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TEORIA

Para uma contribuição sobre o esquerdismo (Parte 1)

Jorge Badauí
Bruegel, o Velho (1525-1569)

O Triunfo da Morte (c.1562). Óleo sobre madeira, 117 x 162 cm, Museo del Prado, Sala 025.

Quais foram os inimigos que o bolchevismo enfrentou, dentro do movimento operário, para poder crescer, fortalecer-se e temperar-se? Em primeiro lugar, e acima de tudo, na luta contra o oportunismo que, em 1914, transformou-se definitivamente em social-chauvinismo e se bandeou, de uma vez por todas, para o lado da burguesia, contra o proletariado. Esse era, naturalmente, o principal inimigo do bolchevismo dentro do movimento operário – e continua sendo, em escala mundial. O bolchevismo prestou e presta a esse inimigo a maior atenção. Esse aspecto da atividade dos bolcheviques já é muito bem conhecido no estrangeiro.
Quanto a outro inimigo do bolchevismo no movimento operário, a coisa já é bem diferente. Pouco se sabe, no estrangeiro, sobre o bolchevismo ter crescido, se formado e se temperado, durante muitos anos, na luta contra o revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que dele tenha adquirido alguma coisa, afastando-se, em tudo o que é essencial, das condições e exigências de uma consequente luta de classes do proletariado” (LENIN, 2004)

 

Sem pretensões de dar a palavra final sobre o tema, ou sequer de oferecer uma sistematização acabada, o presente artigo visa a contribuir, em perspectiva programática, à reflexão sobre o problema do esquerdismo, definido por Lenin como “doença infantil do comunismo”. A primeira seção, publicada a seguir, busca elencar alguns dos elementos pertinentes a um enquadramento teórico da questão. A segunda parte, a ser apresentada em breve, tratará das tentações esquerdistas no Brasil, hoje, quase seis anos após o golpe que depôs a ex-presidenta Dilma Roussef e sob a ameaça representada pelo governo do neofascista Bolsonaro.

PARTE 1 – O PROBLEMA DO ESQUERDISMO

A tradição marxista definiu as correntes reformista e revolucionária como as duas vertentes fundamentais da luta política da classe trabalhadora. Mas isso não implica que ambas fossem as únicas existentes. Se é verdade que delimitaram os campos estratégicos essenciais do movimento operário, nem por isso deixaram de conviver com distintas mediações – a exemplo do centrismo1. Ao redor dos revolucionários, particularmente, situa-se, desde sua origem, o esquerdismo (ARCARY, 2007).

Por diversas razões, nenhuma fração ou corrente política dos trabalhadores parece ter sido imune à influência de estratégias facilistas e demais sintomas de pressão ultraesquerdista. Marxistas em geral, anarquistas, socialistas, stalinistas, trotskistas, guerrilheiristas, conselhistas ou quaisquer outras vertentes do movimento internacional tiveram todas, em diferentes períodos históricos, como mínimo, suas fases e aventuras esquerdistas.

Durante o século XX, destacaram-se, dentre uma infinidade de outras, duas batalhas contra o esquerdismo no interior do movimento revolucionário internacional, tidas como seminais por terem aportado um importante legado teórico-político, desenvolvido contra expressões extremistas de esquerda de distintas motivações (MORENO, 2008):

  • A luta de Lenin, no interior da III Internacional, que ensejou a publicação de seu clássico Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920). Sob o impacto do triunfo da Revolução Russa, uma ala significativa de dirigentes da Internacional Comunista na Europa Ocidental radicaliza-se, na expectativa de que se coloque no plano imediato as condições para a tomada do poder também em seus próprios países. Nesse sentido, adotam teses sectárias com relação aos sindicatos, aos parlamentos, às agremiações reformistas e centristas e à construção de seus próprios partidos. A plataforma de Lenin seria, mais tarde, ponto de partida para a elaboração das táticas de Frente Única.

