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BRASIL

As diretrizes do programa de Lula e a questão climática: é preciso ousadia!

Nesta terça-feira (21/06) foi apresentada a versão final das diretrizes do programa da chapa Lula-Alckmin. Apesar de apresentar vários elementos importantes, a política ambiental proposta nas diretrizes possui lacunas e ausências preocupantes para um projeto que precisa combater a crise climática. Aqui elencamos 4 elementos centrais para um programa de combate à crise climática e ecológica no Brasil.

Matheus Hein, de Porto Alegre, RS
Ricardo Stuckert

A primeira metade de 2022 deixou claro para o Brasil que a crise climática é uma realidade atual. As catástrofes ocorridas na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco demonstram que qualquer projeto de país precisa passar necessariamente pela questão ecológica. Infelizmente, a tendência é um agravamento progressivo da situação, já que as pesquisas científicas sobre o tema demonstram que estamos apenas no começo daquilo que pode ser a emergência climática em toda a sua potência.

As mesmas pesquisas que apontam o crescente problema da nossa realidade, também apontam que a década em que vivemos é crucial para virarmos o jogo. Se conseguirmos aplicar um conjunto de medidas que tenham como centro ir totalmente ao contrário do que a lógica capitalista tem aplicado até hoje, podemos evitar os piores cenários da crise climática. Por estarmos em ano de eleição essa questão é ainda mais importante: o programa apresentado pelo vencedor vai definir as políticas para a questão climática nos próximos anos.

Apesar de apontar para questões importantes, as diretrizes do programa de governo de Lula deixam lacunas igualmente importantes. A seguir elaboramos 4 questões que são centrais para um programa que vá fundo na realidade brasileira e seja consequente no combate à crise climática.

1) A questão do petróleo

A questão do petróleo talvez seja um dos elementos das diretrizes do programa de Lula que vá mais ao contrário do que é necessário para combater a crise climática. Nas diretrizes constam que é preciso “combater o uso predatório dos recursos naturais e estimular as atividades econômicas com menor impacto ecológico” e um investimento público “com ênfase em inovações orientadas para a transição ecológica, energética e digital”. No entanto, não há qualquer indicação de diminuição na extração e utilização do petróleo. Na versão anterior, o documento afirmava que “o pré-sal será novamente um passaporte para o futuro”. Felizmente, essa formulação já não consta na nova versão. De todo modo, a ideia do petróleo como uma garantia para o futuro segue presente quando é defendido que é preciso aproveitar “da grande riqueza do pré-sal”. É preciso uma definição de qual será o projeto para a Petrobras. A ideia de uma Petrobras com “investimentos orientados para a segurança energética, a autossuficiência nacional em petróleo e derivados [e] a garantia do abastecimento de combustíveis no país” — isto é, que aprofunde a política de extração de petróleo — ou a ideia de uma empresa convertida para a produção de energia renovável, pioneira em todo o mundo.

A forma que o documento apresenta a questão está conectada com o que foi e tem sido a experiência dos governos de esquerda na América Latina. O último ciclo de governos progressistas na América Latina foi fortemente marcado pela extração da natureza como forma de garantir avanços econômicos e sociais. Surfando na “onda dos commodities”, esses governos investiram pesado na mineração, extração de petróleo e no agronegócio. Para muitos países latino-americanos o petróleo se tornou um caminho da salvação, possibilitando criar programas sociais e de transferência de renda que garantiram uma melhoria relativa nas condições de vida da população — especialmente para as parcelas mais precarizadas. Contudo, os encantos do petróleo demonstraram ser de curto alcance. A dinâmica desses países levou a uma forte dependência do “ouro preto” com graves consequências.

Além da questão econômica e social, a dependência do petróleo também é extremamente desastrosa na questão ecológica. Não é mistério para ninguém que os combustíveis fósseis são o maior motor para crise climática em aspectos globais. Não apenas a queima de combustíveis fósseis é um fator central para o aumento das temperaturas, mas também toda a nossa sociedade está estruturada a partir de uma lógica guiada pelo uso desses combustíveis. Somos reféns de uma economia baseada em combustíveis fósseis. Os impactos do petróleo, entretanto, não se limitam à sua queima. A extração do petróleo acarreta em impactos profundos no seu entorno, como poluição de corpos da água, do ar e do solo.

