O escândalo recente envolvendo o cantor Gusttavo Lima com dinheiro suspeito de prefeituras é só a ponta de um enorme iceberg. O pop do agronegócio, que usa o nome de “sertanejo”, controla o mercado musical no Brasil. É um negócio bilionário e uma poderosa arma ideológica.
A bolha de parte da esquerda ficou animadíssima quando Bolsonaro foi vaiado no Lollapalooza. Para alguns, era sinal de que “as massas estão na ofensiva”. A bolha da direita denunciou a “hegemonia marxista no meio artístico”. Estão ambas erradas. No mundo real, a maioria da população em nosso país não ouve música politicamente engajada. Pelo menos não diretamente engajada. E isso vale para filmes, livros, programas de TV e outros tipos de mídia.
A indústria de entretenimento brasileira é controlada por uma espécie de “Centrão Cultural”. Como o centrão do Congresso, é um grupo fisiológico preocupado com os lucros. Mas é um grupo com um forte alcance popular e capilaridade. E, também como o Centrão parlamentar que abrigou Bolsonaro, tem perdido o medo de expor seu lado reacionário e o apoio ao atual governo.
Esse “Centrão Cultural” também tem sua bancada do boi, da bala e da bíblia. Todos prontos para defender os valores de seus patrocinadores. Como anda o trabalho de cada uma dessas “bancadas”?
“Bancada do boi”: a indústria da “música sertaneja”
Não podemos reproduzir preconceitos contra a população rural. A música sertaneja é um estilo de grande riqueza estética e que começou refletindo o sofrimento dos camponeses do Brasil. Mas nos últimos 20 anos se tornou apenas a trilha sonora do agronegócio, com raras exceções.
O Brasil é um país continental com 26 estados, um Distrito Federal e 5.570 municípios. A maioria deles são pequenas cidades em que a atividade agropecuária é a principal fonte de renda. Nesses rincões raramente existe um cinema, quase nunca existe um ponto de cultura e a falta de opções de lazer é grande. A única forma de se divertir é ir para um bar ouvir música sertaneja.
Quando um músico famoso vai para a cidade, a população comparece em peso no show. Esse é um dos motivos de 4 dos 5 artistas brasileiros mais tocados no Spotify serem “sertanejos” e 9 dos 10 cachês mais caros do país serem deste estilo. Se você não conhece o nome de uma dupla ou de uma “moda”, você vive em uma bolha.
Mas não é só isso. A youtuber Laura Sabino publicou nos últimos dias um excelente vídeo mostrando como as empresas ligadas ao agronegócio fizeram uma ofensiva midiática muito bem planejada para difundir seus valores. E isso vai muito além do pagamento de “jabá” para as rádios.
Empresas do “agro” conseguiram R$ 130 milhões pela lei Rouanet para projetos culturais nos últimos 10 anos. Parte dos bilhões de reais de empréstimos que o governo dá ao agronegócio vai para os “Agroshows” e “exposições agropecuárias”, que pagam cachês milionários a artistas. Além de dinheiro de prefeituras, muitas vezes gasto de forma suspeita, como os shows de Gusttavo Lima nas cidades de Magé e Conceição do Mato Dentro.
Por isso o lema da “Deus, pátria, família e liberdade” foi entoado em show recente do cantor. Gusttavo Lima não deve saber que essa é uma atualização do lema da Ação Brasileira Integralista, versão nacional do fascismo. Mas deve saber que os deputados que apoiam o presidente fascista são ligados politicamente às prefeituras que despejam milhões em seus shows. Ele também deve saber que Bolsonaro é o político preferido do agronegócio, que paga outra boa parte de seus cachês.
Se antes esses “sertanejos” apenas cantavam músicas machistas e que exaltavam os ricaços do campo, agora eles foram convocados a fazer campanha eleitoral para o candidato de seus patrocinadores. Não tem nada de espontâneo aí.
Alguns inclusive compraram briga com a cantora Anita e artistas que apoiam Lula. Eles queriam acusar músicos de outros estilos de usar dinheiro púbico e acabaram tomando uma bela invertida. Seus podres foram expostos, essa é a boa notícia. A má notícia é que eles continuam recebendo gordos patrocínios para fazer shows para milhões de pessoas de municípios em que eles são a única opção de lazer.
“Bancada da bíblia”: o mercado gospel que cresce em ritmo acelerado
Se você é um jovem que quer aprender um instrumento musical e mora em um bairro de periferia ou em uma pequena cidade, talvez a única opção que você vai ter será a igreja. Dentro da igreja você vai aprender a tocar, terá lugar para ensaiar e treinar, além de apoio para suas primeiras apresentações, com público cativo de sua congregação. É um tremendo estímulo. Por isso algumas bandas do meio evangélico são conhecidas pela boa qualidade de seus instrumentistas.
Em 2020, a música religiosa do meio evangélico reunia 15 artistas com mais de um milhão de ouvintes no Spotify. A cantora Aline Barros vende mais que Ivete Sangalo. O público da chamada música gospel é fiel e cresce a cada ano. E é um negócio lucrativo e bem organizado.