 

  • A luta de Trotsky contra o giro esquerdista do chamado “terceiro período”, pelo stalinismo, a partir de 1928. Consistiu no combate a uma viragem ocasionalmente ultraesquerdista da já hegemônica burocracia soviética, que incluía prognósticos catastrofistas do desenvolvimento do capitalismo e expectativas exageradas na radicalização das massas. Isso se traduzia na política de “nenhum acordo com o reformismo”, então alcunhado de “socialfascismo”. A essa linha, baseada na hipótese da revolução iminente, Trotsky opõe a política da Frente Única. Dentre as consequências dessa fase ultraesquerdista dos Partidos Comunistas nos mais diversos países, a mais trágica delas se deu na Alemanha, onde a recusa obstinada da III Internacional em conformar uma frente para enfrentar a contrarrevolução comprometeu a resistência à passagem ao poder pelos nazistas. Depois da derrota, com um novo giro agudo – agora à direita – Stalin abandona as teses do terceiro período em favor da conciliação de classes das Frentes Populares.

No Brasil, dentre as mais conhecidas derrotas impostas por orientações esquerdistas, caberia menção àquela que ficou pejorativamente conhecida como a Intentona Comunista, em 1935. Sob o governo de Getúlio Vargas e diante da pressão da atividade do Integralismo, a tentativa frustrada de assalto ao poder por meio de um levante militar, contando com apoio do PCB/ANL, foi rapidamente contida. Ainda que limitada a um programa que não ia além da ordem social capitalista, a tentativa de putsch, descolada de uma ação de massas, resultou em um fracasso que, por sua vez, desatou uma feroz perseguição às organizações dos trabalhadores e uma série de expurgos de elementos de influência ideológica de esquerda no interior das Forças Armadas.

Por sua vez, o período pós-golpe de 64 marcou o ápice da influência de uma variante esquerdista, quando amplos setores de vanguarda aderiram à estratégia guerrilheira. Após a derrota, diante da qual a linha política de colaboração de classes do PCB limitou o potencial da classe trabalhadora oferecer resistência de massas aos militares no poder, a esquerda viveu uma profunda crise e dispersão, enquanto era o alvo da brutal repressão do regime ditatorial.

Inspirada pela vitória da Revolução Cubana, e fetichizando seu método radicalizado, parte importante da militância política abandona o movimento de massas e busca retomar a luta contra o regime empresarial-militar através da formação de focos de luta armada. Massacrada pela repressão, a derrota da guerrilha custou caro: o extermínio físico de uma geração de dirigentes e a impossibilidade de construir um processo de resistência nas cidades facilitaram a estabilização do regime reacionário e seu plano econômico.

Mais recentemente, em Junho de 2013, uma outra forma esquerdista ganhou autoridade e simpatia de uma parcela significativa da vanguarda, embora com um impacto histórico muito inferior: os Black Blocs. Empalmando com os aspectos de espontaneidade daquele processo, a tática de promover ações de impacto sobre elementos simbólicos, como as vidraças dos bancos, foi uma marca inquestionável daquelas jornadas. Sem transbordar daí para a defesa de qualquer programa consistente, tais ações isolaram-se inteiramente do apoio das massas – fato que a burguesia soube explorar para legitimar sua repressão, alegadamente sobre “os vândalos”.

Passados 50 anos da experiência guerrilheira, e quando os Black Blocs já não causam maior comoção, nos toca a indagação: e para a presente geração de revolucionários, no Brasil e no mundo, há ainda razão para se discutir o assunto? O fim da URSS e a restauração do capitalismo nos países que haviam expropriado a burguesia trouxeram impactos da maior profundidade na situação da esquerda social. As condições desfavoráveis, desde então, para a construção de alternativas políticas revolucionárias colocaram a necessidade de se confrontar novos e complicados problemas para a investigação do desenvolvimento dos sujeitos políticos no âmbito das classes exploradas.

O aprofundamento das condições de marginalidade e fragmentação da esquerda revolucionária no século XXI não pode ser descrito e nem compreendido sem que se tome em consideração a existência objetiva do esquerdismo – ainda que este não seja o único ou o principal fator de tal cenário. E, ainda hoje, nada é mais parecido com política revolucionária sem o ser. Por essas razões, o esforço de atualização programática dos marxistas de nosso tempo segue demandando atenção a esse fenômeno.

