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Dar uma chance ao futuro em tempos tenebrosos: “com Lula para derrotar Bolsonaro”

Lula
Ricardo Stuckert/ PT

Elaine Behring

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e serviço social.

Tenho acompanhado o tenso e intenso debate sobre a localização da esquerda no debate eleitoral de 2022 para a Presidência nos espaços de militância, redes sociais, eventos acadêmicos e de movimentos sociais, e mídias. E senti a necessidade de falar de forma mais sistemática sobre minha posição e reflexão aqui no espaço da coluna do EOL. 

De partida é importante demarcar: meu voto será em Lula, apesar de Alckmin, nas eleições presidenciais de 2022. Um voto pragmático e sem ilusões, um voto para dar a chance de que no futuro próximo possamos colocar na ordem do dia as pautas das lutas sociais dos(as) trabalhadores(as) em um terreno de liberdades democráticas; e, sobretudo, porque Lula é hoje o único candidato capaz de afastar Jair Bolsonaro e seus asseclas do poder, condição necessária para colocar um freio na imensa devastação econômica, social, política, ambiental, cultural e sanitária produzida nos últimos anos. Depois do golpe de Estado de novo tipo de 2016, cuja consequência posterior foi a eleição de Jair Bolsonaro, recrudesceu o ajuste fiscal brasileiro, processo que vimos chamando de ultraneoliberalismo; desencadeou-se uma imensa ofensiva sobre a classe trabalhadora, tendo em vista ampliar as taxas de lucros, precarizando os empregos e restringindo direitos. No trato da pandemia de Covid 19, denunciamos perplexos(as) o governo se aliando ao vírus, contribuindo acintosamente para ceifar vidas precoce e desnecessariamente. E em plena urgência climática, vimos o incentivo ao desmatamento, ao garimpo ilegal, à privatização de parques, à mineração predatória, o que vem acompanhado de violentos ataques aos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, especialmente na região amazônica. Isso tudo sem deixar de lembrar das posturas racistas, misóginas, e de agressões à população LGBTQI+, bem como o incentivo à violência por meio da difusão de uma lógica armamentista e da nítida associação com milícias. Enquanto o governo faz clientelismo com a liberação de R$16 bilhões em emendas parlamentares do “orçamento secreto”, quer cortar R$ 10 bilhões em educação e saúde, tirar crianças da escola sobrecarregando as famílias com o tal homescholling e cobrar mensalidades na universidade pública (com a recém colocada em pauta na CCJ da PEC 206/2019). Sem falar nas propinas no Ministério da Educação para pastores que foram “ourar” no espaço que deveria ser público e se constituir como uma das políticas mais importantes e estruturantes no país.

A lista de desmandos e de medidas que incrementam a barbárie no Brasil vai muito além desses aspectos e não caberia nessa coluna. Ainda assim, observemos mais de perto alguns desses traços do (des)governo Bolsonaro e que, em meio a muitos, justificam minha opção eleitoral nesse momento. Porém, sublinho que esta posição tática não inclui apoiar e menos ainda integrar o que está se desenhando como um governo Lula/Alckmin. As razões para isso também abundam, mas duas são mais óbvias: apesar das críticas de Lula ao teto de gastos, busca-se desesperadamente alguma âncora fiscal para dar sinais ao nervoso mercado de manutenção da lógica do ajuste fiscal; a presença de Alckmin é um péssimo sinal, dado seu recentíssimo passado conservador, com repressão ao movimento estudantil paulista e em Pinheirinho, além de suas conhecidas posições ligadas à Opus Dei. Nesse sentido o apoio à Lula nessa composição é eleitoral, no sentido de construir as exigências programáticas a serem feitas nas lutas no dia seguinte a sua posse quando nos tornaremos oposição. Também é fundamental registrar que, muito provavelmente, a posse de Lula, caso seja eleito pois essa não é uma certeza, deverá ser assegurada nas ruas. Vale reiterar que essa posição não subscreve qualquer desqualificação e/ou cancelamento de setores de esquerda que não concordam com ela e tem outra posição frente ao debate eleitoral e outra leitura da conjuntura, apesar dos riscos e perigos na esquina que vislumbramos. Ali na frente tenho a certeza de que cerraremos fileiras contra as ameaças golpistas que nos rondam para além das eleições.