No caso brasileiro, com a “grande riqueza do pré-sal”, a situação é mais dramática. Estamos falando de extração em águas ultraprofundas. As condições para a extração são muito mais difíceis do que o normal, tornando mais possíveis acidentes e vazamentos. Os riscos para a vida humana e para o meio ambiente são multiplicados. Também é preciso um investimento muito maior e a utilização de tecnologia de ponta, em constante aprimoramento. O investimento utilizado para a extração de pré-sal poderia ser utilizado para o aprimoramento tecnológico para produção de energias renováveis.

O “modelo de desenvolvimento” que foi a aposta central no último ciclo de governos de esquerda se mostrou ineficiente e falho, produzindo mais problemas para o presente e futuro. Essa é uma lição que a esquerda latino-americana precisa aprender com urgência. Na verdade, já vemos indícios dessa compreensão, como o programa de governo de Gustavo Petro na Colômbia que possui uma contundente proposta de paralisação de novos projetos de extração de combustíveis fósseis — medida que, infelizmente, Lula já declarou ser impossível para o nosso país1. O que o Brasil precisa de fato é de um programa de transição energética que combine diminuição do uso de petróleo e maior inserção de energias renováveis e sustentáveis. A Petrobras é mundialmente reconhecida pelas suas qualidades e alto desenvolvimento técnico e tecnológico. Essas forças podem ser redirecionadas para uma política de transição energética que se torne exemplo a ser seguido em todo o mundo.

2) Desmatamento zero de verdade

Nas diretrizes apresentadas está presente o compromisso com a preservação da Amazônia. Desde que o governo Bolsonaro assumiu, tornou-se mais evidente o quanto a preservação da maior floresta tropical do mundo é central para qualquer política ambiental — não apenas em contexto nacional, mas global. Também ficou ainda mais clara a ambição devastadora de setores da elite brasileira, além do interesse imperialista na nossa floresta. Contudo, a medida apresentada pelo programa é o comprometimento com o “desmatamento líquido zero”. Existe uma diferença importante entre desmatamento zero e desmatamento líquido zero: o primeiro significa barrar todo desmatamento, seja ele legal ou ilegal; o segundo significa reflorestar um hectare a cada hectare desmatado.

O reflorestamento é um tema de grande relevância para a questão ecológica atualmente. Avançamos de maneira irresponsável e inconsequente sobre áreas florestais, causando grande destruição. É imperativo que recuperemos territórios desmatados. De todo modo, compreender o reflorestamento como um método de compensação para o desmatamento enquanto ele ocorre é não apenas insuficiente, mas enganoso. Pode haver a compreensão equivocada de que “floresta é floresta”, então não existe problema desmatar determinada quantidade de área florestal se for reflorestada uma área equivalente. Entretanto, essa é uma ideia completamente equivocada. Sob a lógica do desmatamento líquido zero, é possível desmatar uma área florestal de grande concentração de carbono para, por exemplo, expandir a produção agrícola, fazendo um reflorestamento em outra área com espécies com menor potencial de captura de carbono. Em um sentido meramente matemático, seria possível dizer que o desmatamento líquido zero foi mantido. Em um sentido ecológico e preocupado com a crise climática, os impactos seriam profundos e a política de devastação ecológica permaneceria intacta.

É comum acharmos que o Brasil é um dos países que menos contribuiu para a crise climática. De todo modo, isso só é verdade quando consideramos a queima de combustíveis fósseis. Quando levamos em conta o desmatamento, o Brasil fica em 4º lugar no ranking de países mais poluentes desde 18502. Desmatamento líquido zero não é a solução para o nosso problema, já que na prática continuaremos devastando áreas conservadas — o que implica mais gás carbônico na atmosfera e destruição de fauna e flora. É preciso zerar o desmatamento em termos absolutos. Um desmatamento zero de verdade é uma demanda urgente para o Brasil e para o mundo.

3) Avanço na demarcação de terras indígenas e quilombolas

As diretrizes programáticas também apontam o comprometimento “com a proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais”. Esse é outro tema de extrema relevância para o debate histórico e atual. Nos últimos anos vemos um ataque bárbaro aos direitos indígenas e quilombolas. O governo Bolsonaro elegeu essas populações como inimigos, dando recorrentes declarações de teor explícito quanto ao seu ódio a esses povos. Mais do que mera retórica e discurso, o governo vem implementando uma série de medidas de precarização aos órgãos responsáveis pela proteção dessas populações, resultando num agravamento dos conflitos e no aumento da morte de indígenas e quilombolas. Não por acaso, a resistência indígena tem sido um dos principais movimentos de enfrentamento ao governo Bolsonaro desde a sua posse.