O que é o esquerdismo?

Para os propósitos deste trabalho, admitimos duas hipóteses interpretativas para o esquerdismo, conforme delineadas por Valério Arcary (2007). A nosso ver, ambas não se excluem mutuamente:

  • O esquerdismo como um fenômeno reativo: a “expiação dos pecados oportunistas do movimento operário”, conforme a célebre formulação de Lenin. A repulsa provocada pelo conciliadorismo e a traição do oportunismo nutrem, em posição simétrica, os humores esquerdistas nos elementos mais honestos em luta contra o capital. Ou seja, tratar-se-ia de uma reação de setores de vanguarda ao conservadorismo e à atitude dos grandes aparatos burocráticos e seus agentes;

 

  • O ultraesquerdismo como corrente do movimento socialista, presente desde as primeiras pulsões igualitaristas na sociedade burguesa e que desenvolveu-se em uma grande variedade de formas e vocabulários, à margem do marxismo. Nessa abordagem, colocamos em relevo o extremismo de esquerda como uma autêntica tendência do movimento dos trabalhadores, de perfil próprio.

Normalmente identificado com a marginalidade social e política, o esquerdismo já demonstrou que pode ser capaz de ganhar capilaridade e audiência com o impulso de situações revolucionárias, como na Alemanha de 1918-19 ou nas Jornadas de Julho, na Rússia, em 1917. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, a confusão e a dispersão provocadas pelas derrotas parecem oferecer campo para que o esquerdismo prospere em certos círculos – hipótese que parece ser útil à compreensão do lugar do ultraesquerdismo no Brasil pós-golpe parlamentar de 2016, tema que abordaremos na segunda parte deste artigo.

Uma estratégia substitucionista

Em todo e qualquer caso, estamos nos referindo a uma perspectiva estratégica em que a ação revolucionária de massas é substituída pela disposição, a abnegação e correção de princípios de uma determinada vanguarda. Tal espécie de formulação retira da política seu compromisso com ganhar a adesão de uma ampla audiência e, assim, tornar-se força material de transformação efetiva da sociedade.

Em uma dimensão mais subjetiva, poderíamos atribuir esse substitucionismo à impaciência com as etapas que o trabalhador médio precisa experimentar para chegar a uma consciência revolucionária – ou mesmo à descrença de que isso seja possível. Em termos programáticos, toda essa visão se afasta daquela que é uma das ideias situadas no núcleo duro do programa marxista: a de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.

É dessa maneira que o ultraesquerdismo está sempre propenso, de uma forma ou de outra, a abraçar um projeto de revolução de minoria, em que um certo grupo de pessoas está em campo a decidir, ele próprio, o futuro de milhões de outras – malgrado a eventual passividade das últimas.

Para o marxismo, que quer entender e transformar o mundo como ele é, vale a regra de ouro de que não há saída que possa abrir mão da ação criadora das massas trabalhadoras. As tentativas de escapar a essa necessidade para tomar o poder fracassaram ou engendraram novos e sérios perigos. Na realidade, ao menos nas sociedades que completaram sua transição do mundo rural ao urbano, parece que nem ao menos transformações reformistas de grande vulto são possíveis sem a ação de milhões. A ideia de que se trata de uma revolução de maioria está inscrita, portanto, entre as mais profundas da estratégia revolucionária (CLAUDIO, 2018).

Voluntarismo e ultimatismo

Toda estratégia substitucionista é, portanto, voluntarista. Quando se menospreza a necessidade imperiosa de que as massas entrem em ação, já se crê literalmente que se pode mudar o mundo simplesmente porque se quer, saltando toda e qualquer etapa que se encontre pelo caminho. E quando se enxerga com essas lentes, é tentador dar vida a uma realidade imaginária em que se está sempre à beira do confronto final.

Quando realidade e desejo se confundem, a tendência é que as análises e planos de ação superestimem todos os aspectos positivos da situação dada e agigantem as debilidades do inimigo. Em outras palavras, o ultraesquerdista tende a ver o mundo sempre mais convulsionado do que realmente está e, o que é o mesmo, enxergar a si próprio mais forte do que realmente é.