Então, retomemos o fio. Para Jair Bolsonaro e Paulo Guedes todos os problemas econômicos e sociais em curso no país encontram seu fundamento nos impactos da pandemia. Especialmente, segundo a verborragia presidencial, na decisão de estados e municípios de realizar algum controle sanitário. Mais recentemente, as responsabilidades são depositadas nos impactos da guerra na Ucrânia. As políticas econômica e sanitária do governo federal, para eles, não tem qualquer responsabilidade pelos dramas cotidianos da população brasileira, já que o mercado aparece nesta “narrativa pós-verdade” como uma força da natureza, o que também se aplicou à concepção anticientífica da pandemia e de seu enfrentamento, sobre a qual o governo alegava não poder fazer nada ou muito pouco, apostando na “imunidade de rebanho”. Este argumento, que se sustenta num deslavado darwinismo social, com a naturalização do que é escolha e é histórico, escamoteia os setores e indivíduos plenamente recompensados na crise, a exemplo dos credores da dívida pública, do agronegócio e das mineradoras (legais e ilegais), da indústria armamentista, de setores industriais que usufruem das benesses das isenções fiscais, de setores do complexo industrial da saúde, de políticos locupletados pelo “orçamento secreto”, do e-commerce, dentre outros. São os novos bilionários brasileiros que passaram a integrar a “seleta” lista da Revista Forbes no rastro das dramáticas imagens de cemitérios abrindo covas pelo país. Estes são os verdadeiros winners, utilizando ironicamente o jargão da ortodoxia neoliberal e meritocrática, enquanto os losers são os que perderam empregos, salários e entes queridos, graças aos desmandos ultraneoliberais e neofascistas.

Vejamos alguns indicadores da tragédia brasileira no mundo do trabalho. Se numa sociedade regida pelo valor e sua expressão monetária, o dinheiro, temos a única forma de acessar bens e serviços no mercado, dispondo de certa quantia em moeda, o que vivemos é uma situação desastrosa para a imensa maioria da população brasileira. Condições que já não vinham nada bem antes da pandemia e da guerra atual, pioraram muito. Vale lembrar que o PIB brasileiro já tinha o medíocre desempenho de 1,2% de crescimento em 2019, o que foi seguido de uma queda de 3,9% em 2020. Corroborou para esse estado de coisas a falta de vontade política de efetivamente combater o vírus pelo governo federal, o que retardou imensamente a redução do contágio e postergou as medidas sanitárias, causando um curto-circuito na economia já dilacerada. A atitude genocida de Bolsonaro, e , portanto, inteiramente desprovida de afeto e humanidade, ainda que tenha produzido perdas em suas hostes, contaminou parte da sociedade brasileira contra a vacinação, o uso de máscaras e demais cuidados necessários, e ainda estimulou tratamentos sem efeito, como o malfadado kit Covid. Assim, chegamos ao patamar de quase 670 mil mortes conhecidas em 2022. As estimativas falam sobre, ao menos, 200 mil mortes a mais em função da grave subnotificação no país.  

