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BRASIL

Justiça por Genivaldo! Todo camburão e manicômio tem um pouco de navio negreiro

Pedro Henrique Antunes da Costa*, de Juiz de Fora, MG

Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, foi morto nesta quarta-feira, 25 de maio, em Umbaúba (SE), por policiais rodoviários federais. Genivaldo foi assassinado dentro do porta-malas de uma viatura da polícia por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda. Genivaldo foi executado depois de ser humilhado, jogado no chão, amarrado e chutado. Enquanto é assassinado, enxerga-se suas pernas se debatendo, ouve-se seus gritos. Nada impede o ritual da morte.

Segundo familiares, Genivaldo era esquizofrênico. Os policiais tinham sido informados da sua condição. A execução ocorreu, numa coincidência trágica, uma semana depois do Dia da Luta Antimanicomial, em que se celebra e vocaliza as lutas e conquistas históricas na compreensão e abordagem da loucura no Brasil – muitas delas em franco retrocesso no presente. O assassinato de Genivaldo aconteceu um dia depois de uma chacina que tirou a vida de 23 pessoas na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Em outra bárbara coincidência, se deu exatos dois anos depois da morte, também por asfixia, de George Floyd nos Estados Unidos.

Num exemplo evidente de nosso caráter arcaico-moderno, somos apresentados ao camburão de doido

Na história da loucura em nosso país, eram comuns os chamados trens de doidos, a passar pelas cidades coletando pessoas a ser jogadas e mortas nos manicômios. A maior parte, não por acaso, pobre, negra. Num exemplo evidente de nosso caráter arcaico-moderno, somos apresentados ao camburão de doido – o mesmo camburão dos criminosos, cujas especificidades não mudam a cor dos “passageiros”. Enquanto expressão do “novo”, de evolução e sofisticação, temos não apenas o desenvolvimento do meio de transporte, mas da produção da morte e, mais, a sua eficácia: uma morte instantânea, que economiza gastos; o camburão da morte. No mais, o “velho” modus operandi de buscar acabar com a loucura, com a pobreza, findando com os loucos, com os pobres (de preferência negros). A morte – em larga escala, o genocídio, e que tem classe e raça muito bem definidas – não só como efeito colateral, mas como força produtiva em nosso capitalismo dependente, de gênese e desenvolvimento colonial, abruptamente desigual e racista.

Um novo-velho, moderno-arcaico que também se manifesta pelos métodos exterminicidas: câmaras de gás, que remetem a práticas nazistas. Nazismo que, muitos esquecem ou desconhecem, extraiu alguns de seus fundamentos da colonização e escravatura nas Américas, os desenvolvendo e sofisticando. Não à toa, Rachel Passos, ao apontar para a necessidade de racialização da história da loucura no Brasil, indaga por que comparamos nossas práticas e instituições manicomiais com o holocausto, ao invés de, condizente com nossas particularidades, as compararmos com os navios negreiros – e acrescentamos, às senzalas? Sem adentrar numa suposta hierarquização (venal) da barbárie, para Rachel “a atualização das práticas manicomiais, hoje expressas nas múltiplas ações do Estado, estão atreladas muito mais ao colonialismo do que ao holocausto”1.

O negro como inimigo interno, causa de nossas mazelas sociais, devendo ser extirpado ou preso; ou preso e extirpado. Inimigo interno por ser negro e, sendo negro, perigoso, cuja periculosidade aumenta enquanto negro e louco (cuja “doença” retira dele as faculdades mentais, a razão tornando-o ainda mais incontrolável) ou negro e traficante – que se tornou um pleonasmo, graças à construção ideológica do traficante como negro e do negro como traficante. Rememorando Clóvis Moura (1988), “[n]egro se mata primeiro para depois saber se é criminoso é um slogan dos órgãos de segurança”2. E, mesmo depois de morto, continuam os mecanismos de fatalização, numa tautologia mortificante: era traficante, criminoso, favelado, drogado, louco etc.; no fim das contas, era negro.

Bolsonaro: “vou me inteirar com a PRF”

Ao ser questionado sobre o ocorrido, o presidente da República fingiu não saber, mas fez questão de relembrar acontecimento de duas semanas atrás em Fortaleza (CE), em que dois policiais rodoviários federais foram mortos por um homem em situação de rua que trafegava entre os carros da BR-116 e, segundo relatos, também tinha transtornos mentais. Seu nome era Antônio, tinha 31 anos, era pedreiro, também negro, e havia deixado sua cidade no interior do Ceará há um ano após um episódio traumático – o roubo de sua motocicleta – que desencadeou um surto, passando a viver como andarilho. 

Após abordagem dos dois policiais armados, iniciou-se uma luta corporal, que acabou resultando na tomada de uma arma dos policiais e nos tiros que os mataram. Em seguida, o autor dos disparos foi baleado e morto por outro policial, à paisana, que estava no local.