Nesse sentido, as propostas de ação já não resultam de uma minuciosa investigação da correlação de forças entre as classes sociais e atores políticos em luta, senão que unicamente da necessidade. Se é preciso fazer, é possível e deve-se fazer. Quando a adesão de massas é tida como elemento supérfluo da luta política, todo chamado à ação é, na verdade, um ultimato.

Assim, quer com formas movimentistas, anarcosindicalistas ou antipartidárias, palavras de ordem como “greve geral” e “ação direta” deixam de ser propostas concretas, com propósitos definidos em função da realidade, a serviço da luta por um programa, e tornam-se objetos de agitação permanente, que nunca deixam de estar presentes mesmo que a situação objetiva mude. No mesmo sentido, demandas como a de “assembleia constituinte, já!” assumem a acepção de uma panaceia para toda nova crise. E a exigência de tarefas irrealizáveis pelas massas, em condições dadas, só pode resultar em desmoralização e derrota.

A impaciência perante os revezes ou os distintos estágios da luta conduz, assim, ao desprezo, consciente ou não, do estado de ânimo e do grau de mobilização do movimento realmente existente. A política perde a dimensão da busca pela articulação consciente de táticas e estratégias e tende a se converter em doutrinarismo, quando a aplicação de proposições teóricas se divorcia da exigência de se confrontar os problemas práticos inescapáveis para a ação política:

“O meio mais seguro de desacreditar uma nova idéia política (e não somente uma idéia política) e prejudicá-la consiste em levá-la ao absurdo, a pretexto de defendê-la, uma vez que toda verdade, se a tornamos “exorbitante” (…), se a exageramos e a entendemos além dos limites em que é realmente aplicável, pode ser levada ao absurdo e, nessas condições, ela própria se transforma num absurdo” (LENIN, 2004).

Se é verdade que a mera experiência empírica não pode ser o suficiente para a compreensão racional das tarefas impostas a quem deseja revolucionar a sociedade, o fato é que tampouco bastam as ideias corretas para triunfar. A busca consequente pela fusão do programa marxista com a luta concreta da classe trabalhadora coloca de forma indeclinável, a cada novo momento, o problema das mediações.

“Nenhum compromisso?”

Em uma perspectiva de que a revolução é o terreno da ação criadora das massas e de que só com as massas em ação é possível realizar a estratégia socialista, a organização revolucionária marxista luta para que sua política influencie a consciência e inspire a ação de milhões, da maioria do povo trabalhador. Em outras palavras, a luta revolucionária é a luta por fundir o marxismo com o movimento de massas.

Ocorre que, dentre os obstáculos para se chegar até esse fim, existem outras organizações e aparelhos políticos que influenciam os trabalhadores em sentido diverso. Poderíamos citar os grandes partidos reformistas, burocráticos e todos os aparatos ideológicos, das distintas classes sociais, que reforçam entre os trabalhadores, quer com formas mais ou menos radicais, a ideia de que o horizonte final de sua luta não pode ou não deve ir além do capitalismo.

Em circunstâncias de “normalidade”, os revolucionários se veem em minoria frente a esses aparelhos – que podem até alcançar grande prestígio entre as massas, se colocando à frente de suas lutas, ainda que com objetivos próprios. Essa condição impôs aos marxistas uma grande questão-problema: como levar às massas o seu programa, se não é possível saltar por cima da influência das organizações conciliadoras? Como minar a autoridade desses aparelhos, se contam com a confiança da maioria da classe trabalhadora?

Em resposta, os revolucionários marxistas formularam uma série de táticas que envolvem acordos, frentes e unidade na ação com os aparatos, e que têm a finalidade de conduzir o movimento de massas a dar passos em frente relativamente ao ponto em que se encontra, em determinada ocasião. Tais táticas unitárias são aplicáveis aos mais diversos campos da luta política, podendo, conforme a circunstância e a tarefa a que se vinculam, ser mais pontuais ou mais permanentes, envolvendo ou não organismos e programas comuns.