O impacto econômico não poderia ser mais deletério para as condições de trabalho e de vida das maiorias. Segundo documento de indicadores do IBGE (1), sistematizados a partir da PNAD e referentes ao trimestre dezembro de 2021 a fevereiro de 2022, numa força de trabalho em idade de trabalhar de cerca de 107,2 milhões de pessoas, a taxa de desocupação oscilou entre 11,1% em 2019, e 11,2% em 2022. No auge da pandemia tivemos 14,6% de desocupados. Portanto, com o recuo e melhoria dos indicadores sanitários, houve tênue recuperação de postos de trabalho, mas estabilizando-se nos patamares anteriores à pandemia. Temos praticamente o dobro de desocupados(as), se tomamos esse mesmo indicador no ano de 2013, com 6,3% de desocupação, o que reflete o desastre econômico pós-golpe de 2016 e especialmente a partir de 2019, quando o PIB brasileiro teve o crescimento pífio já referido, o que foi na ocasião creditado à “herança maldita” dos governos anteriores, já que para o bolsonarismo, a responsabilidade é sempre do outro.  Aos desocupados se somam desalentados e outras subcategorias que integram o conceito de subutilização da força de trabalho, taxa que se consolidou em 23,5% da força de trabalho, ou seja, cerca de 27,3 milhões de trabalhadores(as). Em 2022, o Brasil tem cerca de 66,3 milhões de trabalhadores fora da força de trabalho. No auge da pandemia em meados de 2020, eram cerca de 77,2 milhões e, para efeito comparativo, em 2012, eram cerca de 57,2 milhões. Esses dados mostram, na verdade, uma condição estrutural da força de trabalho brasileira, mantida na reserva como um forte elemento de pressão sobre os salários, num país dependente e marcado pela superexploração da força de trabalho, o que recrudesceu muito nos últimos anos. Com esses dados estou reiterando também que os governos petistas não foram o “paraíso na terra”, como alguns de seus apologetas querem fazer crer, fruto de um suposto neodesenvolvimentismo e da emersão da “nova classe média”. Em muitas oportunidades e textos fiz essa crítica, inclusive mostrando o subfinanciamento das políticas sociais (o que se tornou desfinanciamento após o teto de gastos e as demais medidas do Novo Regime Fiscal com o golpe de novo tipo em 2016). No entanto, é preciso registrar que houve uma degradação enorme das condições de vida e trabalho no Brasil desde 2016 e especialmente a partir de 2019, e que geram essa espécie de ilusão de ótica em alguns analistas, e remetem enormes segmentos da classe trabalhadora a resgatarem a memória recente de tempos melhores e depositarem mais um voto de confiança em Lula. Este é um elemento, uma base material, que não pode ser desconsiderada pela esquerda, sob pena de uma desconexão com a classe e a defesa apenas abstrata de suas condições de vida e trabalho e do socialismo. Este é um horizonte estratégico há muito abandonado por Lula, evidentemente, sendo substituído por seu “reformismo sem reformas” como analisou o companheiro Valério Arcary. Cabe à esquerda desmistificar esse projeto, o que efetivamente não foi possível no contexto de ascenso da extrema direita neofascista a deslocar o campo de disputas nessa conjuntura. Mas para desmistificar o lulismo é preciso uma profunda conexão com as demandas imediatas da classe, tendo em vista a emersão do mediato, sob pena de um duradouro isolamento social. 

Continuemos com mais alguns dados factuais: o rendimento médio dos(as) trabalhadores(as) decresceu, já que a retomada tênue de algum dinamismo econômico no final de 2021 se deu com a oferta de postos de trabalho de menor remuneração e qualidade, impacto também da contrarreforma trabalhista de 2017 e de políticas do governo federal em nome da manutenção de empregos: retrocedemos ao valor médio de R$ 2.504, em 2022, menor que os R$ 2.556  de 2012, o que, ademais, já era baixo. De outro ângulo, temos o recrudescimento da inflação corroendo o poder de compra dos salários, o que não encontra na política econômica ultraneoliberal qualquer obstáculo. Pelo contrário, o que observamos é o acompanhamento dos preços internacionais de commodities como os combustíveis, que interferem nos preços dos alimentos e demais itens de necessidades básicas das maiorias empobrecidas. Uma política de preços da Petrobrás que tem relação com a remuneração dos grandes acionistas e com a privatização da BR Distribuidora, o que cola os preços na concorrência entre os novos donos. Os acionistas desta empresa gigante e estratégica, e que faz o Brasil ser autossuficientes em produção de petróleo, além de dar um lucro de mais de R$ 44 bilhões apenas no primeiro trimestre deste ano, não podem perder nada, enquanto as maiorias padecem. E diante disso, o governo – o maior acionista – faz jogo de cena, substituindo presidentes da empresa e ameaçando com uma privatização que requisitaria nitidamente a sua desnacionalização completa, dado o porte da Petrobras e da empresa criada para a exploração do pré-sal. Na verdade, este foi mais um bode na sala para efeitos midiáticos.

