a democracia não é um valor universal. A necessidade de aplicar as mais radicais políticas neoliberais fez com que o novo regime democrático instituído após a ditadura já nascesse velho e que a nova constituição viesse ao mundo caduca. Os sucessivos governos neoliberais e de ataque à classe trabalhadora fizeram com que a credibilidade da democracia liberal no Brasil tenha se tornado baixíssima para as camadas trabalhadoras. Além disso, os próprios representantes da democracia burguesa, a ala “democrática” da direita, demonstraram vez após vez não possuírem qualquer respeito pelo regime que dizem defender. 

Após a ditadura, dois partidos tomaram a posição como representantes máximos da democracia liberal: O PSDB e o PMDB. O primeiro, carregando o nome de “social-democrata”, foi responsável pela implementação bem-sucedida — para os capitalistas, é claro — do neoliberalismo em terras brasileiras, tornando os anos de 1990 como a década da rapinagem: capital estrangeiro aproveitando-se da farra da privatização promovida por FHC. Já o segundo, passou de oposição consentida da ditadura, para pilar da “governabilidade” do novo regime democrático no Brasil. Ambos são protagonistas da introdução de uma forma de se fazer política que, na verdade, é profundamente despolitizadora e que vê o Estado no sentido mais profundo daquilo que Marx e Engels caracterizavam e criticavam: um comitê para gerir os negócios da burguesia. Tão grande foi a consolidação dessa forma de fazer política que ela se perpetuou durante os anos 2000, fazendo parte da política de colaboração de classes dos governos petistas. Ninguém se esquece do PMDB nas coligações e vice-presidência. Ou ao menos, não deveriam esquecer. Os dois partidos também foram protagonistas dos principais momentos que demonstram o desmoronamento prolongado da democracia liberal no Brasil. Seriam muitos momentos, mas nos manteremos em quatro centrais que elucidam esse processo. 

Primeiro, é preciso lembrar do precursor do questionamento das urnas, Aécio Neves. Em 2014, após as jornadas de 2013 e um processo de desgaste do seu primeiro mandato, Dilma enfrentou o tucano em uma eleição com um resultado apertado no segundo turno, vencendo Aécio com 51,64% dos votos. O resultado foi uma surpresa para o PSDB, já que o próprio Aécio circulava entre amigos a “notícia” de que havia vencido. Após a derrota, apoiando-se em fake news sobre fraudes eleitorais, o PSDB entrou com um pedido de auditoria no TSE para apurar as tais fraudes. No final do processo nada foi encontrado, mas a semente da desconfiança havia sido plantada. Não é por acaso que Bolsonaro usa as eleições de 2014 como um dos seus argumentos. O PSDB está na raiz da infundada desconfiança sobre as urnas eletrônicas. 

O segundo momento é um dos mais deploráveis da história brasileira desde a redemocratização, o processo que escancarou a fragilidade da democracia liberal no país e a sanha golpista da burguesia brasileira: o golpe de 2016, articulado por Temer, vice-presidente e membro do PMDB. Dobrando o regime democrático a sua vontade, os golpistas depuseram sem qualquer respaldo uma presidenta eleita e abriram as portas para o que há de pior na política. É inesquecível o voto de Bolsonaro no impeachment dedicado ao fascínora Brilhante Ustra, responsável pela tortura de Dilma Roussef. 

O terceiro momento a ser destacado é a prisão de Lula, mais um exemplo de como as instituições são simplesmente dobráveis aos interesses da burguesia. Uma decisão sem qualquer respaldo legal, claramente arbitrária e com o objetivo de tirar o ex-presidente da vida pública. Novamente, PMDB e PSDB estiveram na frente do processo, exaltando a operação Lava-jato — nunca é demais relembrar que Geraldo Alckmin comemorou a prisão do seu atual parceiro de chapa. O maior beneficiado de todo o processo foi Bolsonaro. 

Aliás, isso nos leva ao quarto momento: A eleição de Jair Bolsonaro. Todos os passos que levaram ao fatídico ano de 2018 possuem as pegadas de PSDB e PMDB, mas também de todo o conjunto de partidos do Centrão e da “direita democrática”. Com apoios explícitos, como o de João Dória e seu “bolsodória”, ou omissões escandalosas, a direita liberal colocou no governo um neofascista, amante da tortura, inimigo dos próprios “valores liberais” e declarado golpista. 

Obviamente, a história da “agonia da democracia liberal brasileira” é muito maior do que esses poucos parágrafos, mas essa é uma síntese do processo de esfacelamento de um regime. De todo modo, assim como não é possível entender a passividade das instituições burguesas frente aos arroubos golpistas de Bolsonaro sem entender a crise mais geral da democracia liberal no Brasil, também não é possível entender tal crise sem olhar para um quadro mais amplo.

A crise da democracia liberal é um sintoma

A crise da democracia liberal não é uma exclusividade brasileira. Em todo o mundo vemos líderes autoritários chegando ao poder ou muito próximos disso. Essa é uma crise generalizada que atinge todo o mundo ocidental. De todo modo, não é uma crise apenas da democracia liberal, esse é apenas o sintoma de uma crise maior: a crise estrutural do capital. Em linhas muito breves, a crise estrutural do capital é um processo em curso desde a década de 1970 e que está intimamente ligado aos próprios imperativos do capital. É um ciclo vicioso de crise em que a superação de cada momento pontual dela — como por exemplo a crise de 2007-2008 — na verdade significa alimentar a próxima crise. O capital já não consegue mais deslocar suas contradições, intensificando-as e aprofundando o cenário de deterioração no tecido social. É uma crise universal, global, temporalmente prolongada e permanente. 