Além da questão de reparação histórica, que já é por si só central, essas populações cumprem um papel essencial na preservação ecológica. Os estudos comprovam que as terras indígenas são as mais preservadas no Brasil nos últimos 35 anos3. Tendo sua relação com a natureza orientada pela harmonia e respeito, os povos indígenas são vanguarda no combate a crise climática e devastação ecológica. Apesar de ser essencial constar no programa a proteção dos direitos e das terras já garantidas, combatendo o garimpo ilegal e iniciativas que visem reverter avanços históricos no tema, é preciso construir um programa que defenda com centralidade o avanço na demarcação de terras indígenas e quilombolas. Garantir esse direito constitucional é combater os crimes do nosso passado, mas também dar garantias para o nosso futuro.

4) Uma reforma agrária e agroecológica

Por último, algumas palavras sobre um tema que consta nas diretrizes. O documento apresenta nominalmente a reforma agrária e agroecológica, com o fortalecimento da pequena propriedade agrícola e agricultura familiar. O pequeno produtor rural e a agricultura familiar são o coração da produção de alimentos no Brasil. Graças a esses trabalhadores do campo, a comida chega na mesa de todo brasileiro. Infelizmente, vivenciamos um longo processo de precarização no campo, com as famílias agriculturas sendo afetadas pelo avanço da agricultura predatória, monoculturista e destrutiva. A lógica do agronegócio que transforma alimentos em commodities para serem vendidos no mercado externo, ignorando as necessidades internas, é uma das grandes responsáveis pelo aumento brutal da fome no Brasil.

Por consequência, um programa que vise reverter essa situação, combater a fome com a construção da soberania alimentar e realizar uma verdadeira reforma agrária e agroecológica precisa ter como pré-condição para isso o combate ao latifúndio. A concentração de terras no Brasil é um problema histórico e raiz de muitas mazelas na nossa sociedade. A elite fundada nessa desigualdade e com seu poder garantido pelo latifúndio é um dos elementos mais retrógrados da realidade brasileira, sendo um dos alicerces da violência bárbara que presenciamos no campo. O fortalecimento da agricultura familiar só pode ocorrer se for acompanhado pelo enfrentamento direto com as elites do campo. Isso significa construir um programa e um país sem compromissos com latifundiários e seus representantes políticos.

Para materializar um processo como esse é preciso fortalecer as pequenas e médias propriedades, como as diretrizes apontam, mas também desapropriar terras que não cumpram sua função social e que tenham ligação com crimes ambientais e trabalhistas. Isso significa combater a especulação fundiária e penalizar proprietários que empreguem métodos devastadores e crimes que envolvem uma série de descumprimentos das leis trabalhistas, chegando até as questões de condições de trabalho análogos a escravidão. Nos últimos anos multiplicam-se os desastres naturais causados por empresas privadas, essas também precisam ter suas terras desapropriadas e convertidas em terras para reforma agrária e agroecológica.

Uma última questão é a reversão da política de agrotóxicos implementada pelo governo Bolsonaro. O envenenamento da população brasileira está em pleno curso. É preciso reverter as novas liberações, mas também avançar em novas proibições. Somado a isso, devem ser criados mecanismos para popularizar a produção e consumo de alimentos orgânicos.

É preciso ousadia!

Como mencionado, as diretrizes do programa de Lula apresentam elementos importantes e avanços — especialmente quando considerada a sua primeira versão. Ainda assim, os desafios são muito maiores do que as soluções apresentadas quando pensamos na questão ecológica. Os elementos aqui elencados apresentam alicerces para um programa para a realidade brasileira que queira efetivamente combater a crise ecológica e climática. Por óbvio, não é possível enfrentar tal problema apenas em terreno nacional, é necessária uma cooperação internacional que dê conta de combinar esforços. De todo modo, o Brasil tem tudo para ser vanguarda no processo de enfrentamento aos elementos propulsores da crise em curso. Podemos e precisamos avançar. É preciso ousadia!

NOTAS

1 https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/08/27/terras-indigenas-sao-as-areas-mais-preservadas-do-brasil-nos-ultimos-35-anos-mostra-levantamento.ghtml

2 https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/05/04/lula-diz-na-revista-time-que-e-irreal-para-o-brasil-deixar-de-usar-petroleo.ghtml

*Militante ecossocialista do Afronte! e Resistência-PSOL