O rechaço a priori a todo tipo de acordo, frente ou ação unificada é um traço comum do ultraesquerdismo, ao longo de toda a história do movimento operário. Desde a Comuna de Paris até os dias atuais, sempre houve aqueles, no interior dos movimentos revolucionários, que elevaram a um princípio a ideia de que um projeto de genuína ruptura com a ordem burguesa torna inadmissível qualquer tipo de acordo, parcial que seja. Ou como mínimo, olhar com a maior desconfiança algo que é, na realidade, uma contingência elementar para quem não se sente confortável com a marginalidade política. Exige ignorar lições incontestes da experiência revolucionária do proletariado, como a de que “toda a história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro, está cheia de casos de manobra, de acordos e compromissos com outros partidos, inclusive os partidos burgueses!” (LENIN, 2004).

Evidentemente, todo acordo encerra um perigo oportunista. Essas táticas foram formuladas segundo critérios, entre os quais a liberdade de crítica, a qualquer tempo, dos revolucionários. Para os marxistas, só servem os acordos que sejam úteis à mobilização das massas e/ou ao amadurecimento de sua experiência política. É preciso que cada acordo esteja justificado solidamente pela análise da realidade concreta. Mas a validade ou não de princípios de um acordo só pode ser definida em função de sua articulação à uma estratégia independente, à luz de uma situação dada.

O que aqui estamos discutindo, portanto, é a visão de que possa existir algum tipo de acordo que, em si e por si, expresse uma posição de capitulação – que é a visão esquerdista do assunto. Para fundamentar essa posição, em geral se invoca o próprio caráter moderado ou traidor das direções com que se contrai tal tipo de concertação. Mas se a maioria da classe segue a direção desses aparelhos é porque, em algum grau, confia neles. Como demonstrar, nessas circunstâncias, que não são dignos, em última instância, de confiança senão por meio da experiência de uma luta comum? Novamente, o esquerdismo responderá a essa questão propondo um ultimato.

Em resumo, se a discussão sobre se um determinado acordo é útil aos revolucionários – ou se é uma rendição ou uma tragédia – só pode ser resolvida na investigação precisa das circunstâncias e termos que o envolvem, para o esquerdista, a resposta é sempre mais simples: a política mais revolucionária é sempre a política mais à esquerda.

A luta por levar o programa marxista às massas enseja outra apreciação do problema. Novamente por considerar que é indispensável à luta política revolucionária vincular-se aos fenômenos progressivos entre os trabalhadores, a política mais revolucionária é melhor entendida como aquela que pode, em uma dada situação, fazer avançar seu discernimento político coletivo, articulando programa e ação de forma concreta.

Em outros termos, podemos definir a política revolucionária como uma mediação entre as necessidades e o nível de consciência das massas. Se a política leva em conta somente as necessidades, sem apresentá-las de forma compreensível, é uma política esquerdista, doutrinária. Se responde apenas à consciência das massas, abdicando de buscar elevá-la a um patamar superior, incorre-se em oportunismo (MORENO, 1992).

Um dos esquemas ultraesquerdistas em que se expressa a ideia de que a política revolucionária é sempre e necessariamente a mais à esquerda, é o que conduz a elaboração política segundo uma metodologia mais próxima da cartografia. Essa mentalidade corresponde à seguinte operação mental: a organização burocrática propõe A, a reformista propõe B e a centrista, por sua vez, é por C. Logo, um revolucionário obrigatoriamente tem que defender D!

Desse modo, se um revolucionário concorda com um reformista, ainda que em uma questão imediata e circunstancial, ele próprio está capitulando ao reformismo. Nessa lógica, de notável infantilismo, a política é algo a serviço, em primeiro lugar, de “diferenciar-se” – ainda que, em certas ocasiões, isso só possa ser feito de forma artificial e apartada de uma real capacidade de pautar, sendo franca minoria, um autêntico debate sobre os rumos a propor para a mobilização dos trabalhadores. Seja entrecortada pelo economicismo sindicalista ou pelo cretinismo anti-parlamentar, tal metodologia só pode ser útil para retardar a construção de ferramentas revolucionárias e adaptá-las à marginalidade política e social.

