Pular para o conteúdo
BRASIL

Festejar é existir: sobre a repressão ao lazer e o direito à cidade em Bauru

Helena Nogueira Marques* e Louise Cursino Thomé*, de Bauru, SP
Félix Esteves / Afronte! Bauru

Festa universitária em Bauru.

Dona Maria, olha a sopa
Ensina suas cria que a polícia ‘tá na rua pra matar ou pra prender
Ontem foi o nosso mano, amanhã pode ser você
E a real da vida é fazer a vida ser melhor pra geral
Hoje eu dançaria a noite toda, embrazando com você
FBC & VHOOR – Vem pro baile

No dia 25 de abril, as aulas presenciais da Unesp Bauru finalmente foram retomadas, após dois anos suspensas por conta da pandemia. O reencontro prometia ser especial. Com três gerações de calouros que não vivenciaram Bauru e muitos veteranos voltando para a cidade, o clima era de alegria e comemoração: pela conquista de passar no vestibular e pela retomada de uma relativa normalidade e dos vínculos afetivos. Como tradicionalmente acontecia, muitos jovens reuniram-se na segunda à noite num bar famoso entre os estudantes, em uma das principais avenidas da cidade. Contudo, o clima de festa durou pouco.

Conforme uma pequena aglomeração foi se estabelecendo, o dono do bar se recusou a atender os universitários, expulsando-os do estabelecimento, fechando suas portas e não permitindo nem mesmo que ficassem na calçada. O rolê continuou na rua, afinal, um lugar público, de supostamente livre acesso e permanência. O proprietário, então, passou a xingar aos berros as pessoas ali reunidas, fazendo ameaças e até mesmo filmando. Revoltado porque não conseguia impedir o rolê sozinho, chamou a polícia. As viaturas da Polícia Militar chegaram e resolveram o problema: jogaram bombas de gás lacrimogêneo na galera, expulsando os jovens indesejados.

A ação do dono do bar, motivada provavelmente por uma preocupação legítima de ser responsabilizado individualmente pela concentração de pessoas e ter sua fonte de renda prejudicada por penalidades, não é o foco desse texto. Esse dia é apenas uma expressão do problema da repressão ao lazer em Bauru, uma vez que episódios assim não são novidade na cidade. No carnaval de 2019, o famoso bloco “Pé de Cachaça”, um dos poucos gratuitos da cidade, não conseguiu autorização da prefeitura para desfilar. Mesmo assim, teve música e foliões pulando carnaval no Parque Vitória Régia. A reação da PM foi avançar na população montada em seus cavalos e com seu gás lacrimogêneo, impedindo uma livre concentração de pessoas de comemorarem a festa mais famosa do Brasil. Tudo isso debaixo de uma tempestade. O resultado foi caótico: gente machucada, perdida e desamparada.

Além disso, nos últimos anos, também temos acompanhado uma crescente perseguição às festas. Em 2017, foi aprovada a Lei Nº6903, a qual proíbe festas clandestinas, com critérios nos quais as tradicionais “festas de rep” e bailes funks se encaixam. Já em 2020, os vereadores aprovaram a proibição de festas “open bar”. Legitimada pelo aparato jurídico, é comum a PM interromper o rolê antes mesmo do horário da Lei do Silêncio, às 22h.

Em um país que vive a ascensão da extrema direita desde 2013, com o golpe em 2015 que tirou a primeira mulher eleita como presidente do poder e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, faz sentido que essas políticas venham ganhando força nas cidades do interior de São Paulo. A guinada reacionária e o conservadorismo se expressam de diferentes formas no país inteiro. O projeto de lei que proíbe festas tipo open bar foi elaborado por um militar, o vereador Coronel Meira (PSB) e é uma ilustração das consequências concretas promovidas pelo pânico moral da direita, assim como o movimento da “Escola sem Partido” e as denúncias ao “Kit Gay”

É coerente com o discurso desse governo que os “cidadãos de bem” condenem escandalizados as “balbúrdias” estudantis

Nas festas estudantis, não encontramos (só) o que a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu tão fervorosamente ao afirmar que “menino veste azul e menina veste rosa”. Além de espaços de descontração e divertimento, as festas são também espaços de libertação dos tabus, das verdades dominantes, de expressão e do despertar da sexualidade em suas formas dissidentes. É coerente com o discurso desse governo que os “cidadãos de bem” condenem escandalizados as “balbúrdias” estudantis: as festas são oportunidades de sair da rotina exaustiva e viver uma vida diferente, um pouco mais livre das amarras opressoras do moralismo cristão machista e lgbtfóbico, mesmo que apenas por algumas horas.

Sendo assim, podemos entender os espaços festivos a partir de uma outra lente. Por um olhar que identifica no prazer a possibilidade de existência, de expressão cultural, muito além da mera sobrevivência no sistema capitalista. São, portanto, também espaços subversivos. Se a Damares diz que a política do governo é a de abstinência sexual, que a nossa política seja a do orgasmo. A negação desses espaços para a população, configura-se como uma tentativa de nos privar do que é humano e necessário para a existência: a alegria e os afetos.

