O mês de maio de 2022 foi, sem dúvidas, histórico para a Enfermagem Brasileira. A aprovação do Piso Salarial na Câmara dos Deputados, após intensa mobilização da categoria, nos estados e no DF, foi um alento a milhares de profissionais que sofreram durante a pandemia de Covid-19.
Maio também foi o mês da 83º Semana Brasileira de Enfermagem, cujo tema norteador foi o debate e a reflexão sobre as lições aprendidas pela categoria com a pandemia. Mas afinal, o que podemos levar como aprendizado desse período tão difícil?
A Enfermagem é uma prática social. Portanto, não expressa neutralidade, seja em sua dimensão ideológica ou na sua forma de agir. Inserida em determinados contextos históricos, políticos e econômicos, ela expressa modelos teórico–práticos que reproduzem as relações de poder na sociedade, a dicotomia entre o pensar e o agir, os interesses econômicos, entre outros pontos.
A dinâmica de desenvolvimento desta prática, que está intimamente vinculada às relações de produção na sociedade, pode aproximar ou afastar a Enfermagem das necessidades de saúde da população, democratizar ou restringir o acesso aos serviços de saúde, dar autonomia ou subjugá-la a outras profissões, assim como configurar o perfil de morbimortalidade da profissão frente às condições de trabalho impostas pelo mercado e pelos governos.
Pode-se dizer que as bases ideológicas e históricas da Enfermagem no Brasil, entre as quais estão a obediência, a abnegação, a humildade, o servilismo, a vocação e a religiosidade, já não influenciam mais na formação da profissão e em suas competências. A Enfermagem é uma prática moderna que desenvolve pesquisas, novas tecnologias e práticas avançadas, e coordena políticas e programas de extrema relevância no Sistema Único de Saúde.
Mas como dito anteriormente, a prática de Enfermagem se insere no contexto de desenvolvimento dos modelos técnico-assistenciais. No século XXI, por exemplo, dois destes modelos rivalizam a hegemonia das práticas em saúde: a saúde coletiva e a medicina científica. Não obstante, a Enfermagem se expressa em ambos, refletindo essa disputa no âmbito da formação de profissionais para atuação nestes modelos.
A saúde coletiva se baseia na participação do Estado na condução da política de saúde, na intersetorialidade, na descentralização e regionalização das ações, na participação social e na integração dos programas de promoção, prevenção e controle. Desenvolvida pelo SUS, é responsável pelo desenvolvimento da vigilância, atenção primária, assim como programas e políticas de saúde.
A medicina científica, no entanto, preconiza o indivíduo como seu objeto de intervenção, reconhece a natureza biológica das doenças, induz a especialização clínica, concentra o aparato tecnológico e os recursos humanos em hospitais e clínicas especializadas. Mais conhecida como modelo flexneriano, é desenvolvida no setor particular de alta complexidade e possui viés de lucro.
Foi esse último modelo que se desenvolveu com mais força nas últimas décadas no Brasil. Isso porque o contexto de reestruturação produtiva da sociedade, principalmente nos anos 1990, preconizava a redução dos gastos do Estado com políticas públicas, a privatização e as terceirizações dos serviços, e a provisão de seguros. Em que pese o surgimento do SUS, o desfinanciamento da saúde pública permitiu a expansão indiscriminada do modelo privado da saúde, que é locus de aplicação da medicina científica.
Seguindo essa lógica, a inserção da Enfermagem no mundo do trabalho se deu, nos últimos anos, sob novas formas de cooperação técnica, de gerenciamento do trabalho, sob o aumento da divisão técnica e social do trabalho, sob a supressão de direitos trabalhistas e a baixa remuneração da mão de obra dos profissionais. Além disso, a busca por excelência na assistência e o incremento da produtividade impôs restrições físicas e psíquicas a enfermeiros, técnicos e auxiliares. Foi nesse contexto que a Enfermagem fez o enfrentamento à pandemia de Covid 19, no Brasil.
Os governos e o setor privado da saúde concentraram as ações de combate à pandemia no ambiente hospitalar, principalmente em UTIs e prontos socorros, com práticas orientadas para o controle clínico da doença através de intervenções, procedimentos e medicalização. O manejo de ventiladores mecânicos, por exemplo, ganhou destaque por conta da síndrome respiratória aguda grave (SRAG) característica da doença. Os hospitais, tanto do SUS, como da rede privada, extrapolaram a capacidade de internação de pacientes com Covid-19.
A falta de insumos como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), medicações e aparelhos, revelou a dependência do Brasil das importações de tecnologia dos países desenvolvidos e a fragilidade do nosso complexo econômico industrial da saúde (CEIS). O SUS se encontrava sob a dinâmica de austeridade imposta pela Emenda Constitucional 95, que retira mais de R$ 20 bilhões por ano da saúde pública. Além disso, devido ao negacionismo de Bolsonaro, o Governo Federal pouco se mobilizou para criar uma estratégia eficaz de combate à pandemia.
Tudo isso fez com que as condições de trabalho para os profissionais da Enfermagem fossem as piores possíveis. A alta taxa de contaminação da população combinada com a escassez de recursos nos hospitais causou colapso no sistema, sobrecarga de trabalho, supressão de direitos trabalhistas, burnout, assédio moral, aumento da exposição ao vírus e muitas mortes de profissionais. Nesse contexto, o Brasil registrou cerca de 30% de todas as mortes por Covid-19 entre trabalhadores da saúde.
O investimento na abertura de leitos de UTIs, na compra desenfreada de ventiladores mecânicos e de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid em detrimento da ampliação dos serviços de Atenção Primária em Saúde, impactou negativamente na assistência à população e na situação dos profissionais.
Poderia ter sido diferente se a prioridade fossem as medidas de prevenção, tais como: rastreio dos casos, testagem em massa, isolamento social efetivo, vigilância dos territórios, investimento no CEIS, investimento em saúde pública, proteção dos profissionais e no desenvolvimento de uma vacina em tempo hábil para imunizar a população. O Brasil poderia ter evitado grande parte das quase 700 mil mortes registradas.
A luta da Enfermagem no 1º de maio de 2020 chamou a atenção da sociedade para a situação dos profissionais, do SUS e da hecatombe social que estaria por vir. A situação dos profissionais, que já era de penúria antes da pandemia, fez avançar a consciência de classe da categoria. A aprovação do PL 2564 no Senado e na Câmara dos Deputados, após dezenas de mobilizações nos estados e no DF, foi um passo importante para que a Enfermagem fizesse as reflexões necessárias sobre as práticas que desenvolve na sociedade.
Mas essa conscientização política e social por parte da Enfermagem deve ser cada vez mais fortalecida, e a categoria deve sim assumir a luta pelo fortalecimento do SUS, como ordenador das políticas de saúde nos três níveis de atenção à saúde, e utilizando o modelo de saúde coletiva como base para intervenção sobre as necessidades da população nos territórios. Isso requer a mobilização de milhares de profissionais na defesa do SUS e na luta por mais investimento na saúde pública, e também perpassa pela luta por direitos e reconhecimento social da categoria.
A luta pela aprovação do piso salarial deve ser entendida também como parte da luta em prol da saúde pública – afinal, um SUS forte é condição necessária para a valorização da Enfermagem.
Por Jorge Henrique, de Brasília (DF)
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