Ultraesquerdismo e sectarismo

Essas duas palavras são muitas vezes usadas como sinônimos, o que pode ser útil para alguns fins práticos. Mas, a rigor, “ultraesquerdismo” e “sectarismo” exprimem conteúdos diferentes, que podem ou não ser complementares.

“Sectarismo” tem origem na ideia de “seita”, ou seja, um grupo extremamente fechado e autocentrado. Descreve uma forma de agir e pensar que privilegia os laços internos de círculos sociais que comungam de determinadas características e perfil. Em política, isso vale inclusive para matizes ideológicas mais à direita.

A burocracia sindical, em geral oportunista e conciliadora até a medula, é notoriamente sectária. É refratária ao debate de ideias, porque o contraditório ameaça seus interesses de grupo, de “seita” burocrática. A maçonaria, insuspeita de simpatia por idéias socialistas radicais, é sectária por completo.

Porém, se não são a mesma coisa, é um fato que o esquerdismo tende ao sectarismo. Porque o laboratório que “confirma” as ideias esquerdistas é sempre o dos pequenos círculos. Quanto maior o auditório, mais expressões da realidade questionam a coerência do discurso e a validade de suas teses.

Toda organização revolucionária está submetida a pressões sectárias, afinal elas lutam contra o estado de coisas reinantes na sociedade. Veem, no outro lado da trincheira, a classe dominante apoiada em seu Estado e em suas condições de superioridade econômica, de instrução, militar, etc. Por isso, organizações revolucionárias têm a necessidade imperativa de estabelecer fronteiras, para que possam preservar seu próprio programa e caráter.

As políticas ultraesquerdistas reforçam, nesse sentido, a penetrabilidade das organizações às concepções e práticas sectárias. Quanto mais hostil o mundo exterior, mais parece fazer sentido uma existência política restrita aos domínios internos das organizações ou aos meios de vanguarda mais esclarecidos.

Essa tendência, se não é contra-arrestada, pode resultar nas formas mais caricatas assumidas pelas seitas esquerdistas. Como, por exemplo, as pequenas organizações identificadas de forma folclórica com os trejeitos comportamentais comuns a seus membros: seus militantes parecem falar igual, gesticular igual, se vestir igual, etc.

Catastrofismo e messianismo

Ao parecer atribuir certo senso teleológico aos acontecimentos, como se estivessem predestinados a evoluir necessariamente à superação do capitalismo, o ultraesquerdismo confere sentido mecânico e vulgar à concepção materialista da história. A visão de que os eventos tendem inexoravelmente a desenvolver condições mais favoráveis à revolução pode ser útil à emulação interna de organizações e movimentos, mas de nada serve para a formulação de uma ação consciente.

Sob essa perspectiva, inúmeras correntes vaticinaram crises crônicas e terminais no capitalismo e nos regimes políticos. A disjuntiva histórica “socialismo ou barbárie” é, assim, deturpada em seu sentido, substituída por uma apreciação que seria melhor descrita por “socialismo ou nada” – ou, ainda, pragas, hecatombe nuclear ou a III Guerra Mundial. A ideia de barbárie para o marxismo, por sua vez, corresponde à regressão social.

Complementar à mentalidade catastrofista, o movimento revolucionário conheceu, também, por agência do esquerdismo, o messianismo. Em um mundo que está permanentemente à beira do Apocalipse, é preciso invocar a fonte da redenção. Por essa operação mental, os sujeitos social e político da revolução já não o são por razões contidas na estrutura social e na subjetividade da classe revolucionária, mas por suas características inerentes.

Dessa forma, abre-se a hipótese de idealizar a classe trabalhadora e suas frações mais exploradas e oprimidas, como se seu papel na revolução estivesse fundamentado em suas habilidades inatas ou em sua superioridade moral. O obreirismo, projeção mental fantasiosa da classe trabalhadora, é sintoma recorrente de dita enfermidade.

O mesmo exercício pode ser aplicado às próprias organizações revolucionárias. Vendo-se como a parcela mais consciente da classe mais consciente, únicos intérpretes legítimos da história, o messianismo atribuído a dirigentes e organizações políticas produziu algumas das formas mais caricatas de degeneração sectária2.