De acordo com alguns empresários, o público gospel tem dinheiro para gastar, pois é regrado e não consome álcool. Por isso alimenta um rico mercado de livros, filmes e até material erótico. Cerca de 30% da população do país é evangélica e quer se ver representada na mídia que consome.
A capilaridade dessa indústria cultural é imensa. Em cada bairro de cada cidade do Brasil, a chance de ter uma igreja evangélica é grande. Ela talvez seja o único local nesse bairro em que exista algum tipo de atividade cultural. E possivelmente tem apoio da prefeitura e proteção da polícia. Os moradores do local sabem que perto da igreja tem ponto de ônibus e o risco de assalto é pequeno. Além disso, organizações religiosas não pagam impostos. A isenção fiscal para elas é uma verdadeira “lei Rouanet”.
Não podemos generalizar nem praticar preconceito religioso. Há evangélicos progressistas. Inclusive as pesquisas indicam a derrota de Bolsonaro no meio. Mas a relação entre boa parte das lideranças religiosas e a classe dominante do país é estreita. A versão mais radical da teologia da prosperidade é uma arma bastante eficiente para adequar a consciência da classe trabalhadora à exploração a ao conformismo.
“Bancada da bala”: A ala reacionária da cultura “gamer”
Aqui também não podemos generalizar. Alguns influenciadores do meio gamer, como Casimiro, têm inclinação progressista. Mas a cultura dos chamados “esportes eletrônicos” é bastante influenciada por homens de classe média que querem compensar suas frustrações com violência e preconceito.
Os videogames de hoje não têm nada a ver com aqueles arcades dos anos 90 em que você colocava uma ficha e jogava Street Fighter com seu personagem pixelado preferido. Os gráficos, o som e a complexidade das histórias dos jogos evoluíram muito. De acordo com algumas fontes, a indústria dos “games” já é maior que as indústrias do cinema e da música.
Mas o mundo dos jogos eletrônicos reflete as desigualdades do mundo real. Quem tem o equipamento mais caro, quem tem mais dinheiro para comprar armas e roupas virtuais, enfim, quem tem melhor condição econômica, está em vantagem. E isso ajuda setores sociais mais privilegiados a serem hegemônicos no meio.
Além disso, os jogos cada vez mais refletem uma cultura de violência. Se nos anos 80 existiam os filmes do Rambo, hoje você pode ser o próprio soldado matando vietnamitas ou venezuelanos. E a história dos jogos mais famosos em geral refletem valores imperialistas. Não é raro o vilão ser um “ditador latino-americano” e o herói ser um soldado do exército dos Estados Unidos.
Assim como existe um amplo mercado de comentaristas em mesas redondas de futebol, nos games existem os “streamers”, que promovem lives em que fazem comentários enquanto jogam. O sueco PewDiePie se tornou uma celebridade mundial com essa atividade.
Boa parte desses streamers são racistas, machistas, homofóbicos, divulgam teorias da conspiração e pregam a ideologia do “bandido bom é bandido morto”. A indústria de videogames até mostra certa preocupação, mas não toma uma atitude. Esses fascistóides têm ampla liberdade para agir.
No meio da pandemia, Bolsonaro reduziu os impostos de produtos ligados à indústria dos games. Uma espécie de “lei Rouanet” para um meio cultural onde ele é majoritário. Renan Bolsonaro, seu filho, se projetou como figura conhecida na comunidade “gamer”.
Lógico que a maioria dos fãs de jogos eletrônicos não são fasictóides. Mas a ala que quer sair do tiro virtual e cultua o armamentismo no mundo real é significativa.
Em resumo: há muito trabalho a fazer
A esquerda tem influência no meio cultural. Grandes nomes da área são progressistas. Mas estamos há anos luz de um uma produção de mídia que hegemonicamente defende a justiça social, a igualdade de gênero, a diversidade sexual e o antirracismo.
Não existe problema em um trabalhador se divertir bebendo enquanto ouve uma “moda” sertaneja. Ou em ver um show em um culto religioso. Ou em jogar um videogame para diminuir o stress. O problema é quando essas formas de diversão são as únicas escolhas. Em territórios onde não há equipamentos culturais, como um cinema, um teatro ou um museu, as pessoas não têm acesso a opções diversas de entretenimento. Outro problema é o controle das mídias por grandes grupos econômicos, que impõe seus valores. A internet não resolveu a concentração de poder, pelo contrário.
A mídia que consumimos ajuda a construir a nossa subjetividade. Ajuda a consolidar valores no imaginário coletivo. E isso é fundamental na hora de uma greve ou manifestação. Pode ser decisivo. O lado de lá já sabe disso, por isso gasta muito dinheiro, público e privado, em arte e entretenimento. Do nosso lado temos a criatividade e a combatividade. Existem cantores, escritores, cineastas e até programadores de jogos com ideias progressistas. Apoiar a cultura emancipadora também é resistência.
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