Precisamos lembrar que a democracia liberal não existe no vácuo, é um regime político dentro do Estado capitalista. O Estado cumpre uma função no sistema capitalista — os “efeitos corretivos”, tentando amenizar as disrupções do sistema e a falta de unidade típica do capitalismo — e, portanto, a democracia liberal também possui um conjunto de “tarefas” no sistema do capital. Existem razões para a democracia liberal ser o regime político mais propagandeado e defendido pelos países capitalistas e pelos ideólogos do sistema. Há muito tempo foi formulada a compreensão ideologizada de que o Estado e a democracia liberal são campo para a ação de todos, o espaço no qual todo cidadão é tratado como igual, não havendo distinção do seu poder econômico, do seu gênero, da sua raça ou de suas opiniões políticas. Ou seja, através da democracia liberal é mais fácil para o sistema formar consenso — já que nem sempre a coerção física é o caminho mais “em conta”. De todo modo, com a agudização da crise estrutural do capital, tornam-se mais evidentes as contradições de classe, de gênero, raciais e as incompetências da democracia liberal em lidar com problemas insolucionáveis dentro do capitalismo: o desemprego crônico, a desigualdade abissal de racial e de gênero, a destruidora crise ecológica, entre outros.

Como consequência desse processo, vemos uma transformação da democracia liberal. Ao não poder mais lidar com os problemas como antes, a democracia liberal passa a incorporar elementos autoritários ao seu funcionamento. Isto não significa que a democracia liberal efetivasse as expectativas que anunciava, mas agora praticamente abriu mão até mesmo das ilusões que propagava. Nesse sentido, a crise da democracia liberal consiste numa transformação de elementos constitutivos da democracia, numa crise de confiança no regime político, por consequência, em retrocessos ocorridos no contexto de crise estrutural, na crescente cooptação, pelo fascismo, dos ressentimentos gerados por esta dinâmica e pela incorporação de medidas autoritárias. Em última instância, a agonia da democracia liberal não parece ter qualquer perspectiva de findar, já que é parte da crise estrutural do capital.

E agora?

Dado esse diagnóstico, muitos podem afirmar: “se não consegue mais se defender, que deixem a democracia liberal para os urubus!”.  Essa é uma conclusão apressada. De fato, a democracia liberal já não defende nem a si mesma. A já mencionada inércia das instituições burguesas frente ao golpismo bolsonarista é um exemplo claro disto. A navalha já está no seu pescoço, mas as instituições seguem imóveis. O regime democrático burguês cavou sua própria cova, desmoralizou suas próprias instituições, transformou suas próprias regras em letra morta e incorporou ao seu próprio funcionamento métodos autoritários e antidemocráticos. Portanto, por qual razão deveria a esquerda se preocupar com o regime liberal em um momento como esse? A resposta deveria ser óbvia: na atual condição, as coisas só podem piorar. 

Quando Bolsonaro ameaça as instituições, na verdade ele está ameaçando a todos nós. Não porque as instituições sejam a grande representação do que há de melhor na sociedade brasileira, muito menos que as instituições e o parlamento sejam a tal “vontade geral” expressa. Pelo contrário, as instituições burguesas sempre serviram para a classe que as construíram e o parlamento sempre foi terreno do inimigo, avesso a classe trabalhadora. De todo modo, o atual regime ainda é uma barreira entre o que há hoje e o fascismo. A democracia liberal nunca foi capaz de lutar por si própria. A história nos prova: a classe trabalhadora e os povos oprimidos sempre precisaram lutar por eles mesmos e, nesse processo, muitas vezes salvaram a democracia liberal. Como Lênin já apontava, quando a democracia burguesa serve para lutar contra a autocracia, então ela nos serve — provisóriamente, apenas nessa condição.

Se a nossa opção fosse “revolução ou fascismo”, sem dúvidas optaríamos pela ruptura com o regime atual imediatamente. Infelizmente, não estamos em meio a um ascenso de massas, numa convulsão social irreversível ou diante de um levante proletário. A situação é adversa, resultado dos longos anos de derrotas. Ver o golpismo triunfar seria mais uma derrota, essa com impacto imensurável. Não porque a democracia liberal seria destruída, mas porque nós seríamos. A nossa quadra histórica não permite a reabilitação da democracia liberal, um retorno aos seus tempos dourados — nem nós desejamos isso. Não fazemos uma defesa democrática em termos liberais, visamos uma outra democracia, a democracia proletária. Mas, para conseguirmos alcançar esse objetivo, primeiro é preciso impedir o golpismo e isso não será feito pelas instituições burguesas. O único caminho é as ruas. O único caminho é a luta. Não pela democracia liberal — mas pela possibilidade de construir a sua superação.

Notas

LÊNIN, Democracia Burguesa e Democracia Proletária [1905]. In: LÊNIN. Democracia e Luta de Classes, 2019.

* Matheus Hein Souza é Militante do Afronte e Resistência/PSOL