Fracionalismo e degeneração sectária

Tendo forjado um mundo à sua imagem e semelhança, a burguesia como classe dirigente da sociedade acumulou, também, uma experiência histórica na luta contra o movimento internacional dos trabalhadores e suas organizações sociais e políticas. Seja através da cooptação de lideranças ou da repressão aberta e direta, desenvolveu mecanismos para desmoralizar, dividir e derrotar os movimentos igualitaristas.

As deformações oportunistas transformaram algumas das mais poderosas organizações do movimento socialista em dóceis e domesticados aliados da dominação burguesa. A acomodação burocrática, o peso dos aparelhos sindicais e partidários ou o cretinismo parlamentar-eleitoral comprometeram o caráter de diversos projetos revolucionários – quando não os tornaram agentes diretos da classe dominante. Desde a II Internacional, a história é repleta de processos desse tipo de adaptação à ordem vigente.

Mas não se pode ignorar o processo simétrico, em que a prevalência continuada de interpretações históricas equivocadas e políticas esquerdistas correspondentes conduzem à degeneração sectária de organizações revolucionárias, enquanto ferramentas úteis à emancipação dos trabalhadores. Particularmente, a história da IV Internacional está repleta de casos desse tipo, o que sugere a recorrência de certa estreiteza em termos de atualização programática:

“Como o próprio Manifesto de Marx e Engels, “O programa de transição” tem limitações que correspondem a um momento histórico específico. A mais evidente é a que aparece no próprio título do documento: a convicção de que o capitalismo se encontra em sua “agonia”, que as forças produtivas estancaram, que a burguesia está totalmente desorientada e que o impasse econômico não tem saída […] Como acontece muitas vezes com os grandes textos do marxismo, “O programa…” foi vítima de uma fetichização dogmática. Correntes políticas se dizendo trotskistas transformaram-no numa espécie de catecismo, fora da história e da realidade. Quando o texto afirma que “as forças produtivas da humanidade deixaram de crescer” talvez corresponda a 1938, quando a Europa e o mundo ainda se debatiam com as consequências da grande crise de 1929, mas, para certas correntes trotskistas, a afirmação continuava valendo em 1960 ou 1980.” (LÖWY, 2013)

Apostas em uma interpretação do mundo segundo a qual o próprio desenvolvimento das condições objetivas engendraria tendencialmente, a cada nova crise, novas vitórias revolucionárias do proletariado, implicaram em abordagens políticas que menosprezaram as dificuldades para que os marxistas pudessem efetivamente saltar à direção dos grandes processos de luta dos trabalhadores. As condições de marginalidade social e política em que os revolucionários se viram imersos desde a maior parte do século XX foram terreno fértil para aventuras sectárias. Nesse contexto, o esquerdismo, desorientador por natureza, parece ser um fator inescapável, dentro de um quadro multicausal, para a compreensão da crise, dispersão e fragmentação do marxismo revolucionário em nosso tempo.

Quanto mais isolamento, mais difícil é desviar-se da política esquerdista – que, por sua vez, aprofunda o isolamento. O perigo aqui é que as contingências da luta revolucionária de uma classe despossuída, explorada e oprimida passem a ser vistas como virtude: a solidão política se torna um atestado de pureza revolucionária.

Mas em um fraternal ambiente de debates, mesmo uma política equivocada pode ser corrigida. Uma abordagem esquerdista, contudo, pode turvar a visão de maneira que, em determinadas situações da luta de classes, passa a obstruir os mecanismos de ajuste da linha política e deformar o funcionamento interno das organizações. Política esquerdista introduz, invariavelmente, metodologias sectárias de debate entre os próprios revolucionários. E, nesse contexto, a enfermidade do fracionalismo entre organizações que, de distintos pontos de vista, defendem a causa da revolução torna-se endêmica.

É impossível que uma linha ultraesquerdista permaneça por um longo período em uma organização com um saudável regime de funcionamento. Para que isso aconteça, é preciso estar fechado às expressões mais positivas do movimento de massas a tal ponto que a política seja percebida como algo que se justifica por sua própria aparente coerência interna.