Em abril de 2022, tivemos um IPCA acumulado de 12,13% corroendo o poder de compra da população, que não consegue mais comer carne bovina e pagar aluguéis, mesmo de habitações precárias, muitos(as) indo viver nas ruas das grandes e médias cidades. Se pensamos nos que estão fora do mercado de trabalho, alguns com cobertura parca de programas de transferência monetária (R$ 400 reais de Auxílio Brasil, acompanhados do desmonte do SUAS, são absolutamente insuficientes!), e mais ainda, nos que estão de fora, mas não têm acesso mesmo a esses programas por seus critérios draconianos, é possível tornar inteligível – ainda que inaceitável – o retorno da fome (insuficiência alimentar grave ou moderada), os imensos contingentes populacionais vivendo na rua, e o acirramento da violência difusa, especialmente nas áreas urbanas. O número de pessoas em situação de extrema pobreza (renda per capita de até R$ 105) inscritas no CadÚnico para ter acesso aos programas sociais cresceu 11,8%. E retornamos ao Mapa da Fome, com cerca de 19,1 milhões de habitantes em condições de maior gravidade, neste pobre país rico, um dos “celeiros do mundo” com suas imensas safras exportadas por bilhões de dólares e que enriquecem os setores do “agro é pop”, mas pouco oferece aos habitantes/cidadãos locais. 

Dar uma chance ao futuro é, dentre outros elementos, incidir sobre essa condição material e subjetiva desesperadora de imensos segmentos da classe trabalhadora brasileira jogados na luta diuturna pela sobrevivência imediata, convencidas de que não tem mérito em meio à selvageria do horror econômica e seduzidas por um suposto empreendedorismo individual. É preciso abrir uma janela democrática para que a classe trabalhadora possa voltar à cena e fazer a história com suas próprias mãos e sem ilusões. Para tanto, é urgente fazer frente à devastação bolsonarista, impondo a esses setores uma derrota eleitoral, e na sequência uma derrota política e histórica ao bolsonarismo neofascista. 

A delicada condição da esquerda digna deste nome neste ano de 2022 tem uma profunda relação com a derrota que sofremos e da qual o PT fez parte ao se tornar a ala esquerda do partido da ordem, lembrando aqui a brilhante análise de Marx em seu 18 de Brumário de Luis Bonaparte, por sua vez chave para as análises de Felipe Demier no livro Depois do Golpe (2017). A Resistência/PSOL defendeu e lutou por uma frente única de esquerda ao longo de todo esse período, e não logramos sucesso. O PT manteve sua linha de conciliação de classes e de não realizar maiores autocríticas do passado recente. Agora, eleitoral e programaticamente, vai manter o “mais do mesmo”. O PSOL tem crescido e tido importante e corajosa atuação parlamentar à esquerda, mas, por outro lado, tem fortes dificuldades de se constituir como um polo aglutinador e independente da esquerda brasileira, nessa conjuntura tão desafiadora, muitas vezes cedendo às pressões eleitorais de ocasião. Porém, no caso das eleições presidenciais, penso que a resolução PSOL com Lula para Derrotar Bolsonaro foi acertada, tendo a grandeza que o momento do país requisita. 

Notas

1 Disponível em Biblioteca IBGE  Acesso em maio de 2022.