Nesse sentido, a expressão artística e cultural através da música, da dança, do audiovisual e etc também compõem os espaços de lazer. Seja nos bailes funks, nas festas universitárias, nos shows do Sesc, ou em festivais multiculturais, a arte é uma importante ferramenta de questionamento da ordem social vigente. Não é por acaso que os incentivos à cultura são alvo de boicote na política do governo Bolsonaro. Vivenciar expressões artísticas e culturais é florescer a organização e a identificação coletiva, incentivando espaços insurgentes que questionam a ideologia dominante.

Dessa forma, a produção cultural da periferia tem muita potência porque nela se concentram os desejos, as denúncias, as cenas cotidianas da classe trabalhadora, do povo marginalizado. Nas festas “clandestinas” da periferia, o poder público encontra no uso de substâncias ilícitas, uma razão para minar as aglomerações com violência, para impedir que os espaços de lazer aconteçam. Enquanto nas áreas centrais, ocupadas majoritariamente por brancos enriquecidos, mesmo usando as mesmas substâncias, as pessoas não são reprimidas por festejar, porque a clandestinidade está ligada ao território e principalmente a quem habita esse território. Sabemos que, no Brasil, isso significa que os corpos mais perseguidos, punidos e vitimizados são os corpos negros. A territorialidade e a raça são, portanto, fatores que influenciam a expressão cultural e artística, sendo também um determinante social para ditar quem pode e quem não pode se divertir. Desse modo, vão se perpetuando políticas higienistas e de extermínio da população negra e periférica. A morte de 9 jovens no Baile da Dz7, em dezembro de 2019 na favela de Paraisópolis, em São Paulo, é mais um exemplo cruel da ação repressora e assassina da PM.

lazer e descanso não deveriam ser privilégios de quem consegue pagar, mas sim direitos assegurados

Diante disso, a iniciativa privada é a grande favorecida com esse estrangulamento de eventos de lazer gratuitos ou baratos. As festas com ingressos de alto valor acabam sendo uma das únicas alternativas para quem busca um alívio da rotina maçante no final de semana. E são poucos os que conseguem bancar sempre o custo para entrar nesses espaços. E quando de graça, as festas realizadas em espaço publico e frequentado por um público negro e periférico, são reprimidas, como aconteceu no bloco Pé de Cachaça em Bauru. E essa pauta não é fútil: lazer e descanso não deveriam ser privilégios de quem consegue pagar, mas sim direitos assegurados a todos nós, como consta na Constituição Federal.

Sendo assim, como ecossocialistas, é nosso dever defender o direito à cidade. A luta de classes não é uma abstração, tendo sua expressão mais concreta justamente nos espaços urbanos. A professora de Arquitetura e Urbanismo da USP e da Unicamp, Ermínia Maricato, explica em entrevista que “O direito à cidade é um conceito francês que diz que seus moradores devem ter o direito à cidade enquanto festa urbana, ou seja, a cidade que expressa diversidade e que utiliza seus espaços mais valorizados para oferecer lazer, cultura e serviços à população”.

Dessa forma, se nos entendemos como pessoas que rejeitam a realidade tal como ela é e que lutam por um novo mundo, isso significa ter a ousadia de imaginar e de construir possibilidades alternativas. Como David Harvey coloca em artigo à Piauí, saber que tipo de cidade queremos é saber que vínculos sociais, que relacionamento com a natureza, que rotina e que vida nós desejamos: “O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade.”

Sendo assim, o movimento de privatização dos rolês e repressão de festas populares é uma tentativa de minar o acesso da maior parte da população a espaços de lazer, de expressão cultural, de troca de afetos, de expressão da sexualidade, os quais são essenciais para a saúde e para a existência de qualquer pessoa. A cidade é um espaço público que deve ser ocupado por expressões artísticas, festas e eventos culturais. Que possamos ter cada vez mais lugares para reinventar formas de vida e de desejo, perturbando as regularidades da ordem hegemônica cotidiana com nossos espaços afetivos de encontro. Por nós e para nós.

*Militantes do Afronte em Bauru-SP

REFERÊNCIAS

BARROSO, F. M; GONÇALVES, Juliana. Subversão e purpurina: Um estudo sobre o carnaval de rua não oficial do Rio de Janeiro. XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo, 2016.
GALERA, Izabella; FREITAS, T. T. Q. LAZER, FESTA E CIDADE: O caráter revolucionário do brincar no contexto das ocupações urbanas. Anais XVIII ENANPUR, 2019.
HARVEY, David. O direito à cidade: A qualidade da vida urbana virou uma mercadoria. Há uma aura de liberdade de escolha de serviços, lazer e cultura – desde que se tenha dinheiro para pagar. Piauí, edição 82, julho de 2013. Disponível aqui. Acesso em: 26/05/2022
MARICATO, Ermínia. O direito à cidade depende da democratização do uso e a ocupação do solo. [Entrevista concedida à Rede Mobilizadores COEP em 16/12/2013]. Disponível aqui. Acesso em: 26/05/2022
SOBARZO, Oscar. A Produção do Espaço Público: da Dominação à Apropriação. GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, pp. 93 – 111, 2006.