Quando se chega a essa altura, o debate em uma organização rompe o compromisso com um marco comum de elaboração. Agudizam-se os aspectos sectários e a coesão de princípios do agrupamento passa a ser medida com a régua do grau de acordo com a linha esquerdista, diante da qual qualquer resistência é a priori identificada com uma incorrigível manifestação interna de pressões sociais alheias aos interesses dos trabalhadores.

Em lugar de discussão política, podem surgir os insultos desmoralizantes, as ameaças veladas, a dissimulação, as insinuações caluniosas, as manobras administrativas. Relações de confiança construídas em anos de ação comum são rompidas pelo rancor e por efeito dos argumentos ad hominem e do levantamento de suspeitas. A paranoia com um mundo cercado por inimigos por todos os lados se dirige a identificar a sabotagem interna premeditada.

Em tais condições, produzem-se rupturas por vezes precipitadas e quase sempre sem que se procure dar nitidez a suas razões mais profundas. Desgraçadamente, boa parte das organizações da esquerda socialista brasileira passou, nos últimos anos, por convulsões internas que reproduziram, de certa forma, esse roteiro. Ainda que por uma combinação de muitos outros fatores, cisões dolorosas aprofundaram sua fragmentação e dispersaram força subjetiva pelo caminho.

A mudança da situação política brasileira em meados da última década, em um contexto de derrotas, colocou às organizações marxistas o problema de como reordenar estratégias em sentido defensivo, preservando a firmeza de princípios e o norte programático de classe. Mas revelou, também, que o esquerdismo tampouco foi um abrigo seguro frente ao desenvolvimento negativo da realidade de nosso país.

REFERÊNCIAS
ARCARY, V. . Ultra-esquerdistas e sectários, anotações para uma história do extremismo de esquerda. Tempos Históricos (EDUNIOESTE) , v. v.10, p. 267-291, 2007
CLAUDIO, Rodrigo. Uma nota sobre a estratégia. Esquerda Online, 2017. Disponível em <https://esquerdaonline.com.br/2017/04/19/uma-nota-sobre-a-estrategia/>. Acesso em: 19 de abril de 2018.
GITTLITZ, A. M.; BRODER, David. Posadas, o trotskista que acreditava no comunismo intergalático. Jacobin Brasil, 2020. Disponível em: <https://jacobin.com.br/2020/07/posadas-o-trotskista-que-acreditava-no-comunismo-intergalatico/>. Acesso em: 29 de maio de 2022.
LENIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Anita Garibaldi, 2004.
LÖWY, Michael. Leon Trótski e “O programa de transição”. Blog da Boitempo, 2013. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2013/11/07/leon-trotski-e-o-programa-de-transicao/>. Acesso em: 29 de maio de 2022.
MORENO, Nahuel. O Partido e a Revolução. São Paulo: Editora Sundermann, 2008.
______.Teses para a atualização do programa de transição. São Paulo: CS Editora, 1992.
TROTSKY, Leon. O que é o centrismo? Marxist Internet Archive, 2005. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/05/28.htm#topp>. Acesso em: 29 de maio de 2022.

 

1 Segundo a definição de Trotsky (2005), “as duas correntes fundamentais da classe operária mundial são o social-imperialismo, por um lado, e o comunismo revolucionário, por outro. Entre estes dois polos há uma série de correntes e agrupações de transição que mudam constantemente de roupa e se encontram sempre em estado de transformação e oscilação: às vezes oscilam do reformismo ao comunismo, outras do comunismo ao reformismo. Estas correntes centristas não têm, e sua natureza não lhes permite ter, uma base social bem definida. Enquanto o comunismo é o porta-voz da classe operária e o reformismo representa os interesses da cúpula privilegiada da mesma, o centrismo reflete o processo transicional no interior do proletariado, as distintas ondas dentro de suas distintas camadas e as dificuldades que estorvam o avanço a posições revolucionárias definitivas.”
2 A título de exemplo, cf. https://jacobin.com.br/2020/07/posadas-o-trotskista-que-acreditava-no-comunismo-intergalatico/