Segundo Bolsonaro, “o que eu vi há pouco, há duas semanas, aqueles dois policiais executados por um marginal que estava andando, lá no Ceará. Foram negociar com ele, o cara tomou a arma dele e matou os dois”, no que supõe uma justificativa à execução de Genivaldo. Ora, agora, então, estão permitidas as execuções de loucos e pobres (de preferência negros) como vingança ou suposta justiça? Na verdade, o que há de se questionar é: quando não esteve? Quando loucos, pobres (de preferência negros) não foram executados em nosso país? Nos manicômios, nas prisões, em operações policiais das mais diversas… por frio nas ruas, pela fome.

O que o caso de Genivaldo demonstra – e aterroriza – é a não preocupação, mesmo que mínima, com a ocultação da barbárie.

O que o caso de Genivaldo nos traz – de ainda mais preocupante – é a perda dos simulacros de alteridade; não basta mais “só” humilhar, torturar. O que o caso de Genivaldo demonstra – e aterroriza – é a não preocupação, mesmo que mínima, com a ocultação da barbárie. A execução como espetáculo. Nem mesmo as possíveis penalizações cumprem um papel de freio contratual com a vida do outro, de pacto social, mesmo que seja um filamento. Pelo contrário, a espetacularização da barbárie representa, justamente, uma história de impunidade da e pela barbárie; um sintoma evidente da fascistização de uma sociedade que se pautou e pauta na violência como normal – se dando, inclusive, com o silenciamento dos gritos que historicamente a denunciam. Agora não basta mais matar negro e pobre, há de se vangloriar; há de fazer isso a céu aberto, à vista de todos; como estratégia de controle a alguns, fomentando o medo, e como gozo de outros – e para outros. Se a revolução não foi ou será televisionada, a contrarrevolução tem sido; e nos tempos presentes, não só televisionada, mas também postada, compartilhada, curtida.

Nada mais simbólico que a execução de uma pessoa com problemas mentais se dê no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro vete a homenagem a Nise da Silveira como heroína da pátria. Seria estranho se o presidente do governo mais manicomializante da Nova República aceitasse a homenagem a Nise, médica psiquiatra que revolucionou a assistência às pessoas em sofrimento psíquico no país, em direção a um cuidado humanizado; que questionou a tortura travestida de tratamento e procurou romper com os muros físicos e simbólicos da segregação e grilhões de opressão aos “loucos” no Brasil. Na verdade, a negação da homenagem por uma pessoa como Bolsonaro é a própria homenagem; a afirmação da grandeza de Nise, de sua importância e impacto no campo da saúde mental brasileira.

No mais, a execução de Genivaldo é, infelizmente, um exemplo didático, por meio de uma pedagogia da opressão, dos imbricamentos entre os mecanismos asilares-manicomiais e prisionais; entre a violência policial e psiquiátrica. Ao evidenciar isso, demonstra também que as negações asilar-manicomial e prisional devem estar imbricadas. Mais, aponta para a necessidade de que esta negação se faça luta, na luta, e uma luta conjunta, contra toda forma de asilamento, de aprisionamento: que a luta antimanicomial seja a luta anticárcere, abolicionista.

A execução de Genivaldo é, infelizmente, um exemplo didático, por meio de uma pedagogia do terror – do terrorismo estatal –, dos imbricamentos entre os mecanismos asilares-manicomiais e prisionais, a violência policial e psiquiátrica, e as nossas estruturas sociais de classe e raça (e etnia e gênero). Ao evidenciar isso, demonstra também que a negação asilar-manicomial e prisional deve estar imbricada à negação e superação da sociabilidade que se manifesta e se reproduz nas/pelas violências asilar-manicomial e prisional, policial e psiquiátrica: uma sociedade desigual e racista que se expressa por instituições de opressão de classe e racistas. Mais, aponta para a necessidade de que esta negação se faça luta, na luta, e uma luta conjunta, contra toda forma de asilamento, aprisionamento, exploração e opressão: que a luta antimanicomial e anticárcere/abolicionista seja antirracista e anticapitalista

Como disse Fanon: “A função de uma estrutura social é edificar instituições atravessadas pela preocupação pelo homem. Uma sociedade que encurrala [e asfixia] os seus membros em soluções desesperadas é uma sociedade inviável, uma sociedade a substituir”3. Parafraseando Marcelo Yuka, no Brasil, todo camburão e todo manicômio têm um pouco de navio negreiro.

Justiça por Genivaldo!

* Professor de Psicologia e militante da Resistência/Juiz de Fora.

1  PASSOS, R. G. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018.

2  MOURA, C. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. São Paulo em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 44-46, 1988

3  FANON, F. Carta ao Ministro Residente. In: FANON, F. Em defesa da revolução africana. São Paulo: Ciências Revolucionárias, 2018. p. 61-63.